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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

o leitor (im)penitente 204

d'oliveira, 26.05.17

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Livros, alfarrabistas & outras fantasias 9

 

Faz o que te aprouver (regra da Abadia de Thélème)

ou

o riso inteligente de Rabelais

 

Hoje em dia já ninguém lê francês”, queixava-se o livreiro que, entretanto me vendia (mais) uma edição da obra de Rabelais, “Rabelais et l’oeuvre” (Paris, E. Bernard & Cie Imprimeurs editeurs, 1897). Uma bela edição, parecia-me, imprevidente que sou e, no caso, apressado a tentar fugir de uma mais que anunciada chuva que ameaçava cair.

Devo dizer que, desde os tempos imemoriais em que mergulhei de cabeça numa edição para crianças de Gargantua e Pantagruel, fiquei irremediavelmente contagiado por Rabelais.

Já crescidinho fui encontrando, em francês, edições que começaram por ser em francês moderno mas a que, pouco a pouco, se juntaram outras mais difíceis no saborosíssimo francês rabelaisiano. Não contente, com isso, também fui apanhando edições ilustradas e só Deus sabe quantas há que Rabelais e os seus maravilhosos personagens entusiasmaram tudo o que conta no mundo da pintura e da ilustração. De caminho, li biografias de Rabelais, um génio absoluto que mais do que nenhum outro autor, marca indelevelmente a passagem da Idade Média para o Renascimento. A truculência medieval ainda está viva mas a sua desassombrada crítica da sociedade contemporânea (desde a Sorbonne ao Papado) o seu profundo respeito pelo bom senso, a defesa da Natureza e de uma Moral descomplexada, o riso contagioso mas humano, os profundos conhecimentos quer de Medicina quer religiosos de que dá provas, mostram um espírito livre e uma inteligência superior. “Gargantua...”, a par do Quixote, do teatro de Shakespeare, e do inolvidável Dante (e juntemos-lhe sem vergonha nem descaramento a maravilhosa “Peregrinação” lida a par com a “História Trágico-Marítima”, com que os nossos ancestros tanto contribuíram para uma outa, e melhor, maneira de entender um mundo em mudança) é um dos grandes momentos do que agora, indiferentes e ingratos, chamamos Europa. Deveria acrescentar Montaigne mas, culpa minha, minha máxima culpa, ainda não o li suficientemente bem, para me atrever a juntá-lo a esta constelação, mesmo se o ache extraordinário. Aqui fica, porém, a referência.

Há edições em português (não sei se integrais) e que devem andar por aí, porventura baratas, que as escolhas de críticos, livreiros e editores traduzem muitas (demasiadas) vezes um simplismo mais ignorante do que se deve.

Fique claro que não estou a afirmar que ler Rabelais é uma obrigação. Ler nunca é uma obrigação mas tão só um prazer, um sorriso, uma vaga dança à beira mar numa manhã macia de mar manso e brincalhão. Todavia, Rabelais é como Cervantes uma leitura empolgante, viciante a que, depois, se regressa muitas vezes como quem visita a família que vive longe na terra da nossa infância e juventude.

Logo no início, aí em cima, contava uma compra apressada que fiz. Com o entusiasmo, o receio da molha e uma irresistível vontade de mais um café, deixei para segundas núpcias o exame do livro. Em casa, horas depois, fui-me a ele. Lá estava o texto em francês moderno mas das cento e sessenta gravuras devidas a Jules Arséne Garnier que constavam no índice, nem uma restava! Alguém as terá subtraído e re-encadernado o livro para ocultar as provas da desfaçatez. É coisa que sucede amiúde com livros ilustrados ou com mapas. Há sempre um arganaz que retira estas partes para as vender vantajosamente por separado. E nisto há também livreiros de porta aberta a colaborar nesta piratagem. A desculpa é sempre a mesma: já compraram as gravuras ou os mapas isolados!... E se não fossem eles a comprar seria o colega do lado... E a vida custa a todos, etc., etc....

