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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Au bonheur des dames 432

mcr, 23.10.17

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Ay flores do verde pino

(mcr 23.Out. 2017)

 

Saberão as leitoras (e os leitores, espero) que andam por aí (ou pelo menos em países mais civilizados e mais amigos da floresta) um par de livros que asseguram que a floresta, enquanto tal, age como um ser vivo ou seja as plantas (no caso as árvores) tem estratégias de desenvolvimento, de crescimento e de defesa comuns. Há, pelos vistos, uma actuação solidária perante as ameaças sejam elas um fungo, malévolo ou até a acção de animais. Fiquei fascinado com esta tese e encomendei já o livro mais recente sobre o tema que mereceu, de resto, artigos nas mais sérias revistas científicas do mundo.

A ser verdade, e tudo o indica, à floresta portuguesa calhou o mais temível ataque possível. O fogo. Não que as florestas (e em particular a floresta mediterrânica) não ardam. Ardem e há mesmo nesse fogo “normal” aspectos positivos. Existem mesmo árvores que necessitam do fogo para libertar as sementes.

Todavia, em Portugal, sempre em Portugal, a floresta é vítima de fogo a mais, de Governo a menos, de descuido, de descaso, de ignorância.

Desta feita, foi com o seu dramático cortejo de vítimas humanas e de milhares de animais domésticos ( gado, aves de capoeira, cães e gatos...) mais uma forte porção do pinhal interior que desapareceu. E, com ele desapareceram, casas, campos lavrados, apetrechos agrícolas, cabos eléctricos, condutas de água, fábricas e toda a sorte de veículos de trabalho, de transporte ou de recreio.

No meio dessa medonha devastação, perdeu-se oitenta por cento do Pinhal do Rei. Do pinhal dito de Leiria que em boa verdade chega até à minha terra (Figueira) e continua para lá do Cabo Mondego até Mira.

O pinhal do Rei tinha setecentos anos! Setecentos anos! Quase a idade deste desgraçado país, longe de Deus e perto, demasiado perto, de homens sem fé nem lei, de um Governo (aliás, de vários governos sucessivos) para quem o país é um longa praia de Setúbal até Viana, da rebentação até trinta, quarenta, vá lá cinquenta quilómetros para dentro. Um país onde cabem Braga, Guimarães, Aveiro, Coimbra, Leiria, eventualmente Santarém e, mais longe uma faixa costeira do Algarve onde o verde da vegetação se deve apenas aos campos de golf criados para os estrangeiros que eventualmente apreciam mais o nosso país do que os instalados no Terreiro do Paço. No próprio e nos que sobram em mais meia dúzia de cidades que do campo só sabem que é very tipical e que é de lá que vem o vinho, o presunto, as alheiras e o queijo da Serra. E as azeitonas, se para o ano houver que cheguem depois de milhares de oliveiras (que dura(va)m centenas de anos) terem ficado carbonizadas.

O pinhal de Leiria, as “matas nacionais”, o pinhal do Rei (e era assim que todos quantos nos importamos com a nossa herança, a nossa história, a nossa diferença, a nossa cultura) o chamavam, ardeu. Corre o risco de desaparecer. Era um monumento nacional vivo, “resiliente” como algum imbecil governamental diz, era tão nosso quanto a Batalha, os Jerónimos ou o castelo de Montemor. Respirava, era um imenso pulmão, uma defesa contra as areias, dava pinhas e acolhia centenas de animais. E dava, deu sempre, madeira para construção civil, soalhos, móveis, barcos sei lá que mais.

Este pinhal tinha menos guardas do que o museu dos coches (cuja nova sede custou milhões que faltarem dramaticamente nas terras abandonadas da “selva” interior). E dois solitários técnicos.

Não é por acaso que boa parte da mancha ardida elege um pequeníssimo número de deputados. O interior forneceu criadas, operários, emigrantes para a cidade, para os Brasis, para a Europa e para o mundo. Nada de importante, só gente que, com as pobres e honradas mãos, ainda tentava dar vida a um extenso território, a mais de 70% do território nacional. Só gente que combateu as chamas com ramos de árvore, com baldes de água, com mangueiras antigas e pouco eficazes. E, todavia, sabe-se de muitos casos de homens e mulheres que salvaram outros, muitos, homens e mulheres. E animais. Há a história de um morto a tentar salvar os cães. A outro, sucedeu-lhe o mesmo quando tentava libertar um par e vacas que nem dele eram. Mas pelos vistos, ou segundo aquela execrável criatura que passava por governante, não eram “resilientes”. Ou segundo uma outra, ainda mais cavilosa, só sabiam pedir ajuda, aviões e bombeiros. Note-se que toda esta gente paga impostos. Os mais idosos andaram numa guerra em terras desconhecidas para defender interesses duma burguesia nacional, o ventre que pariu boa parte das cliques dirigentes.

