Estamos bem melhor e há muitos anos
No “Público” há hoje uma reportagem sobre os efeitos benéficos do Erasmus. Não tenho quaisquer dúvidas sobre isso, basta-me ver o que se passa com uma série de familiares jovens que, ao contrário da minha geração, puderam conhecer mundo sem perder os contactos académicos e por preço acessível.
Sou de um tempo em que viajar ficava caro, caríssimo e estava absolutamente fora do alcance de quem era jovem. Nesses tempos longínquos nem sequer era ainda concebível a primeira revolução ni turismo jovem, o “inter-rail”.
Todavia, apesar disso, dessa dificuldade quase absoluta de viajar, para já não falar dos custos e da possibilidade de ter passaporte (coisa que nos anos de guerra 1961-1974 era quase milagrosa), tive a enorme sorte de poder viajar. E nesse viajar incluo a ida para Moçambique quando tinha 13 anos. Tirando a língua, tudo era diferente, maior, menos convencional, menos (muito menos, pelo menos para os “europeus”) pobre. Até o liceu que frequentei tinha uma característica inédita nos anos 50. Era misto. Melhor dizendo, era misto no 3º ciclo, mas a zona das raparigas só se separava da dos rapazes por um largo pátio central.
Quando regressei à pátria madrasta (à “metrópole”) para acabar o liceu e fazer a universidade pude dar-me conta do fosso que três anos em África representavam. Numa palavra era bem mais cosmopolita do que os meus colegas. Com o passar dos anos, além de ter voltado para férias em Moçambique, comecei a poder viajar pela Europa. A Espanha, a França, a Bélgica e depois a Itália, a Alemanha a Holanda e por aí fora. Claro que, seguindo uma palavra de ordem de Jorge Delgado, um sogro que foi um pai, um amigo, um mentor e um camarada, dispus-me a ir a todo o lado desde que pudesse passar por Paris. Mais tarde, estendi a ideia a Berlin, Roma e Amsterdão. Quando conheci Nova Iorque, foi como se regressasse a casa. Só em Paris, graças ao Lagardére (Paul Féval), ao Vitor Hugo, aos Mosqueteiro (saravah, querido Alexandre Dumas, homem livre e combatente pela liberdade) e a um punhado de franceses mais, tive idêntica sensação. Calcorreava as ruas desde o 1ª ao 7º bairros e tudo me falava a velhas aventuras, lidas desde que me lembro de ler. Que emoção andar pela re Tournon e saber que ali vivia d’Artagnan e, mesmo ao lado, Athos ou Porthos. Acho que, ainda hoje, conheço melhor Paris que Lisboa ou o Porto. Em Veneza, discuti cinema, o velho cinema dos anos 40/5o com um punhado de locais que não acreditavam que existisse um portuga capaz de se recordar (e citar) “Não há paz entre as oliveiras” ou “Arroz amargo”, filmes do enorme Giuseppe de Santis que hoje está tão (mal) esquecido. Em Pescara, ofereci a uma florentina, linda como os amores e ourives, “Portogallo mio remorso” de Alexandre O’Neil numa tradução belíssima de Joyce Lussu que, depois descobri ser mulher de Emilio Lussu, grande dirigente de “Giustizia e Libertá”, várias vezes preso, exilado (inclusive em Portugal) e autor de um livrinho (Teoria da Insurreição”) que nos anos sessenta me impressionou fortemente. Andei 30 anos à procura do livro e quando desesperava (já nem era citado no catálogo da editora Einaudi) consegui-o num alfarrabista italiano encontrado na internet.
Destas viagens trouxe quilos, quintais, toneladas de livros que me habituaram a ler no original centenas de autores. Isso, a curiosidade, a vontade de perceber, fizeram-me ainda mais europeu mesmo se a minha costela da praia de Buarcos, nunca me permitisse esquecer este amaldiçoado rincão tão maltratado pelos seus indígenas, tão descuidado pelos seus políticos e tão sofrido pelos menos afortunados que buscam sob sois menos clementes ou menos brilhantes o pão nosso de todos os dias.
Cosmopolita, pois, mesmo se a tal condenado pelos anos de chumbo. A liberdade vinha de fora, o conhecimento também. Hoje, e era a isso que eu vinha, os vinte anos do programa Erasmus estão em vias de criar uma elite universitária, mais livre, mais disposta conhecer o outro, a reconhecer-se nele, a ver o estrangeiro como um vizinho.
Durante os meus tempos de estudante de “Direito Comparado”, conheci umas centenas de colegas vindos de toda a Europa (só não havia, et pour cause, russos ou chineses!)e, em menor grau, de outras partes do mundo. Foi nessa amável e gloriosa época que, um alemão me confidenciou que nunca poderia fazer a guerra contra outros povos. Porque os conhecia, através de nós, colegas e amigos, aprendizes bem dispostos de um par de regras de convivência jurídica internacional.
O medo, a estranheza pelo estrangeiro vencem-se pelo convívio, pela tentativa por vezes torpe de falar outra língua, de entender o que nos tentam dizer. Na primeira vez que pisei a Grécia, soltei as duas únicas palavras que sabia, kalimera e/ou kalinicta (– não garanto a grafia.) isso para dizer bom dia ou boa noite, palavras ensinadas por um chef de mesa de um restaurante chinês (!), aqui do Porto.
Foi uma alegria: uma inteira família, que digo?, um clã de gregos guinchou de prazer, cobriram-me de palavras e antes que eu conseguisse dizer que era português já circulavam numa improvisada mesa vinho, azeitonas, pão, queijo e uns tomates comoventes de saborosos. Aquele improvisado ágape (palavra grega) durou horas de conversas impossíveis, risos, cantigas, muita gesticulação. Adoptaram-me, claro, e vi alguma Grécia pelos olhos e companhia deles, orgulhosos de se mostrarem e mostrar uma terra que, ao fim e ao cabo é de nós todos, europeus. Nem a uma missa escapei e a dois baptizados. Descobri que o pope do lugar comia como um abade lusitano dos velhos tempos. E bebia como dois cónegos dos nossos, dos de antigamente. Em boa verdade nem àágua dizia não. Também é verdade que a misturava com um vinho escuro, espesso, oleoso que a mim me soube a papel de música. Ou então já estava também bem servido e melhor bebido.
O Erasmus é o modo mais rápido, mais barato e mais inteligente de criar cidadãos portugueses europeus. Cai na idade de todos os espantos, da aventura possível, da novidade e dos amores de Verão (ou de qualquer outra estação, convenha-se, que a “juventude é”, como afirmava, certeiro, Ruben Dario, outro cosmopolita, “um divino tesouro”).