 

*Recomendação de leitura: para quem não conhece e tem receio do francês rabelaisiano eis a edição recomendada. “Les cinc livres des faits et des dits de Gargantua et Pantagruel” Gallimard, colecção “Quarto”, Paris, 2017

Na página da esquerda Rabelais ele próprio, na da direita o mesmo em francês moderno. Há um bom prefácio inteligente e compreensível.

*na gravura Rabelais

 

O leitor (im)penitente 203

d'oliveira, 15.05.17

 

 

 

 

 

 

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Livros, alfarrabistas & outras fantasias 8

(“Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colónia de Moçambique”)

Os livros são uma aventura sem fim, uma viagem sem bússola, um desvanecer de dinheiro pior do que consumir cocaína. O leitor voraz, nunca está satisfeito. Pede sempre mais e mais, quer tudo e mais alguma coisa, o que faz lembrar aquele cavalheiro medievo, Pico della Mirandola que, diz-se, sabia tudo e mais alguma coisa. Morreu cedo de tanto ler, mas não de tresler, deixando uma obra copiosa salpicada, nalguns casos (13!, número aziago!) de heresia de que, contrafeito, teve de abjurar. Pico lia tudo, comprava tudo o que corresse escrito e discutia tudo. Hoje, poucos o conhecem e menos ainda o leem (é o meu caso...) mas o homem, segundo a biografia que lhe dedicou um sobrinho, era da raça dos génios.

 

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A que vem esta lengalenga mirandoliana se o que pretendo é falar de um certo Rufino, fotógrafo e africanista, autor de dez gordos volumes pejados de fotografias sobre a colónia de Moçambique em 1929?

Pois apenas isto, o senhor José dos Santos Rufino por razões que não enxergo, resolveu, naquela data, arriscar muito dinheiro na publicação dos “Álbuns...” Não vislumbro que, à época, lhe sobrasse freguesia suficiente na colónia (em 1929, Moçambique era, oficialmente, colónia, abandonada que fora a designação de província ultramarina dos tempos da monarquia). Também duvido que, na Metrópole, houvesse uma multidão de entusiastas coloniais que compensasse o esforço e os gastos da edição. É que se trata de algo luxuoso, caro, fotografias algumas vezes enormes, tratadas, reveladas e editadas na Alemanha pela renomada firma Broschek & Co. (Hamburgo). São dez volumes oblongos (22x29cm) que no conjunto hão-se contar mais de mil fotografias, algumas em página dupla. A obra encerra fotografias das localidades mais importantes (Lourenço Marques, Beira, Tete, Quelimane ou Moçambique -mas não Nampula, na época um lugarejo sem importância -), instalações portuárias, comerciais, agrícolas e industriais, fauna, flora, arquitectura e monumentos e, no 10º volume, uma extensa mostra das populações nativas.

A qualidade das fotografias foi sempre aclamada mesmo se Rufino não conste na lista nacional, africana ou mundial dos grandes fotógrafos reconhecidos. Mas. é-o, indubitavelmente.

Hoje, a colecção pertence ao ex Banco Nacional Ultramarino e raras vezes aparece completa no comércio alfarrabista. Quando tal acontece, os preços são consideráveis (entre 750 e 1000 euros nas consultas que fiz) o que muito me entusiasmou porquanto fui pacientemente reunindo os volumes entre Dezembro de 2007 e Setembro de 2009. Tinha fixado uma tabela máxima por volume (€ 50) e consegui terminar o lote um pouco abaixo do limite que me tinha imposto, sobretudo porque consegui que todos os tomos estivessem em “bom” ou “muito bom” estado de conservação.

Para além do interesse estético, o que me interessou sempre foi o valor documental e, sobretudo, a confirmação do que sempre defendi: Moçambique é um país construído por portugueses, sul-africanos, indianos, alguns chineses, gregos, italianos e alemães. Deveria referir os africanos, isto é os negros indígenas que alombaram com o trabalho mas penso que isso está implícito sempre que se fala de África.

