o leitor (im)penitente 199
Livros, alfarrabistas & outras fantasias 5
História breve de como tudo começou
Desta feita falar-se-á de uma obra ao alcance de todos. Ou melhor dizendo, atentos os tempos que correm, ao alcance de quem leia francês. E ponho esta ressalva porquanto verifico que, actualmente, o francês está em forte declínio entre nós. Razões há muitas mas a principal é sem dúvida a facilidade do inglês que, via música, se tornou para os de menos de quarenta ou cinquenta anos, uma língua franca.
De todo o modo, vou falar de uma obra mais ou menos feita em três partes (mesmo se cada uma delas é independente) que genericamente se chama “les aventuriers de l’art moderne”. Em grosso, trata da história da cultura europeia desde 1900 até 1949 e, neste campo, incide quase só na revolução cultural operada a partir da eclosão da arte moderna em Paris – e sobretudo das artes plásticas- entre Montmartre e Montparnasse. Em pano de fundo, a aventura surrealista, o dadaísmo, o cubismo, o futurismo. Num primeiro volume assiste-se ao absoluto milagre da concentração em Paris, ainda antes da primeira guerra mundial, de artistas vindos de todo o lado, sem eira nem beira, animados tão só pelo desejo de liberdade, pela ideia de que algo de novo estava na forja, e que rompem com todas as regras estabelecidas, com o salon, e proclamam o fim do século XIX que politicamente só ocorrerá bem mais tarde com a guerra. Local, Paris. Pintores e escritores em encontros e desencontros lançam as bases do modernismo, do futurismo, do surrealismo, da abstracção, do cubismo, quase ao mesmo tempo, num cenário dominado por Picasso, Matisse, Bracque, Gris, Chagal, Modigliani a que se juntam Appolinaire, Breton, Tzara, Aragon ou Éluard, Duchamp, Man Ray, Fujita, Hemingway e toda a lost generation, mais a madrinha deles (a monstruosa Gertrude Stein), duas livreiras de excepção Adrienne Monier e Silvia Beach, alguns galeristas (depois grandes) e a imperecível “nouvelle revue française, mãe das edições Gallimard.
Disse Paris mas não posso excluir outros grandes centros (Berlin ou Munique, terra de promissão dos expressionistas) Turim, Milão e Roma ou Londres e, sobretudo Nova York que alimentou e se alimentou da transumância transatlântica de artistas e escritores americanos e europeus. É porém Paris que se assume como o centro da verdadeira “grande revolução cultural”, mesmo se este nome depois fosse traduzido num calão sórdido e venenoso por obra de um tormentoso vento de leste para citar um vago verso do “grande timoneiro”.
É em Paris que se desenrola uma aventura contada em três volumes por Dan Frank, autor dos “aventuriers...” (1. Le temps des bohemiens; 2, Libertad; 3 Minuit). Não conhecia o escritor e só por mero acaso vi um longo documentário (suponho que em 3 ou 4 episódios) sob o título acima enunciado. Terá sido na RTP2 ou, mais provavelmente, num dos canais generalistas franceses que ainda cá chegam (ARTE? TV5?). De todo o modo, trata-se de um pequeno milagre televisivo: linguagem simples, explicações claras, história q.b., um par de anedotas suculentas tudo conduzido por um fio narrativo preciso e eficaz.
Entusiasmei-me, claro e fui pelos meus dedos: internet, amazon fr., e dei com o filme e com os livros. Ainda por cima havia (há) uma edição de poche de todos os volumes o que significa uma boa economia. Naquelas mil e tantas páginas perpassam as noites loucas de Montparnasse (e as suas deusas: Kiki, Youqui, Peggy Gugenheim, Elsa Triolet, Gala Dali, Nush Éluard, a horrenda Gertrud Stein ou Clara Malraux. ) Assistimos à trágica história de amor de Modigliani e Jeanne Hébuterne, ao imparável crescimento de Picasso, à aventura surrealista bem como ao percurso extraordinário de Gide ou Malraux, gente que deu sentido e honra ao “engagement” político. Da grande Guerra onde se ilustram alguns estrangeiros que pegam em armas pela França que os acolhera (Apollinaire ou Cendrars) à guerra de Espanha palco de loucas mas heroicas aventuras de Malraux, até aos dias sombrios da Ocupação e à Resistência de poucos, ao silêncio de muitos e à escabrosa traição de artistas, actores, cantores e escritores que não hesitaram em aproveitar os convites de Berlin e as facilidades garantidas pelos ocupantes.
Vale bem a pena ler (coisa que, como diz o Manel Sousa Pereira a quem ofereci um volume, se lê sem conseguir parar) esta bela obra que não ficará nos anais da grande literatura mas que, sobretudo nos tempos de ignorância que correm, a ilumina, explica, divulga e glorifica.
Leitores, deem-lhe com força: à barca, à barca que temos gentil maré...
* na gravura Raparigas na paisagem de Jules Pascin (o Príncipe de Montparnasse) nascido Julius Mordecai Pincas, Bulgaria 1885 e morto (suicídio) em Paris 1930. Era conhecido, admirado e amado por toda a gente a tal ponto que, no dia do seu enterro, todas as galerias de arte de arte fecharam as suas portas. Sobre ele, Hemingway escreveu belas páginas ( in Paris era uma festa).