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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

a ver vamos

mcr, 30.06.17

Alguns escassos leitores (e leitoras, claro) terão reparado que mcr desapareceu da lista de "contributors" deste blog ao fim de dez esforçados anos de actividade. que foi? Que não foi? 

Sei lá! 

Sou um semi info excluído, para não dizer um azelha chapado. Não é modéstia nem fishing for cumpliments. é mesmo assim. Daí pensar que foi alguma asneirada minha a causadora desse pequeno dissabor. 

Entretanto, o camarada e amigo, quase alter ego, d'Oliveira foi meu hospedeiro durante alguns dias, coisa que, aliás, já ocorrera várias vezes ao longo dos anos em que também ele vem exercendo as suas habilidades mormente através da série "diário político". 

Um respeitável cavalheiro do "sapo" (Pedro Neves) atendeu ao meu pedido de socorro e mandou-me recorrer a um determinado endereço para poder repor a minha assinatura. É o que estou a fazer neste momento.

D'Oliveira, entretanto, comunica-me que vai continuar a espaçar a sua colaboração e que se necessário for prescinde da sua assinatura e quando lhe apetecer apanhará uma boleia no meu espaço mantendo o título das suas colunas, o nome e a numeração dos seus textos. Para ele, assevera-me, a coisa é mais fácil pois, por norma assina e data os textos que publica.

Acabado o recado, vou dar título à crónica, inserir na respectiva zona o tag e o nome do seu autor e carregar na tecla publicar. 

Vamos lá ver se a coisa funciona. 

mcr

 

Au bonheur des dames 425

mcr, 25.06.17

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Do racismo ordinário e repugnante

 

por mcr

 

(alguma misteriosa razão ou apenas ignorância crassa minha fez com que o meu nome de subscritor desaparecesse e que todos os meus textos fossem atribuídos ao colega, amigo e tantas vezes cúmplice d'Oiveira. Assim sendo e até se comporem as coisas os meus folhetins saem sob a inocente e desprevenida assinatura de d'Oliveira que não merecia esta estranha invasão)

 

Uma criatura que exerce de deputado europeu entendeu chamar a outra criatura que é apenas deputada cá dentro “cigana”.

A frase é aliás a seguinte: “Luísa Salgueiro, dita a cigana, e não só pelo aspecto, paga os favores que recebe com votos alinhados com os centralistas”.

O autor desta pérola chama-se Manuel dos Santos e tem no seu activo seis mandatos de deputado (1980 a 2002) mais dois de eurodeputado 2001-2009), uns escassos e inglórios meses de Secretario de Estado, ou seja, se as contas batem certas, mais de 30 anos de vida política. Metade de uma vida se for verdade que andará pelos setenta e três anos. Ou, tirando a infância, a juventude, os estudos pouco restará de actividade outra que não a de eleito ou de funcionário político. Desconheço, porém, se nos intervalos, se os houve, exerceu ou não uma profissão, mormente a genericamente designada, no escasso currículo da internet, de economista. Poderá, inclusive, ocorrer que nesses intervalos tenha desempenhado cargos de nomeação governamental ou coisa semelhante. De resto, isso pouco importa.

Eu não conheço a senhora Luísa Salgueiro. Sei, pelos jornais, que o P.S., eveentualmente forçando a vontade das secções socialistas de Matosinhos a aponta como candidata à Câmara. Pelos vistos terá sido, desde menina e moça (exemplo do jotismo triunfante e avassalador), vereadora em Matosinhos (1997 a 2007) transitando posteriormente para a AR onde exerce de deputada até ao momento presente.

Quer ela, quer o seu difamador tem uma “carreira sempre dentro do aparelho do partido”.

Andaram juntos em candidaturas, seguramente que se encontraram em congressos regionais, nas sedes, nas campanhas políticas. Pelos vistos não fazem parte do mesmo círculo dentro do partido, se é que nisto há de facto clara divergência ideológica (quem conheceu algumas das tricas internas do P.S. Porto poderia contar algumas anedotas que a isso e pouco mais se resumiam muitos dos conflitos internos mesmo se travestidos em diferendos políticos e doutrinais. Pela parte que me toca, bastaram-me seis meses para perceber a inanidade de muita discussão e o que ela escondia: pequenas ambições de pequena burguesia pouco ilustrada. Ideologicamente, aquilo era paupérrimo. Culturalmente, uma nulidade).

Pelos vistos, a questão, melhor dizendo, o furúnculo que agora rebentou tem a ver com a famosa votação (unânime e transversal a tosos os partidos com assento na AR) sobre a Agencia Europeia de Medicamento. Tal votação ocorreu há meses apesar de só agora ter vindo à dúbia luz do dia com a exigência da Câmara do Porto em, pelo menos, ser considerada candidata.

O presumível “justiceiro” Manuel dos Santos entendeu agora (e não naquele momento anterior!...) vir condenar os réprobos socialistas que fizeram coro com toda a restante Assembleia. Todavia, ao que parece, apenas agarrou na senhora Salgueiro de quem provavelmente não apreciará as virtudes políticas, portistas e regionais. Vai daí chamou-lhe "cigana (e não só pelo aspecto!) que paga favores com votos”... Vá lá que os não paga de outra maneira, convenhamos. Fui ver que aspecto teria a camarada Salgueiro para com alguma minha falta de experiência ver se a criatura teria características (se as há) de cigana. As fotografias que aparecem são as de uma mulher igual a muitas outras, cabelos vagamente compridos, não aparentando os cinquenta anos que terá, mesmo se não me pareça brilhar pela esbelteza (cinquenta anos são cinquenta anos quand-même mas, no caso em apreço, não pesam excessivamente). Bem sei que a fotografia incluía um grupo de cavalheiros, entre eles o bizarro dr. Pizarro que, com o risco ao meio largo e um olhar de criatura perdida na praia, favorece qualquer máscara má que lhe esteja próxima.