Também me pareceria interessante fazer notar o esforço de muitos mestiços que nos anos da construção do “Império” eram importantes (por todos, em Moçambique, a família Albasini) estatuto que foram perdendo durante o apogeu da colónia-província ultramarina. Para isso, portugueses e indianos contribuíram fortemente mas não é desdenhável a contribuição bóer, a provar que durante muito tempo, a mestiçagem não só não era proibida mas tinha estatuto social e económico. Anda por aí muito aprendiz falhado de anti-racista que desconhece que o apartheid foi obra de anos posteriores. Não é que antes não houvesse diferenciação racial (com pesadas e vis consequências) mas esta tal qual se tornou política oficial da RAS tem origem nos finais da primeira metade do século XX.

E, mesmo que Moçambique não fosse um paraíso racial (longe disso), as diferenças entre o estatuto de brancos e não brancos era algo de infinitamente menos ignominioso do que em muitas outras zonas de África. Não desculpa nada mas não pode ser esquecido.

 

* nas fotografias que se juntam aparece a palavra “mufano” para significar criado jovem. É uma adaptação tola e masculinizada do termo ronga “mufana” que significa rapaz, jovem. O feminino, no mesmo vernáculo, é tombazana.

 

Au bonheur des dames 424

mcr, 13.05.17

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Oh que semana!...

O Papa! Os pastorinhos! O quarto pastorinho que exerce de Presidente da República e de modelo para selfies! Isto vai ser um regabofe de piedade ultramontana e peregrina. Mesmo estimando bastante Francisco I, um Papa vindo do outro lado do mar e, provavelmente, do outro lado da Igreja, educado na disciplina intelectual da Companhia de Jesus, herdeiro da tradição de uma Ordem que, mais do que qualquer outra, foi alvo contínuo de admiração intensa e de perseguição sem quartel, vou ouvir até à exaustão (até ficar surdo?...) o relato das suas 23 horas em Portugal, capital Cova da Iria. Os jornais e as televisões andam desde há dias numa sarabanda noticiosa onde tudo, mas tudo, é contado, recontado, requentado. Ele são as caminhadas dos peregrinos que juram a pés juntos que “o caminho” é uma experiência imorredoira (isto lembra-me as histórias do “caminho de Santiago”, bem descrita naquele admirável “codex calistinus” de que não se arranja facsimil decente e a preço honrado), as obras no santuário (raras vezes se conseguiu arquitectura tão trivial, tão desconsolada. Agora até há um terço gigante, cópia, julgo, de um outro existente na América do Sul...

A pátria está comovida e em estado de sítio, fronteiras semi-fechadas, milhares de polícias e similares de prevenção, um feriado na sexta (hoje mesmo se o Papa só chega lá para a tardinha) para que a lusitana gente possa consagrar-se desde matinas até vésperas à oração, ao cilício e ao jejum.

Vamos ter Fátima à fartazana. Isto só acabará com o “tetra” que sempre fugiu ao Benfica. Desta feita, os pastorinhos, finalmente santos, darão essa alegria à torcida encarnada.

 

Para trás, ficam os desastres do Porto, ou seja, a defenestração do PS. Nunca compreendi que um partido com a dimensão deste não concorresse à Câmara. A menos que, nas hostes do dr. Pizarro reinasse a convicção (nada absurda, por acaso) de que Rui Moreira tinha a eleição no papo. Mesmo assim, havia precedentes: o PS arrolou contra o imbatível Rui Rio Francisco de Assis e Elisa Ferreira que sabiam o desagradável destino que os aguardava (derrotas severas, claro).

A futura disputa eleitoral vai ser curiosa: Moreira elogia Pizarro (beijo da morte?), este responde no mesmo tom. Que plataforma eleitoral irá o PS apresentar que o distinga claramente da “situação” camarária em que durante quatro anos se empenhou? A Moreira basta prometer mais do mesmo, mas para o PS parece necessária uma violenta epifania coisa que provavelmente estará na cabeça do dr. Costa que, também, peregrinará com a conhecida unção a Fátima. (a drª Ana Catarina Mendes talvez vá mas terá de fazer o percurso de joelhos para ver se aprende que à política também se aplica a expressão “muita cautela e caldos de galinha”. Que lhe aproveite! ).

