o leitor (im)penitente 204
Livros, alfarrabistas & outras fantasias 9
Faz o que te aprouver (regra da Abadia de Thélème)
ou
o riso inteligente de Rabelais
“Hoje em dia já ninguém lê francês”, queixava-se o livreiro que, entretanto me vendia (mais) uma edição da obra de Rabelais, “Rabelais et l’oeuvre” (Paris, E. Bernard & Cie Imprimeurs editeurs, 1897). Uma bela edição, parecia-me, imprevidente que sou e, no caso, apressado a tentar fugir de uma mais que anunciada chuva que ameaçava cair.
Devo dizer que, desde os tempos imemoriais em que mergulhei de cabeça numa edição para crianças de Gargantua e Pantagruel, fiquei irremediavelmente contagiado por Rabelais.
Já crescidinho fui encontrando, em francês, edições que começaram por ser em francês moderno mas a que, pouco a pouco, se juntaram outras mais difíceis no saborosíssimo francês rabelaisiano. Não contente, com isso, também fui apanhando edições ilustradas e só Deus sabe quantas há que Rabelais e os seus maravilhosos personagens entusiasmaram tudo o que conta no mundo da pintura e da ilustração. De caminho, li biografias de Rabelais, um génio absoluto que mais do que nenhum outro autor, marca indelevelmente a passagem da Idade Média para o Renascimento. A truculência medieval ainda está viva mas a sua desassombrada crítica da sociedade contemporânea (desde a Sorbonne ao Papado) o seu profundo respeito pelo bom senso, a defesa da Natureza e de uma Moral descomplexada, o riso contagioso mas humano, os profundos conhecimentos quer de Medicina quer religiosos de que dá provas, mostram um espírito livre e uma inteligência superior. “Gargantua...”, a par do Quixote, do teatro de Shakespeare, e do inolvidável Dante (e juntemos-lhe sem vergonha nem descaramento a maravilhosa “Peregrinação” lida a par com a “História Trágico-Marítima”, com que os nossos ancestros tanto contribuíram para uma outa, e melhor, maneira de entender um mundo em mudança) é um dos grandes momentos do que agora, indiferentes e ingratos, chamamos Europa. Deveria acrescentar Montaigne mas, culpa minha, minha máxima culpa, ainda não o li suficientemente bem, para me atrever a juntá-lo a esta constelação, mesmo se o ache extraordinário. Aqui fica, porém, a referência.
Há edições em português (não sei se integrais) e que devem andar por aí, porventura baratas, que as escolhas de críticos, livreiros e editores traduzem muitas (demasiadas) vezes um simplismo mais ignorante do que se deve.
Fique claro que não estou a afirmar que ler Rabelais é uma obrigação. Ler nunca é uma obrigação mas tão só um prazer, um sorriso, uma vaga dança à beira mar numa manhã macia de mar manso e brincalhão. Todavia, Rabelais é como Cervantes uma leitura empolgante, viciante a que, depois, se regressa muitas vezes como quem visita a família que vive longe na terra da nossa infância e juventude.
Logo no início, aí em cima, contava uma compra apressada que fiz. Com o entusiasmo, o receio da molha e uma irresistível vontade de mais um café, deixei para segundas núpcias o exame do livro. Em casa, horas depois, fui-me a ele. Lá estava o texto em francês moderno mas das cento e sessenta gravuras devidas a Jules Arséne Garnier que constavam no índice, nem uma restava! Alguém as terá subtraído e re-encadernado o livro para ocultar as provas da desfaçatez. É coisa que sucede amiúde com livros ilustrados ou com mapas. Há sempre um arganaz que retira estas partes para as vender vantajosamente por separado. E nisto há também livreiros de porta aberta a colaborar nesta piratagem. A desculpa é sempre a mesma: já compraram as gravuras ou os mapas isolados!... E se não fossem eles a comprar seria o colega do lado... E a vida custa a todos, etc., etc....
*Recomendação de leitura: para quem não conhece e tem receio do francês rabelaisiano eis a edição recomendada. “Les cinc livres des faits et des dits de Gargantua et Pantagruel” Gallimard, colecção “Quarto”, Paris, 2017
Na página da esquerda Rabelais ele próprio, na da direita o mesmo em francês moderno. Há um bom prefácio inteligente e compreensível.
*na gravura Rabelais