Também é verdade que as únicas mulheres ciganas que costumo ver são aquelas pedintes romenas ataviadas com umas roupas informes e com aspecto pouco limpo. Fora disso, só quando a televisão apresenta via “Mezzo” espectáculos de flamenco e aí a coisa fia mais fino, muito mais fino. Porventura, gosto exageradamente de flamenco mas na verdade as "cantaoras" e as dançarinas tem um charme extraordinário. Perante elas tenho a mesma reacção que tinha perante a extraordinário Ana Magnani: achei-a sempre bonita e sexy!

Todavia, entre nós, “cigano” é sempre pejorativo, dê lá para onde der. Se alguém, com algum vago grau de estudos (mormente uma licenciatura), chama cigano a alguém trata-se de um claro insulto e como tal é unanimemente considerado. Mesmo numa terra onde “filho da puta” ou “cabrão” são por vezes considerado mimos mais ou menos viris. Um deputado, com setenta anos em cima, só por doentia e distorcida maneira de ser pode usar tal termo contra uma colega de partido. Pior: foi apenas a senhora Salgueiro a apanhar no lombo. Ora o Porto tem mais não sei quantos deputados socialistas que sentam o dito cujo em S Bento, homens e mulheres. Por que raio de bula só a “camarada” Salgueiro leva com o cigana? E leva duas vezes, por ela e pelo aspecto que, como já disse é normalíssimo, portuguesíssimo nem sequer parece especialmente morena. Anda, pois, nesta expressão “mão de reaça”, de sacanaça ou pior. Para começar anda, claríssimo, o racismo e depois, mesmo quando se sabe que o racismo é estúpido, anda mais uma carga de burrice supina.

 

* Não conheço a senhora Salgueiro nem o senhor Santos. Nunca os vi, não tenho qualquer vontade de os conhecer. No entanto, sou, para azar meu, português, vivo no Porto e arrisco-me a cruzar-me com qualquer deles e confersso que se não me apatece ter comiseração pela ofendida ou sequer indignar-me com o ofensor. Este tipo de criaturas é, para mim, invisível.

 

Responsabilidade

José Carlos Pereira, 21.06.17

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despacho do Governo que exigiu apuramento de responsabilidades efectivas à GNR, à Autoridade Nacional da Protecção Civil e ao Instituto Português do Mar e da Atmosfera é a reacção adequada perante a tragédia dos últimos dias. O que se exige é que tudo seja devidamente apurado e que as responsabilidades sejam assumidas por quem tiver de o fazer. Sem pressas, sem emoções, mas com total exigência.

Diário político 215

mcr, 20.06.17

De tudo um pouco

Comecemos pelas eleições francesas bis. A segunda volta tira teimas entre os mais votados. Macron e aquela incipiente frente heterogénea que ameaça tornar-se partido voltaram a ganhar. Era esperado. Ganharam, porém, ligeiramente menos do que se previa após a primeira volta. Os Republicanos (LR) aguentaram o embate mesmo se registam um dos piores resultados de sempre: 113 deputados. A FN conseguiu meter oito deputados, o PCF mantém a sua fraca representação (10), Mélenchon consegue 17. O PS elege 29 e com aliados consegue 44. Uma hecatombe!

Os vencedores são, no entanto, vários. A FN entra no Parlamento, o Modem, outra bizarria oscilante dirigida por Bayrou aliado de Macron averba 42 mandatos, mesmo se pela história pregressa valha muito menos. A República em marcha junta 308, o que já lhe dá a maioria de que precisa.

Não vale a pena ir buscar os resultados da 1ª volta das presidenciais para artificialmente arguir de uma derrota de Mélenchon ou de Le Pen. Os resultados nacionais só valem para eleições nacionais e num sistema proporcional. Com quase 600 círculos uninominais e duas voltas a coisa sai bastante diferente. Sendo certo que os deputados franceses representam, prima facie, os seus eleitores não me parece que alguém se possa queixar. Os eleitores querem quem por eles fale, quem os defenda quem os represente. Os interesses dum eleitor de Bordéus não são de certeza os mesmos dum eleitor duma perdida circunscrição da Saboia. De resto ainda há uma Segunda Câmara, cujo corpo eleitoral, os grandes eleitores, escolhe os senadores dentro de um rigoroso sistema proporcional (Faço parte dos que em Portugal defendem não o só bicameralismo mas também o sistema uninominal para a 1ª câmara deixando para a 2ª a eleição proporcional, corrigindo-se assim as anomalias da 1ª).

A gritaria que se desatou contra a vitória folgada de Macron, a ideia de que isso prejudicava a democracia, apenas significava por parte dos grandes tenores derrotados (por todos Cambadelis, 1º Secretário do PS) um profundo desprezo pela vontade dos eleitores.