Vejo-os na televisão com o Presidente da República. Há lágrimas, como não? As lágrimas são próprias do homem. Ou de alguns, quase todos, mas não de um Primeiro Ministro a quem não se pedia choro mas tão só algum consolo, alguma piedade, uma palavra, uma simples palavra. que surgiu tarde, depois do discurso, do grande discurso, e eu não fui, não sou e não me parece que alguma vez seja, um fã de Marcelo Rebelo de Sousa. Critiquei-o aqui, várias vezes, antes e depois de ser Presidente, mas, neste momento tremendo, confesso a minha admiração pelo seu discurso e mais ainda, muito mais, pela sua incansável peregrinação pelas terras devastadas. Aqueles portugueses tiveram, provavelmente, pela primeira vez, uma imagem decente do Estado. Desta feita, ninguém lhes vem cobrar impostos, taxas, dar ordens, transmitir proibições, olhá-los como bichos. É caso para dizer: ainda bem que nenhum governante lá apareceu. Ao ver-lhes as caras de pau, a verborreia tecnocrática, política (baixa política), a confissão de impotência sobe-me uma raiva que só é compensada pela imensa dignidade das vítimas que nem na desgraça foram poupadas à absoluta imbecilidade das declarações que todos conhecemos.

E o pinhal do Rei... um pinhal que estava à responsabilidade do Estado! Onde, nos tempos do antigamente, havia mais de duzentos guardas florestais e trabalhadores diversos, sobravam dez e dois técnicos. Será o Estado “resiliente”?

Os investimentos que faziam falta há anos, ou mais prosaicamente há quatro meses, aparecem agora de supetão!

E o pinhal? Duvido que em minha vida, no que me resta viver, o volte a ver, vivo e sano (como o amigo no poema que dá título a este folhetim) A vê-lo como o via, quando todos os meses, à passagem pela A17 e A8 na minha ida mensal a Lisboa para visitar a minha Mãe. Apesar de tudo, a esperança (e eu sou um optimista) é teimosa. Há uns anos vi arder o parque da Serra da Boa Viajem, na Figueira. Um parque onde brinquei, namorei, vivi. Está de novo em pé, vivo, verde, pujante. E era também uma floresta do Rei (no caso, porque quem incansavelmente o criou, quase do nada, se chamava Rei).

Só por isso, sonho com voltar a ver o pinhal de Leiria, restituído à sua verde grandeza e ao nome que, durante séculos, os povos lhe davam. Tanto mais que aquilo de “matas nacionais” afinal nada significava. O Estado, neste caso, portou-se como o pior dos proprietários.

.......

Era por aqui que eu terminaria o meu texto. Porém, ao ouvir o dr Miguel Sousa Tavares e umas criaturinhas do BE, numa fúria apocalíptica e anti-eucaliptica, deu-me para perguntar a estas robustas mentes citadinas: o que é que um camponês do interior, dono de pequenas parcelas de floresta, pelas quais paga imposto, há-de ter para poder assegurar um pequeno, pequeníssimo rendimento? Pinheiros que demoram a crescer o dobro do tempo? Carvalhos ou castanheiros que demoram seis a oito vezes mais? De que vive nessas décadas de intervalo? A senhora Martins quererá propor a funcionalização dos habitantes do interior? Dar-lhes umas fardas verde-azeitona e pô-los todos na carreira administrativa da restante funçanata pública, que de resto logo em começo de carreira ganha o dobro de um agricultor do interior?

Será que o dr Tavares que, dizem-me, é proprietário de um monte alentejano, já por lá plantou alguma árvore que eventualmente nunca verá adulta? Ao menos um par de oliveiras, meia dúzia de sobreiros ou, vá lá uma azinheira das que acabam por não saber a idade?

Quanto à senhora Martins não peço tanto. Não me atrevo a perguntar-lhe nada sobre botânica. Apenas me temo que sobre isso não vá mais longe do que vai na política.

 

* as duas ilustrações são um antes e um depois do pinhal do Rei As imagens tem tamanhos diferentes porque eu sou um desastrado que não sabe fazer melhor. Mas acho que se percebe bem o que me vai na alma e,sobretudo, o que vai por lá.