Dos restantes candidatos pouco há a dizer. O PSD apresenta um desconhecido enquanto BE e PC recorrem a duas figuras já conhecidas e, aliás, um tanto ou quanto usadas. Vê-se que a imaginação e a renovação começam a rarear nesta banda. Nada de novo a leste.

 

O terceiro mistério gozoso deste rosário (Fátima oblige) é a reconciliação Porto Sporting. Não há nada como perder campeonatos para juntar os derrotados numa aliança sem futuro. Haverá alguma coisa comum a estas duas instituições (tirante o facto de jogarem à bola)? O Sporting é mais um clube de Lisboa (onde também coexistem o Benfica, o Atlético, o Oriental e até o Belenenses. O Porto é o arauto da cidade mesmo se, provavelmente terá nela menos adeptos do que nas imediatas cercanias. O Boavista nunca lhe disputou o lugar mesmo no tempo fantasioso dos Loureiros, pai & filho. Porventura, nos anos 40, o Porto teria no Sporting dos cinco violinos o verdadeiro adversário lisboeta e “centralista”. Mas isso foi há gerações e, de facto, o seu único adversário, aquele que conta, aquele que coloca as claques fanatizadas em pé de guerra, é o Benfica. O Sporting, para o Porto e para a opinião pública é um clube com vocaçãoo de terceiro lugar, ou seja, não existe. Fazerem as pazes ou zangarem-se, restabelecerem relações institucionais é, para o universo dos adeptos e da paisanagem que, como eu, nada tem a ver com eastes cavalheiros, zero, menos do que zero. Mesmo para este sofrido e infiel adepto da Naval 1º de Maio, isto é uma não-notícia cuja duvidosa utilidade é só esta: entrar na crónica de hoje e fazer-nos rir.

Acabemos a litania com Costa. De quando em quando, o homem tem boas saídas. João Miguel Tavares, cronista do Público tinha criticado a “tolerância de ponto” que lhe punha os filhos (quatro!, que coragem!) em casa quando ele e a mulher tinham imperiosamente afazeres profissionais. Na crónica, propunha Tavares, que Costa lhe tomasse conta dos miúdos já que lhe (JMT) parecia difícil obter um emprego de curta duração na função pública. E não é que Costa aceitou cuidar das crianças! Tavares, ele mesmo, informou o jornal e até terá publicado uma fotografia dos meninos em S Bento. De vez em quando assistimos a estas trocas civilizadas e pensamos que isto é outro país. Bem jogado, dr. Costa (e bem jogado também, JMT.)

Era para acabar mas afinal ainda há mais: em França, os primeiros candidatos de Macron são classificados assim, dois terços à esquerda e os dois sextos restantes igualmente divididos por direita e centro. convém notar que são apenas os primeiros e que ainda falta muita gente. Um segundo ponto: o movimento “en marche” não apresentará candidato contra Manuel Valls, situação que se repete em relação a alguns candidatos do grupo de Jupée. Mas não aceitaram Valls, o imprudente, nas suas listas, o que também diz bastante.

O terceiro ponto desta investida além Pirinéus, é a verificação de uma vergonhosa campanha contra Brigitte Macron, mulher do Presidente. Parece que o facto de ser 24 anos mais velha que o marido, de ser inteligente e, ao que se diz, apaixonada pelo marido – e ele por ela- assenta mal nos pergaminhos de uma República em que os presidentes traem as respectivas, andam escondidos em aventuras amorosas ou como o imortal Félix Faure, morto no “campo da honra” ou seja nos braços da amante em pleno Eliseu.

Finalmente, prosseguindo na sua cruzada contra a reacção, o capitalismo, o imperialismo, o cosmopolitismo, etc., etc.., o senhor Mélenchon entendeu viajar até Marselha para se candidatar a deputado. Em Marselha, no círculo em que o admirador de Maduro concorre, há um deputado eleito do Partido Socialista que agora vê a sua candidatura mais ameaçada. Já agora, recordemos que, na passada eleição legislativa, Mélenchon foi fragorosamente derrotado no Pas de Calais por Marine Le Pen e pelo candidato do PS. Agora, à cautela, tenta Marselha no extremo oposto da França... Assim vai o mundo...