Por outro lado, agora, como na 1ª volta, toda a gente aponta para a abstenção (gigantesca e em aumento) como algo que deslegitima os eleitos. A abstenção não tira legitimidade a ninguém eleito e muito menos torna a massa dos que não votam numa força seja ela qual for. Pode sempre dizer-se que quem não quis votar está de acordo com os resultados apurados. Se alguém não gosta do que vê tem sempre a possibilidade de um voto de protesto (e em França desde a FN à França Insubmissa, para não falar em pequenos grupos que não obtiveram mandatos há candidatos para quase tudo).

 

Conviria, agora, referir, algumas anomalias condenáveis. Comecemos pela a agressão à derrotada deputada Nathalie Kosciusko-Morizer /LR) que é uma das principais vozes da Direita e foi até candidata à Câmara de Paris. O agressor, um certo Vincent Debraize, é maire de uma pequenina povoação normanda e patrocinou a candidatura de um certo Henry Guaino de quem se falará de seguida.

Este anormal entendeu ser sua missão agredir NKM que tinha batido Guaino na circunscrição parisiense em que ambos se apresentavam. NKM era a candidata oficial do LR e Guaino um vago e abstruso dissidente que obteve um resultado ridículo para quem há um par de anos se candidatara à presidência da UMP (antecessora de LR).

NKM distribuía panfletos na place Maubert e, à vista de todos, foi agredida, caiu ao chão desmaiada e teve de ser socorrida no hospital. O corajoso agressor fugiu do local mas a vídeo vigilância e vários telemóveis identificaram-no sem dificuldade. Ao saber-se descoberto, recorreu à esperteza de se apresentar no comissariado. Cobarde, palerma e agressor.

O senhor Le Guaino é um velho conhecido na Direita francesa e foi deputado uma única vez. Depois armou tais reboliços e confusões variados (incluindo ataques a um magistrado de que decorreu uma condenação posteriormente anulada com o fundamento de que ele não referia claramente o juiz difamado) que terminaram num ataque a Fillon. Não contente com esta agitada carreira, tentou candidatar-se à Presidência da República mas não obteve sequer 10% dos (500) apoios necessários para o efeito. Recusou dar indicações de voto e não obteve o patrocínio do seu partido quer na circunscrição que antes representara quer em Paris onde entendeu desafiar NKM. Como já vinha sendo habitual obteve escassos votos.

Tal resultado levou-o a qualificar os eleitores desse círculo parisiense como gente que (lhe) provocava vómitos, o que mostra a elegância da criatura e a imbecilidade manifesta de pedir votos a quem finalmente ele mostra tanto desprezo. Em França quando a um indivíduo lhe dá para a canalhice supera qualquer concorrente no resto do mundo. Parece que depois se gabou de uma proposta de Marine Le Pen mas tudo indica que nem isso ocorreu. Terá também afirmado que não conhecia o agressor de NKM embora este o tivesse apoiado!...

 

Este o quadro geral. Que irá acontecer? Tendo em conta os outros candidatos à Presidência, o descalabro dos partidos tradicionais, a recorrente tentação xenófoba e populista que se arrisca a tornar-se transversal nos agrupamentos políticos franceses, seja qual for a cor com que se apresentam, atrevo-me a pensar que o choque Macron e essa estranha coisa que se chama “A República em marcha”, poderão ser úteis ao país, à Europa, e - o que é diferente – aos cidadãos europeus entre os quais estamos nós, portugueses.

 

 

 

Estes dias que passam 355

d'oliveira, 19.06.17

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“A morte neste jardim”

(enterrar os mortos e cuidar dos vivos)

As imagens (muitas vezes sensacionalistas) que gulosamente as televisões repetem vezes sem conta, deviam fazer-nos reflectir. Como é que, num país onde Verão após Verão, se sucedem as chamas, as mortes, a ruína dos mais pobres, dos mais velhos e dos mais distantes, ninguém atenta nesta horrenda verdade: gastamos em combate aos incêndios mais (muito mais, várias vezes mais) do que Espanha, França, Itália ou Grécia.

Todavia basta reparar nas imagens: mato por todo o lado, floresta desorganizada, estradas e caminhos, bem como as casas, paredes meia com as árvores. Basta uma chama e vai tudo. Sabemos disto desde há décadas. O interior perde gente, antigas terras agricultadas ficam baldias e selvagens, quem resta investe em eucaliptos e pinheiros, numa desordem que agora cobra um alto preço. Sessenta e um mortos! Para já. Mas é infelizmente previsível que esta macabra contagem continue a registar progressos. Há desaparecidos, as frentes de fogo continuam activas, o calor não baixa, o vento continua a soprar com força, a humidade atmosférica está em níveis baixíssimos.

E o Verão ainda nem começou...

De quem é a culpa? Vai, mais uma vez, morrer solteira? Desta feita não há incendiários, desculpa muitas vezes fácil e esfarrapada que oculta as falhas políticas de todos, Governo, autarquias, pequenos proprietários rurais, proprietários absenteístas ou emigrantes. Não há prevenção que se veja. Ou seja, quando, desde há muito, era imperioso ordenar a floresta, criar leis que o permitissem, punir quem não limpa os seus pinhais e florestas, tornar as estradas nacionais seguras sem barreiras de sombra e de árvores (nunca esquecer que boa parte das vítimas morreu na estrada em fuga, em pânico, perdidas pessoas e bens). Quem ficou teve melhor sorte: até ao momento, pese a angustia, o medo, a desolação, ainda está vivo.

