A revolução de Outubro foi em Novembro (II)
(d'Oliveira fecit 7.XI.17)
Passam hoje cem anos sobre o inicio da revolução bolchevique (e não Revolução russa, como por aí corre: esta começara havia meses, logo no início do ano com a deposição do Czar e as tentativas de formar um governo que conseguisse segurar a rua, manter a guerra, alimentar o povo e os soldados e criar estruturas democráticas duradouras. Dentre os diversos grupos revolucionários (e eram bastantes) os chamados bolcheviques (maioria) não se distinguiam particularmente. Era mesmo duvidoso que, dentro do Império Russo fossem a maioria do antigo Partido Operario Social Democrata Russo, como começou por se chamar. A minoria (mencheviques) fora batida no exterior (Suiça) mas hoje parece pacífico que no “interior” teria mais adeptos.
Logo que a Revolução se tornou conhecida, Lenine e um grupo de partidários, exilados na Suiça, conseguiram regressar à Pátria num “comboio selado” fornecido pelos alemães que esperavam, com fortes razões, que a chegada deste grupo a Petrogrado aumentasse as dificuldades do Governo Provisório. Corre, em alguns meios, a acusação de Lenin ser um agente dos alemães. Nada o confirma, tanto mais que, desde o primeiro dia, o dirigente bolchevique lançara a palavra de ordem “Paz imediatamente”. Claro que isto favorecia os alemães que assim ficariam livres de uma enorme frente onde aliás a guerra lhes corria de feição. O exército russo, mal armado, mal preparado, mal dirigido só tinha a pequena vantagem do número mas nem isso era importante tanto mais que os exércitos dos impérios centrais tinham soldados de vinte etnias e línguas (muitas delas eslavas) o que enfraquecia sobremaneira a cadeia de comando além do que, como já era conhecido, não garantia a fidelidade de muitos combatentes.
Lenin não é (nem era) flor que se cheire mas agente dos alemães é demasiada ousadia.
Como se sabe, ou não, a palavra de ordem “todo o poder aos sovietes” ou seja aos conselhos nascidos espontaneamente à imagem e semelhança do que sucedera em 1905, foi o argumento usado para desacreditar e enfraquecer os poderes do Governo em funções.
Lenin era um temível estratego e percebeu, mesmo entre duas fugas para local mais acolhedor, que se a rua tivesse o poder as possibilidades de êxito de um pequeno mas disciplinado grupo de revolucionários, eram incomparavelmente maiores. Mais, com o controle do soviete de Petrogrado (por Trotsky) dotava-se de uma vaga legitimidade que mesmo sem a respeitar, lhe servia para desacreditar os adversários.
A tomada do Palácio de inverno foi um passeio. A defesa deste desmoronou-se antes de começarem os combates e só uns vagos pelotões de mulheres soldados opuseram algum frágil resistência. Hoje em dia, passam nas televisões filmes heroicos sobre esse curtíssimo episódio mas isso deve-se tão só ao génio de eisentein e de outros seus discípulos. O dia é descrito como uma enorme confusão, com o poder a desabar sem defesa eficaz, sem reação dos sus partidários e perante a indiferença de quase todos. Posteriormente, o golpe de Estado que expulsou a maioria eleita de deputados (não bolcheviques), apenas demonstrou que com audácia, mera audácia, muita sorte e uma gigantesca confusão havia um novo poder. Poder absoluto, não partilhado, que esmagou um a um os adversários (primeiro a esquerda, depois o resto) como até se consegue perceber em John Reed (o cavalheiro americano que escreveu o hagiográfico voluminho “1o dias que abalaram o mundo”).
A Russia exausta queria apenas comer e deixar de morrer na guerra. Exércitos inteiros retiraram-se das frentes de batalha, os sindicatos “contra-revolucionários” desorganizaram tudo nomeadamente os transportes o que permitiu aos bolcheviques, assentar o poder em Petrogrado e Moscovo, recrutar nas fábricas as suas tropas de choque e começar a organizar (sempre Trotsky) o incipiente Exército Vermelho.
De todo o modo, a escassez alimentar não cessou, as perdas militares continuaram e em breve a guerra civil voltou a aumentar as dificuldades, a fome e a morte de civis.
O Governo (o “conselho de Comissários do Povo”) bolchevique não hesitou em usar mão dura contra os opositores, coisa aliás, muito em voga na Rússia onde o poder nunca fora meigo e muito menos defensor de quaisquer direitos humanos. A temível Okhrana dos czares foi substituída pela Tcheka que se notabilizou logo de seguida na repressão a anarquistas, socialistas revolucionários sem esquecer obviamente os partidários do antigo regime.