Finis, laus Deo.

* Na gravura: António Costa recebe os filhos de JM Tavares em S Bento. Chapeau!

 

A cisão entre Rui Moreira e o PS

José Carlos Pereira, 08.05.17

Há menos de um mês, escrevi aqui pela última vez sobre a forma como Rui Moreira tinha capturado os partidos e em particular o PS. Nunca compreendi a estratégia socialista e admitia nessa altura que o PS pudesse "estar prisioneiro do caminho que seguiu e completamente nas mãos de Rui Moreira e dos seus primeiros apoiantes, que olham de soslaio para tudo o que seja socialista".

No final da semana passada estalou o verniz e zangaram-se as comadres. Rui Moreira serviu-se do PS enquanto precisou dele para governar com maioria e lançou agora os socialistas porta fora. Foi um xeque-mate a um ingénuo e deslumbrado Manuel Pizarro. Só me surpreende a forma como António Costa se deixou envolver neste filme.

O PS cometeu o erro de decidir apoiar Rui Moreira sem negociar condições, sejam programáticas ou de lugares, o que sempre me pareceu inconcebível e ao arrepio do que é natural em política. O alegado descontentamento gerado pelas declarações da secretária-geral adjunta do PS, Ana Catarina Mendes, não passou de um mero pretexto, pois a dirigente socialista não disse nada que não devesse. Então o PS, segundo partido mais votado em 2013, não teria de ter uma representação forte nas listas? E quando disse que uma vitória de Rui Moreira também seria uma vitória do PS, pelo facto de apoiar e integrar a candidatura, não disse nada de diferente do que Paulo Portas exprimiu em 2013.  Misturar a Foz com Campanhã, com tudo o que isso representa, exigia maleabilidade, flexibilidade e inteligência. Ana Catarina Mendes veio afirmar em público, porventura, aquilo que Manuel Pizarro queria dizer e não podia.

O PS e Manuel Pizarro saem diminuídos deste processo, naturalmente, mas depois de confirmada hoje a inevitável renúncia aos pelouros na vereação, os socialistas ganham espaço para fazer as críticas que até aqui tiveram de silenciar (caso Selminho, parcerias económico-institucionais que valem bons negócios, proliferação na Câmara e nas empresas municipais de boys do CDS e do PSD vindos de Gaia e de Gondomar e muitas opções discutíveis face a projectos, clubes e instituições da cidade, por exemplo). O PS fica numa posição débil por ter sido até agora cúmplice com o poder na Câmara Municipal, mas as novas circunstâncias exigem uma mudança clara de atitude política. O caminho não vai ser nada fácil para Manuel Pizarro...

estes dias que passam 348

d'oliveira, 08.05.17

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Uma vitória, duas derrotas

Eu sei que as eleições francesas já deram o que tinham a dar. Macron ganhou, diz-se (e é gloriosamente verdade) e basta. Não, não basta. Não basta por toda uma série de razões: Macron neste momento já vai nos 66, 1 contra 33,9 de Le Pen. Ou seja já está quase no dobro da adversária. É uma derrota pesada, pesadíssima para esta, digam lá o que disserem.

Mesmo com uma crescente abstençãoo, Macron ganha folgadamente, o que significa não apenas a rejeiçãoo da adversária mas também, que diabo!, a aceitaçãoo de algumas das suas propostas.

Os arautos da insubmissão (e amigos da Maduro, convém lembrar) não conseguiram impedir esta limpa vitória, sequer ensombrá-la. Das duas uma: ou os seus eleitores menos próximos desobedeceram às vergonhosas recomendações de voto branco (e estou em crer que foram bastantes) ou outros antigos abstencionistas perceberam que isto não era a feijões e que a tese ultra imbecil do “quanto pior melhor” tresandava.

Há uma certa ironia histórica nisto. Em tempos não demasiadamente recuados (Alemanha nos anos 30) o forte KPD (Partido Comunista Alemão, obedecendo ao Komintern, lançou a política “Klasse gegen Klasse” (classe contra classe) atacando com a máxima virulência o SPD (Partido Socialista) que foi considerado a “vanguarda da reacção”, um bando de social-fascistas e outros mimos do mesmo género.