Quem viaja por esse interior intensamente florestado, repara na falta de “estradões” corta fogo. Basta ir a Espanha para ver como se faz. Quem passa pelas matas ordenadas pertença das grandes papeleiras, vê que aí tudo ou muito, ou alguma coisa, se fez para prevenir o incêndio. Prevenir é melhor, é mais barato, é mais futurante do que remediar.

Cada vez se gasta mais em aviões, em helicópteros, em equipamento pesado de bombeiros, em formação. Desgraçadamente, graças a um conjunto dramático de coincidências, tudo isso se mostrou inoperante.

Parece que não há guardas florestais! Parece que nada ou pouco regulamenta as plantações ou simplesmente o que lá está. Grande parte da floresta nacional portuguesa desapareceu sendo substituída pelas plantações rápidas desde o pinheiro ao eucalipto. Que ardem com facilidade, como se vê. De resto, a floresta arde, sempre ardeu, especialmente a mediterrânica. Temos de viver com isso, aliás vivemos com isso há centenas ou milhares de anos. Mas, pelos vistos, não aprendemos nada. Durante séculos a floresta era protegida pelos rebanhos, pelas pessoas que iam por mato para camas dos animais, para aquecimento. Agora não há pessoas, o aquecimento faz-se a gás e os rebanhos são escassos. A erva cresce, seca, torna-se combustível sem mais. E arde.

Agora, o tempo é de choro e de apelos à solidariedade (de todos) e à coragem dos que perderam tudo, para não falar dessa outra quase certeza: daqueles que, durante os próximos três meses irão perder terras, casas, gados, bens, parentes e amigos.

Lamentavelmente, se acaso a selecção se safa, este desastre passará para um plano mais opaco. Se, ao menos, estes primeiros dias de apelos se traduzirem numa ajuda razoável às vítimas sobrevivas, já teremos um milagre mesmo se o verdadeiro auxílio seja a inflexão das políticas da floresta, milagre dos milagres, quase impossibilidade teórica e prática.

Senão... as árvores voltarão a crescer (sobretudo os eucaliptos que convivem com o fogo) a desordem continuará viva e alegremente irresponsável, os estradões ficarão no papel, os guardas florestais brilharão pela ausência, os bombeiros voltarão a receber mais equipamento e as mortes seguramente repetir-se-ão. Como a frágil comoção pública e o dedo apontado aos incendiários (parece que alguém teria pensado numa espécie de prisão preventiva domiciliária dos eventuais ateadores de fogos!!!)

 

Nas reportagens que fui vendo, dois destaques: as televisões repetiam continuamente as mesmas imagens e as mesmas entrevistas numa ânsia de gastar tempo e ganhar audiências.

Vários populares afectados pelos incêndios entenderam queixar-se dos bombeiros (nove ou dez deles já feridos e hospitalizados) que não os ajudavam a salvar os parcos bens, a casa, o terreno. Nem sequer percebiam que os bombeiros tinham uma missão bem mais dura, mais perigosa e mais urgente: salvar todos, circunscrevendo o avanço do fogo. As televisões adoraram estes queixosos, deram-lhes a palavra sem perceber a verdadeira missão de quem informa sobre um desastre medonho e que é não ceder ao fácil, à demagogia e ao egoísmo. Mas isso seria pedir demais aos repórteres no “terreno”, não acham?

 

* O título do folhetim pertence a Luís Buñuel que para este filme (1956) requereu Simone Signoret e Charles Vanel.

O subtítulo pertence ao Marquês de Pombal. Era um déspota, um ambicioso, um parvenu mas também soube ser eficaz. Por vezes, demasiado “eficaz”...

 

 

diario político 214

mcr, 16.06.17

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Ir por lã e voltar tosquiado

A Sr.a Teresa May, depois de suceder ao Sr. Cameron na chefia dos conservadores ingleses, entendeu (contra, aliás, anteriores declarações) aumentar significativamente a maioria absoluta que detinha nos Comuns. A razão, afirmava esta deprimente caricatura de Margaret Thatcher, seria poder abordar as negociações do Brexit com reforçada força.

A Sr.ª May era uma obscura política tory sem historial relevante mas a espantosa falta de argúcia de Cameron (que promoveu o referendo sobre o Brexit para continuar na Europa!...) catapultou-a para a primeira linha. Pelos vistos, Boris Johnson e outros do mesmo teor, reservavam-se para mais tarde pelo que abriram alas à passagem desta dama que ninguém de bom senso caracterizaria como “de ferro”.

A Srª May, além de outras bizarrias, acredita(va) profundamente nos ziguezagues da opinião pública e, com alguma razão, descria das escassas qualidades do chefe trabalhista Corbyn. De facto, esta criatura, também ela caricatura mas de Aneurin Beevan, é o representante no Reino Unido e na Europa, de um malogrado sebastianismo socialista e, sobretudo, de uma pertinaz miopia política e social que visa fazer regredir o programa trabalhista aos tempos de antes da guerra se é que não vai ainda mais longe.

Criticado dentro do Labour e, mais ainda, fora dele, enfraquecido pelo tombo eleitoral na Escócia que parecia passar-se de armas e bagagens para o independentismo, Corbyn aparentava ser uma vítima perfeita para um maior engrandecimento dos conservadores.