(convém recordar que a hostilidade para com os socialistas revolucionários levou uma militante (Fanny Kaplan, presa de 1906 a 1917 na Sibéria) a atentar contra a vida de Lenin. Não teve todo o êxito que previa mas na verdade o dirigente bolchevique nunca mais se recompôs dos ferimentos.)
Não vale a pena desfiar o rosário dos dramáticos acontecimentos que se seguiram mas que podem reconduzir-se a quatro ou cinco pontos (esvaziamento rápido dos poderes dos sovietes, governamentalização dos sindicatos, desaparecimento rápido das independências das nações submetidas ao Império mesmo se estas tenham subsistido formalmente na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A ditadura do proletariado esfumou-se atrás da ditadura do partido único, a repressão política depressa cresceu exponencialmente até ao momento dos processos de Moscovo onde foi liquidada toda a velha guarda revolucionária e bolchevique. Antes, aliás, já tinham sido esmagados (por Trotsky) os famosos marinheiros de Kronstad, ferro de lança da revolução e últimos defensores do falecido slogan “todo o poder aos soviets”. A guerra civil e as grandes fomes (especialmente a da Ucrânia que se mediu em milhões de mortos e em cenas atrozes de canibalismo) consecutivas à perseguição dos kulaks não impediram um crescimento gigantesco da industrialização mesmo se até fins do século a URSS sempre tenha sido um país de severo racionamento de bens fabricados desde os sapatos aos automóveis privados e destes até, pasme-se, aos pensos higiénicos. A repressão atingiu paroxismos nunca igualados que mesmo se mitigados nunca fizeram desaparecer o gulag ou seja a miríade de campos de trabalho forçado que durou até à era de Gorbatchev. Do ponto de vista cultural, o panorama também foi assustador. Ainda hoje se fala da estranha morte de Gorki, dos suicídios de Marina Tsvetaeva Maiakowsky ou Essenin, de Ossip Mandelstam e Isaac Babel (mortos no gulag) e censura a muitos outros, Vassili Grossman, Ana Akmatova ou Boris Pasternak, dos músicos silenciados (e aí vale a pena recordar o fim de Prokofiev e da perturbada vida de Shostakovitch, herói durante o cerco de Leningrado e acusado de formalismo anos depois, esteve em risco iminente de ser deportado). A grande revolução das artes plásticas durou o momento de um suspiro e se hoje se fala de pintura russa apenas se podem referir os emigrados (Kandinsky ou Chagal) que os não saíram foram rapidamente considerados formalistas e inúteis. Não foi preciso Stalin, Lenin e apaniguados espojaram-se em críticas que, mais tarde, Jdanov levou ao delírio absoluto.
Dentre o grupo de dirigentes de topo apenas dois se deram ao trabalho de defender os intelectuais: Bukarine e Lunatcharsky
Em boa verdade, são estes dois bolcheviques quem melhor teorizaram a revolução e as suas consequências. Bukarine foi executado, sorte a que Lunatcharsky escapou porquanto morreu ainda antes dos processos.
Para fazer um balanço da revolução seriam necessárias dez crónicas e mesmo assim ainda hoje não há nenhuma conclusão segura que escape à ideologia. Mesmo com a URSS enterrada, o bloco socialista convertido no que se sabe, o comunismo num estertor medonho que o desvairado líder da Coreia muito bem documenta, a URSS teve uma vida agitada. No fim dos anos 30, Stalin decapitou o Exército Vermelho tornando-se, por isso o principal responsável das primeiras e violentas derrotas sofridas contra os alemães. É bom relembrar que estes tiveram um caloroso apoio da URSS durante praticamente dois anos de guerra (Setembro de 39 -Junho de 41)
Posteriormente, também convém lembrar a fortíssima ajuda americana nos primeiros meses após a invasão alemão. em termos quantitativos os americanos forneceram material e diversos suprimentos no valor de nove mil milhões de dólares o que, se é três a quatro vezes menos do que à Inglaterra é quase vinte vezes mais do que a ajuda à China. Não foi isto que decidiu a guerra, sequer a vitória soviética mas a ideia de que a URSS venceu sozinha e que isso a torna credora do reconhecimento universal é risível. Globalmente, os aliados enfrentaram dois exércitos fortíssimos (o alemão e o japonês) e durante vários anos a iniciativa pertenceu ao Eixo.