Foram baldadas as tentativas de criar uma frente comum anti Hitler, e o resultado foi devastador. Uma vez no poleiro o “pintor de paredes” ilegalizou o PC e mandou os seus deputados e dirigentes para os campos de concentração entretanto inaugurados. O PS não demorou a seguir este destino mas por uma causa nobre: os socialistas negaram votar os “plenos poderes” a Hitler e foram, por sua vez, reduzidos à prisão e ao exílio.

Quando a classe contra classe morreu já era tarde. Todavia, logo que a guerra eclodiu, os partidos comunistas, mais uma vez em obediência cega às directivas da 3ª Internacional, condenaram as potências democráticas e declararam-se neutrais. Em França, levaram o atrevimento impudente a solicitar das entidades ocupantes, licença para voltar a publicar”L’Humanité”. Os alemães recusaram.

Foi preciso que a Alemanha invadisse a URSS para, então, os comunistas ocidentais se proclamarem anti-fascistas e combatentes!...

Felizmente, anda restava em França alguma memória destes tempos miseráveis em que os comunistas silenciavam as atrocidades do ocupante e o servilismo de Vichy. (para memória: logo que a ocupação alemã se tornou efectiva, Paul Nizan, destacado intelectual comunista, recusou a directiva da Internacional. Foi acusado pelo servil Thorez, dirigente do PCF, como traidor e polícia!...Assim se vê de que lado estava a inteligência e em que fossa nadava o colaboracionismo dos pseudo-revolucionários vermelhos. )

Voltando às eleições francesas, depois desta digressão infelizmente necessária dada a ocultação da história recente: A vitória de Macron é também a vitória de quem vê o mundo actual tal como ele é e está, contra os saudosos do passado. Queira-se ou não, 2017 não é 1917, 1870 ou 1789. O mundo em vogam inocentemente os Mélenchons e os seus amiguinhos e amiguinhas portugueses, não existe, não volta. Se importa mudá-lo convém, para já, compreendê-lo, explica-lo.

E para tal, é necessário rearmar a ideia de Europa, desta comum Europa que, pela primeira vez na História está em paz há mais de setenta anos. Em França ou cá, onde também, quatro tristes agoureiros (ou agoureiras) pretendem convencer-nos contra a mais plácida e visível evidência de que o euro, a Europa, o cosmopolitismo, são a doença e não a cura. Há que melhorar as coisas? Claro! Há que democratizar as instituições comunitárias? Sem dúvida! Há que repensar a política internacional e interna? Absolutamente (e aqui vai uma dica: conviria pensar num parlamento nacional eleito mais democraticamente sem se elegerem deputados à molhada. Seria bom podermos chamar à pedra o fulano (ou fulana) que elegemos para ver se não se escondem na multidão que vota sem ligar nenhum aos eleitores).

A vitória de Macron é, sem qualquer dúvida, uma vitória sobre a direita, nacionalista, autoritária e xenófoba mas também sobre uma esquerda identicamente autoritária, igualmente nacionalista e, graças à sua diabolização da mundialização e do espaço europeu, recorrentemente xenófoba também. Digam eles o que disserem. Para caricaturas de Maduro, já chega o “Podemos”, não precisamos do pobre Mélenchon.

Paz à sua alma. Amén!

* na gravura duas bandeiras: a francesa e a europeia. É assim que se pode fazer a História. Assim seja. 

Au bonheur des dames 423

d'oliveira, 02.05.17

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Nuno Brederode, secreto e discreto

 

A notícia chegou-me tarde pelo “Público” através de uma pequena nota necrológica e de um texto de Seixas da Costa. O Nuno morrera no dia anterior (30 de Abril) de “doença prolongada”.

Conheci o Nuno no dia em que, em Coimbra, se celebrou o 1º (e único) “Encontro Nacional de Estudantes”. Pelas minhas contas terá sido em 61, ou seja há 56 anos! Uma vida...