Ainda hoje está por perceber se May acreditava numa segunda volta do “Brexit” engrandecendo os tories, ou se pretendia tão só afirmar internamente a sua autoridade. De todo o modo, atirou-se de cabeça para umas eleições falhas de objectivo, ou com objectivo limitado à negociata do “Brexit”. Como se isto fosse pouco, May esquecia anteriores posturas de não recorrer a eleições gerais. Por outro lado, cereja em cima do bolo, afrontava o seu eleitorado mais fiel (a população mais idosa) com uma delirante taxa sobre pensões.

A Corbyn bastou esperar, fazer poucas ondas e a reafirmar contidamente os temas menos controversos do seu programa. O homem pode ser reaccionário (e é-o...) mas de parvo não tem nada. Deixou a adversária esticar a corda esperando, com razão, vê-la enforcar-se.

O terceiro comparsa nesta campanha é a dirigente da Escócia. Opositora de May e tendo esmagado os trabalhistas que, durante décadas, tiveram na região um dos seus maiores e mais aguerridos feudos, a Sr.ª Nicola Sturgeon, pôs em lume brando a causa independentista por razões várias, a mais importante das quais é o facto da Europa tratar com pinças a questão (a Catalunha, o País Basco, a Córsega, para não ir mais longe, por exemplo à Flandres já são dores de cabeça suficientes e violentas para Bruxelas). Todavia, Sturgeon estava convencida que a Escócia, depois do tsunami nacionalista, era “trigo limpo, farinha Amparo”, como em tempos se dizia. De facto, nesta guerra de trincheiras, os escoceses estavam numa posição delicada para não dizer incómoda. Não queriam sair da Europa ou, saindo, gostariam de um acordo tão sensato quanto possível. May prometia tudo, até isso, o que esvaziava a posição de Sturgeon.

Foi neste vago labirinto que a campanha se processou. Os eleitores, porém, não descortinavam a razão das eleições ou, quando pensavam ter percebido, enfureciam-se. Os citadinos e os jovens anti-brexistas, abominavam os conservadores e May a sua falsa profeta. Os idosos sentiam-se ameaçados, os trabalhistas rosnavam vingança, escoceses e irlandeses sentiam-se órfãos.

Foi assim que numa noite de prodígios e assombros, May se viu apeada da sua maioria, Corbyn, graças a ela, seu involuntário cabo eleitoral, saiu confortado com o resultado inesperado da desconfiança que a inábil May provocou no seu eleitorado. E Sturgeon? Pois Sturgeon também se viu a saltar da frigideira para o lume. Perdeu quase metade dos seus deputados. Pior: uma parte deles foi directamente para os conservadores desmentindo, por uma segunda vez, que aquilo era território trabalhista momentaneamente obnubilado pela visão de uma Escócia fugida à Rainha.

Na Irlanda, dez deputados todos vindos da minoria protestante, ultra-reaccionária, poderão ser os garantes da sobrevivência de May. A que preço?

May, agora, pede desculpa ao partido. Este finge aceitar enquanto se vai preparando para contar as espingardas. A Europa espera pacientemente pelas negociações mesmo que estas não sejam seguramente fáceis que o velho leão mesmo ferido ainda impõe algum respeito. De todo o modo, o interlocutor britânico parte com menos vantagens.

Se a isso se acrescentar o resultado das eleições francesas e a previsível vitória de Merkel (confortada por três triunfos regionais consecutivos e convincentes) a vida da Srª May não vai ser fácil.

Ainda bem!      

 

Au bonheur des dames 410

d'oliveira, 16.06.17

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Estamos bem melhor e há muitos anos

 

No “Público” há hoje uma reportagem sobre os efeitos benéficos do Erasmus. Não tenho quaisquer dúvidas sobre isso, basta-me ver o que se passa com uma série de familiares jovens que, ao contrário da minha geração, puderam conhecer mundo sem perder os contactos académicos e por preço acessível.

Sou de um tempo em que viajar ficava caro, caríssimo e estava absolutamente fora do alcance de quem era jovem. Nesses tempos longínquos nem sequer era ainda concebível a primeira revolução ni turismo jovem, o “inter-rail”.

Todavia, apesar disso, dessa dificuldade quase absoluta de viajar, para já não falar dos custos e da possibilidade de ter passaporte (coisa que nos anos de guerra 1961-1974 era quase milagrosa), tive a enorme sorte de poder viajar. E nesse viajar incluo a ida para Moçambique quando tinha 13 anos. Tirando a língua, tudo era diferente, maior, menos convencional, menos (muito menos, pelo menos para os “europeus”) pobre. Até o liceu que frequentei tinha uma característica inédita nos anos 50. Era misto. Melhor dizendo, era misto no 3º ciclo, mas a zona das raparigas só se separava da dos rapazes por um largo pátio central.