De todo o modo, a URSS saiu vencedora e comportou-se como tal fazendo cair sobre metade da Europa uma cortina de ferro que durou quarenta anos. Depois, tudo esboroou como um castelo de cartas. entretanto a “Revolução”, o “socialismo num só país”, a “pátria dos trabalhadores” e outros narizes de cera rapidamente mostraram o que valiam. E os protestos não tardaram. Em Berlim (17 junho 1953), na Hungria em 1956, a “ordem” só foi restabelecida pelos tanques russos. A mesma ordem voltou a cambalear em 1968 em Praga. E a receita foi a mesma. O “Bloco socialista” disfarçava mal um império e, nesse capítulo os dirigentes soviéticos foram discípulos fieis de Stalin. quando foi necessário. Krutchev viu-se “obrigado” a liquidar Beria, depois de vencer Malenkov, Molotov e Bulganin; depois da crise dos mísseis durou pouco e foi substituído pelo imóvel e medíocre Brejnev e durante anos viveu semi preso em casa.
De qualquer modo, o calcanhar de Aquiles da “Revolução” foi sempre a economia. E mesmo os grandes êxitos (inicio da corrida espacial) ou a criação de uma formidável indústria de guerra foram interiormente “compensados” por uma escassez crónica de bens de consumo, pela falta de habitação nas grandes cidades, pela existência de passaportes internos que dificultava a circulação de pessoas no território soviético. O Partido comunista era tão só uma imensa teia burocrática incapaz de inovar, de pensar o século XX, de estabelecer metas para o futuro. E como agora se percebe, criou as bases para as grandes fortunas russas do presente onde a ideologia visível se reduz ao poder do dinheiro e a um novo riquismo insultuoso. Não espanta que só meia dúzia de saudosos celebre o centenário. Numa frase de um cinismo aterrador, Lenin terá dito que o “comunismo era o poder dos sovietes mais a eletrificação da Rússia”. E de facto assim sucedeu. Os ideais marxistas, a herança das duas primeiras Internacionais, foram grosseiramente postergados. A geração revolucionária foi morrendo rapidamente, na guerra civil, durante os processos de Moscovo, na deportação e no exílio. Nem Trotsky, refugiado no México, escapou. Como não escaparam os comissários políticos enviados pelo mundo fora e particularmente para a Espanha. Como não escaparam os agentes secretos do Komintern na Europa. Nem os espiões que informaram sobre a invasão alemã. Hoje em dia, questiona-se o heroísmo e a eficácia de Trepper o mítico dirigente da “Orquestra Vermelha”. A verdade é que, no fim da guerra foi preso e passou dez anos na prisão. Todavia, se como afirma um historiador recente, ele tivesse ajudado os alemães não há duvida alguma que teria sido executado. Assim, limitou-se a sofrer as consequências de ter sido agente comunista. A regra geral era a seguinte: quem tivesse passado demasiado tempo no Ocidente, tornava-se só por isso um perigo pelo que ou o internavam num campo siberiano ou o fuzilavam imediatamente. Nem as centenas de milhares de prisioneiros de guerra soviéticos na Alemanha escaparam a esse destino.
As revoluções não exactamente jogos de salão, nem folguedos de uma noite de Verão. Todavia, a Revolução de 17 deu origem a um imenso desastre, político, cultural, étnico e económico que aliás teve sequências no Revolução Cultural ou nos poucos mas sangrentos anos de domínio dos kmeres vermelhos no Cambodja.
Pelos vistos há quem a queira celebrar. E há saudosos. Exactamente como em Itália há ainda quem celebre o triste Mussolini enquanto na Alemanha aparecem uns cabeças rapadas travestidos de Juventude hitleriana. Mas, neste (e noutros casos em outras latitudes) caso é bom lembrar Marx: A história repete-se mas da segunda vez é como farsa.
*na gravura: cartaz dos tempos da Revolução. Com Lenin, um extraordinário estratego mesmo se, do ponto de vista teórico, deixe bastante a desejar. As suas grandes obras -aliás pequenas e muito datadas- tem a ver com o dia a dia revolucionário. E são nesse domínio certeiras. Ao contrário, as suas incursões pela filosofia (Materialismo e Empirocriticismo" ) deixam muito a desejar: longas, chatas e francamente desinteressantes.
** Sobre os "conselhos operários" não são os russos quem interessa. cita-se para quem queira dois autores Anton Pannekoeke e Rosa Luxemburgo que teorizaram sobre o conceito que deu origem aos sovietes.