Não sei se é possível afirmar que ficámos amigos a partir desse dia. Isto nunca é assim tão simples, mas a verdade é que nos voltámos a encontrar no “Dia doe Estudante”, em Março do ano seguinte e muitas vezes durante os meses que se seguiram. Depois, o Nuno arribou a Coimbra, expulso da Universidade de Lisboa e calhou sermos colegas de curso e até, termos vagamente estudado juntos algumas vezes. Foi nessa altura que me apercebi que estava frente a uma das pessoas mais inteligentes com me vim a cruzar.

Inteligente, culto, excelente conversador, de uma ironia a toda a prova e já, naquela altura, um fanático da discreção. Por qualquer razão que nunca perguntei, o Nuno mostrava-se avesso à luz crua dos holofotes e preferia ,ou isso é a minha percepção, a conversa, o debate, a discussão “en petit comité”.

Vivendo em cidades diferentes só nos encontrávamos de longe em longe, situação que se modificou após os 25 de Abril. Durante quase um ano fomos camaradas dentro do MES, comungando da mesma visão sobre a política nacional e a partidária. O Nuno bateu com a porta antes de mim, engrossando o grupo “sampaísta”, enquanto eu, baldadamente, aguardava acto idêntico do meu grupo de amigos com o qual tinha aderido. Ao fim de pouco tempo, enchi uma dúzia de folhas de papel, enderecei-as À Comissão Política do Porto e desandei em paz com a minha consciência, lamentando o tempo perdido e prevendo um fraco futuro par aquela pequena organização que acabara por se definir comunista, marxista-leninista e, sobretudo, aberrantemente tola e presunçosa.

Por razões profissionais comecei a ter de ir a Lisboa várias vezes ao mês. Aproveitei para começar a frequentar assiduamente o snack-bar do Hotel Florida que era a cantina dos meus amigos sampaístas (o Jorge e a Maria José, o César Oliveira meu antigo colega de Coimbra, o Nuno, o Joaquim Mestre, outro cavalheiro partidário da discreção, o Luís Nunes de Almeida, o Nuno Portas, o Francisco Soares, o João Bénard da Costa e, não tenho a certeza, o Zé Manuel Galvão Telles) que em breve formariam o G.I.S. (Grupo de Intervenção Socialista) de que fui “compagnon de route” (não valia a pena ser mais visto viver longe e não ter hipóteses de participar nas discussões e elaboração de programa). Aliás, pouco depois, este grupo entrou no PS coisa que adiei por bastante tempo. E pouco depois de entrar fui-me distanciando sem apelo nem agravo até readquirir a qualidade de independente. E foi já nessa qualidade que participei na campanha guterrista e no Conselho Coordenador dos Estados Gerais onde o voltei a encontrar.

A partir da eleição de Jorge Sampaio para Presidente da República, apenas sabia que (como convinha ao seu feitio) era Conselheiro do Presidente mas, com grande pesar meu (e maior preguiça) já não o encontrei mais.

Ou melhor:  volta que não volta encontrava-o nas páginas de um livrinho magnífico (“Rumor Civil” Relógio de Água, ed., 1990?).  Sempre que o encontro nalgum alfarrabista, prontamente compro para oferecer aos meus melhores amigos. Trata-se, sem exagero nem qualquer dúvida, de um dos melhores livros de crónicas aparecidos nos últimos trinta ou quarenta anos. Um escrita deliciosa, irónica, expressiva, inteligente e cuidada. Alguns, muitos, quase todos ,dos seus textos são francamente antológicos e retratam Portugal com verdade, verve, sensibilidade, humor e amor.

Como de costume, com o Nuno, este livro foi surpreendentemente “filho único” quando seria de esperar que da mesma pena saísse mais uma boa e entusiasmante dúzia de obras. Mas aquele sacana era mesmo assim: parco e discreto, demasiadamente discreto, quase secreto. Fica na memória dos amigos como um segredo bem guardado. Que desperdício...

Que saudade...Que remorsos por o não ter procurado mais vezes.

*A fotografia do NBS que se junta é bem antiga, foi pilhada na internet e mostra um Nuno jovem tal qual o conheci