Quando regressei à pátria madrasta (à “metrópole”) para acabar o liceu e fazer a universidade pude dar-me conta do fosso que três anos em África representavam. Numa palavra era bem mais cosmopolita do que os meus colegas. Com o passar dos anos, além de ter voltado para férias em Moçambique, comecei a poder viajar pela Europa. A Espanha, a França, a Bélgica e depois a Itália, a Alemanha a Holanda e por aí fora. Claro que, seguindo uma palavra de ordem de Jorge Delgado, um sogro que foi um pai, um amigo, um mentor e um camarada, dispus-me a ir a todo o lado desde que pudesse passar por Paris. Mais tarde, estendi a ideia a Berlin, Roma e Amsterdão. Quando conheci Nova Iorque, foi como se regressasse a casa. Só em Paris, graças ao Lagardére (Paul Féval), ao Vitor Hugo, aos Mosqueteiro (saravah, querido Alexandre Dumas, homem livre e combatente pela liberdade) e a um punhado de franceses mais, tive idêntica sensação. Calcorreava as ruas desde o 1ª ao 7º bairros e tudo me falava a velhas aventuras, lidas desde que me lembro de ler. Que emoção andar pela re Tournon e saber que ali vivia d’Artagnan e, mesmo ao lado, Athos ou Porthos. Acho que, ainda hoje, conheço melhor Paris que Lisboa ou o Porto. Em Veneza, discuti cinema, o velho cinema dos anos 40/5o com um punhado de locais que não acreditavam que existisse um portuga capaz de se recordar (e citar) “Não há paz entre as oliveiras” ou “Arroz amargo”, filmes do enorme Giuseppe de Santis que hoje está tão (mal) esquecido. Em Pescara, ofereci a uma florentina, linda como os amores e ourives, “Portogallo mio remorso” de Alexandre O’Neil numa tradução belíssima de Joyce Lussu que, depois descobri ser mulher de Emilio Lussu, grande dirigente de “Giustizia e Libertá”, várias vezes preso, exilado (inclusive em Portugal) e autor de um livrinho (Teoria da Insurreição”) que nos anos sessenta me impressionou fortemente. Andei 30 anos à procura do livro e quando desesperava (já nem era citado no catálogo da editora Einaudi) consegui-o num alfarrabista italiano encontrado na internet.

Destas viagens trouxe quilos, quintais, toneladas de livros que me habituaram a ler no original centenas de autores. Isso, a curiosidade, a vontade de perceber, fizeram-me ainda mais europeu mesmo se a minha costela da praia de Buarcos, nunca me permitisse esquecer este amaldiçoado rincão tão maltratado pelos seus indígenas, tão descuidado pelos seus políticos e tão sofrido pelos menos afortunados que buscam sob sois menos clementes ou menos brilhantes o pão nosso de todos os dias.

Cosmopolita, pois, mesmo se a tal condenado pelos anos de chumbo. A liberdade vinha de fora, o conhecimento também. Hoje, e era a isso que eu vinha, os vinte anos do programa Erasmus estão em vias de criar uma elite universitária, mais livre, mais disposta conhecer o outro, a reconhecer-se nele, a ver o estrangeiro como um vizinho.

Durante os meus tempos de estudante de “Direito Comparado”, conheci umas     centenas de colegas vindos de toda a Europa (só não havia, et pour cause, russos ou chineses!)e, em menor grau, de outras partes do mundo. Foi nessa amável e gloriosa época que, um alemão me confidenciou que nunca poderia fazer a guerra contra outros povos. Porque os conhecia, através de nós, colegas e amigos, aprendizes bem dispostos de um par de regras de convivência jurídica internacional.

O medo, a estranheza pelo estrangeiro vencem-se pelo convívio, pela tentativa por vezes torpe de falar outra língua, de entender o que nos tentam dizer. Na primeira vez que pisei a Grécia, soltei as duas únicas palavras que sabia, kalimera e/ou kalinicta (– não garanto a grafia.) isso para dizer bom dia ou boa noite, palavras ensinadas por um chef de mesa de um restaurante chinês (!), aqui do Porto.

Foi uma alegria: uma inteira família, que digo?, um clã de gregos guinchou de prazer, cobriram-me de palavras e antes que eu conseguisse dizer que era português já circulavam numa improvisada mesa vinho, azeitonas, pão, queijo e uns tomates comoventes de saborosos. Aquele improvisado ágape (palavra grega) durou horas de conversas impossíveis, risos, cantigas, muita gesticulação. Adoptaram-me, claro, e vi alguma Grécia pelos olhos e companhia deles, orgulhosos de se mostrarem e mostrar uma terra que, ao fim e ao cabo é de nós todos, europeus. Nem a uma missa escapei e a dois baptizados. Descobri que o pope do lugar comia como um abade lusitano dos velhos tempos. E bebia como dois cónegos dos nossos, dos de antigamente. Em boa verdade nem àágua dizia não. Também é verdade que a misturava com um vinho escuro, espesso, oleoso que a mim me soube a papel de música. Ou então já estava também bem servido e melhor bebido.

O Erasmus é o modo mais rápido, mais barato e mais inteligente de criar cidadãos portugueses europeus. Cai na idade de todos os espantos, da aventura possível, da novidade e dos amores de Verão (ou de qualquer outra estação, convenha-se, que a “juventude é”, como afirmava, certeiro, Ruben Dario, outro cosmopolita, “um divino tesouro”).

estes dias que passam 354

d'oliveira, 12.06.17

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Crónica de um naufrágio sem glória

 

Agora que os resultados da 1ª volta são conhecidos é fácil “fazer prognósticos” como, ironicamente se diz no futebol. Todavia, esta hecatombe sofrida pelo PS anunciava-se há muito. O PS francês vivia em respiração assistida muito antes de Hollande chegar à Presidência. Ouvir os tenores do partido nas televisões era já um exercício penoso. As pessoas perguntavam-se como é que numa capoeira com mais galos que galinhas havia uma espécie de paz. Não havia, claro mas o ruído dos duelos era “feutré” e a opinião pública distraía-se com os faits divers dos humores e amores do Presidente, coma escandaleira suscitada pelas acusações de uso indevido de dinheiros (públicos e privados) pelos sarkozistas e, sobretudo pela indefinição das alas mais radicais dos partidos de poder.

Ao longe, ou bem mais perto, a FN ia ganhando terreno nos antigos feudos proletários e aparecia como uma grande triunfadora nas eleições europeias, coisa que, para muito comentador estrangeiro, terá passado quase despercebida. As pessoas ainda acreditavam na política de cordão sanitário usada nas eleições internas (municipais, regionais, legislativas e presidenciais) para atirar para debaixo do tapete a incómoda realidade da Extrema- Direita. Nisto, a França, certa França, sempre deu lições a começar pela cambalhota no final da 2ª Guerra Mundial que transformou um país vencido (e, em muitos casos, convencido) na pátria da Resistência.

Começou aí o mito de uma nação de esquerda, indomável, em que um partido calado (quando não vagamente colaborante) até À invasão da União Soviética se pode apresentar como o campeão da revolta, da insubmissão (onde é que já ouvi isto?), o partido dos mártires (confundindo neste termo os mortos militantes e todos os que, sem partido, sem causa, sem acção ou reacção, eram massacrados pelos ocupantes alemães em guisa de resposta aos atentados).

Então, entre nós, a coisa foi excessiva: francófonos e francófilos desde sempre (e neste “sempre” incluo os anos das dramáticas ocupações francesas logo no início do século XIX) a bitola política foi sempre aferida pelo modelo francês. Até o dr Soares falava no seu “amigo Miterrand”, provavelmente por ser o francês a única língua europeia que(tant bien que mal) dominava.

Boa parte da inteligentsia indígena viveu o exílio em Paris, moldou-se nesse cadinho, importou todas as modas intelectuais gaulesas, desprezando ao mesmo tempo tudo (ou quase) o que se passava no resto do mundo. Suponho que terão ficado muito tristes com os resultados do tsunami deste domingo.

Todavia, que esperavam? Será que não viam o cansaço dos eleitores, a ineficácia das medidas económicas, o retrocesso da economia francesa, ao imobilismo social decorrente da incapacidade de vencer uma espécie perversa de direitos adquiridos por todo o género de corporações, muitas delas justamente sustentáculos dos partidos de poder?

Ontem, na televisão francesa, o actual Primeiro Secretário do PSF , Jean Christophe Cambadelis , advertia contra os perigos de uma excessiva maioria de Macron. Ou seja, fazendo jus, às suas origens trotskistas, Cambadelis entendia que o povo tinha votado mal. Tinha dado o seu sim a uma espécie de coartamento das liberdades democráticas. Uma maioria tão forte, quanto a que é possível imaginar, transformaria o exercício da Presidência num passeio ao campo, e esmagaria o diálogo e o confronto são de ideias. Felizmente, está fora da Assembleia. Perdeu como perderam todos os grandes dirigentes, Hamon incluído. A votação popular não lhes deu qualquer hipótese. Como se os eleitores quisessem dizer “entre estes os próximos de que se desconhece tudo ,antes os segundos. A seu tempo poderão ser corridos.”

O desastre da Esquerda estende-se implacavelmente aos seguidores de Mélenchon e, menos, ao PC que já era quase irrelevante. Com o picante de, em muitos casos, ser a “França Insubmissa” a passar o atestado de óbito aos candidatos do PS.

E a Direita?

OS Republicanos (LR) são também fortemente derrotados mas, apesar de tudo, salvam a mobília. Aparecem já como o segundo maior bloco na Assembleia. Com a vantagem suplementar (e não é assim tão pouca)de serem um partido estruturado, experimentado face a uma coligação onde pouco está definido estrategicamente ( e mesmo tacticamente...) Se alguma fragilidade há em La Republique en Marche esta é a mais evidente. É um bloco protestário, inconformado com o pântano político, mobilizado por u político capaz mas ainda sem a hierarquia necessária, mesmo se mínima, que permita, além do não rotundo à situação actual, um claro sim a medidas mobilizadoras e restauradoras de uma certa grandeur française a que indiscutivelmente Macron aspira.

E a Extrema Direita de Madame Le Pen, Philipot (para já salvo in extremis)? Apanha um grande balde de água fria, aliás um resultado mais consentâneo com a sua real influência na sociedade. O sistema de duas voltas pode ditar-lhe uma sorte negra. Para tal basta que funcione, ou volte a funcionar, o “cordão sanitário”. Neste capítulo, e diferentemente do que sucedeu na 2ª volta das presidenciais, Mélenchon já se pronunciou contra a FN, apelando a votar no candidato que a enfrenta, circunscrição a circunscrição. Claro que, neste caso, Mélenchom persegue um outro objectivo: ter mais deputados do que Marianne Le Pen. Nisto o ego da criatura, émula de Maduro, também conta!

Uma palavra final para o senhor Manuel Valls, ex-primeiro ministro socialista, ex-derrotado nas primárias do PS, ex sabe-se lá mais o quê: passa à 2ª volta graças a não ter tido pela frente (Favor de Macron) candidato LREM. Cabe-lhe derrotar uma senhora melenchonista. Se eu fosse eleitor dessa circunscrição poderia contar com o meu voto. Mal por mal antes um europeísta do que uma caricatura pro-venezuelana.            

o leitor (im)penitente 205

d'oliveira, 09.06.17

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Manuel Alegre

Um belo dia

Estou na esplanada do costume, frente às árvores e aos cães que correm num dia de sol, quente e macio. Já tomei o primeiro café da manhã, beberrico a água que a jovem e amável empregada me trouxe e leio no jornal a notícia: o Manel (Alegre) ganhou o Camões! Eu, nisto de prémios, só me lembro das boas notícias. Por exemplo o Nobel ao Cela que sempre li com gosto e divertido. No ano seguinte foi o Octávio Paz: nova alegria. Caseiramente vários bons e velhos amigos foram distinguidos. O Zé Mattoso e o Herberto Hélder, o Craveirinha e o Manuel António Pina, só para lembrar os que imediatamente me ocorrem. A alguns deles liga-me uma amizade de 30, 40 ou mais anos. Agora o Alegre que eu, caloiro na lúgubre Faculdade de Direito, conheci em 1960. Acho que foi ele que, protetor e amigável, me chamou o “caloiro que gosta de Rilke”. A partir desses dias partilhei com ele lutas e desencantos, perseguições e esperança, bons dias e outros maus. Recordo-lhe a voz forte e poderosa nas “Magnas” no pátio do velho convento dos Grilos, então sede da Associação Académica, os primeiros poemas publicados na “Via Latina”, uma memorável bebedeira na véspera da partida dele para Angola. O Manel, sempre dramático, envolvido na capa, cantava qualquer coisa como “capa negra, rosa negra, rosa sem roseira” tema depois musicado por um dos nossos companheiros dessa noite, o Adriano. Talvez também estivesse connosco o António Portugal, cunhado do Manel, guitarrista exímio e amigo certo que ainda hoje choro. Éramos jovens, vivíamos a esperança, apesar de tudo a nossa comum juventude era mais de vinho e rosas do que de chumbo e cólera. Mas a guerra espreitava. Espreitavam também o exílio dele, as nossas prisões, as nossas desilusões. Nos anos em que estava longe, por várias vezes tive ocasião de o lembrar. Quanto mais não fosse porque uma vez tive, jovem advogado, de ir amedrontar um editor, livreiro gatuno e oportunista, que publicara uma contrafação de um dos seus livros, enchendo-se de dinheiro. Foi a minha mais rápida e mais saborosa vitória: o energúmeno nem tugiu nem mugiu e passou-me para a mão umas dezenas de contos que fui pressurosamente entregar à minha editora (Centelha, Coimbra) que de seguida os entregou à mãe do poeta para lhos fazer chegar ao exílio.

Depois do 25 A, fomo-nos encontrando sobretudo em festejos de homenagem à AAC, ao CITAC, às nossas comuns e antigas lutas estudantis. Amigos queridos foram morrendo, já citei dois, e dos melhores, o António Portugal e o Adriano Correia de Oliveira, sem esquecer, claro, o Fernando Asis Pacheco, outro membro dessa inconsútil frátria nascida na velha Universidade, nas ruas da Alta, na praia da Figueira e no frenesi de mil conspirações (e aqui saúdam-se dois outros queridos amigos e poetas, também: Rui Namorado e António Lopes Dias, felizmente vivos e a escrever, eles também desses longínquos anos coimbrãos, dos “Poemas Livres”, da “Vértice”, das noites do “Mandarim” e da Praça da República -naqueles tempos ingénuos felizes havia quem dissesse “Kremlin e Praça Vermelha”.

Depois, já por este século, apoiei-o por duas vezes nas campanhas para a Presidência da República, mesmo se da segunda vez, como então lhe disse e ele agora reconhece, só a amizade de dezenas de anos me fizesse dar tal passo

Mas voltemos ao dia de hoje: o Manuel Alegre ganha o Camões. Ganha-o sem rivais, sem segundas voltas, sem hesitações. Ganha-o graças a um júri internacional (um beijo, Maria João Reynaud, amiga antiga da mesmíssima Coimbra, se bem que muito mais nova) que deixa constância da motivação do prémio: a intrínseca qualidade poética e a honrada e constante luta pela liberdade, pela dignidade humana, por Portugal e por África.

Este prémio não honra apenas o Manel. Honra (como já acontecera com o Manuel António Pina) uma geração de intelectuais e cidadãos que disseram presente a todas as lutas destes últimos cinquenta anos. É provável que nem sempre tivéssemos a razão pelo nosso lado, que por vezes olhássemos a realidade com óculos demasiado fumados e torpes, que pecássemos “por pensamentos, palavras e obras”. Todavia, num saldo quase final a que a idade e proximidade da morte nos obriga, tenho por certo que cumprimos o nosso dever, que defendemos honrosamente a liberdade e a esperança.

Tenho por mim que merecemos o verso (lembrança de Villon) de Brecht

Vós que haveis de surgir das

cheias

Em que nos afundámos

................

pensai em nós

com indulgência.

Um abraço, querido Manel. Mais abraços Rui e Didi e outros  não mencionados mas sempre presentes, vocês que resistiram às cheias e à praia hostil onde agora sobrevivemos. O dia é de festa!

Cave diem!

 

* na gravura: Kandinsky, movimentos 4

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