#me too, o movimento e as francesas
mcr 11-1.18
este texto vai para Irene MR, Mª José C e Maria de L A
(nota prévia: Quem, com santa e resignada paciência, me lê terá reparado que são mais de uma dúzia os textos em que me refiro à violência de género e à inominável cobardia (para já não falar no crime miserável) de muitos homens. Eles agridem, eles denunciam, eles maltratam, eles matam as ex-companheiras por dá cá aquela palha. Que os abandonaram, que se fartaram de apanhar pancada, de ouvir insultos, de serem menos do que as antigas criadas de servir, de serem violadas –sim também existe violação dentro do casamento- enfim por um ror de razões que seria fastidioso enumerar. Portanto, caras e caros leitores, recordem isso antes de me atirarem a primeira pedra (curiosamente o castigo para as adúlteras quer na Bíblia –A.T.- quer na medonha “charia” muçulmana)).
Apareceu nos EUA, mais propriamente em Hollywood, uma campanha (#me too) de denúncia de agravos feitos por homens ligados à indústria cinematográfica a mulheres, mormente actrizes. Nas queixas há de tudo: apalpões, convites para a cama, chantagem, palavrões, violação. Há também conversas ou palavras “impróprias”, que a América é o paraíso da correcção política!
Alguns (com a entusiástica ajuda dos media, fartos já de arrear – merecidamente, acrescente-se - em Trump) mostraram-se espantados, escandalizados, horrorizados(!), com estas revelações.
Este escriba persigna-se três vezes e pergunta-se se estas boas alminhas alguma vez pararam para pensar na história pregressa de Hollywood. É que, desde meados dos anos 50, que anda por aí um livro de Kenneth Anger (“Hollywood Babylone”, Jean Jacques Pauvert ed, Paris)que só apareceria nos EUA (em versão inglesa e original) em meados de 60. Rapidamente proibido lá, só voltou às livrarias dez anos depois.
Entretanto, dezenas de publicações (destaque-se a “Playboy”) foram ao longo de todos esses anos denunciando “Sodoma e Gomorra na Meca do cinema”. Recordo-me de ter visto na televisão (há quantos anos já!) um documentário sobre actrizes e modelos onde algumas delas confessavam, sem excessivas recriminações, que tinham passado voluntária ou obrigatoriamente pela cama de realizadores, produtores, fotógrafos, agentes, sei lá que mais.
O actual arruído foi desencadeado pelas acusações a um poderoso produtor, Harvey Weinstein, por um grupo de actrizes. Estupro, violação seriam o pão de cada dia na vida de um homem que chegou a ser homenageado pelo seu apoio à causa judaica e atacado por alguns filmes seus serem anti-cristãos e anti-americanos. Um “must”! Por acaso, também foi responsável por alguns (muitos) sucessos artísticos e comerciais. Uma autêntica “american live story”...
Abatido Weinstein, começou (Não há país como “a terra dos bravos e dos livres”, para estas coisas) a caça à macharia mal intencionada. Em pleno desenrolar dos “Globos de ouro”, um dos premiados foi acusado por uma actriz que afirmou que ele a fizera actuar nua depois de lhe ter imposto um contrato onde isso estaria previsto. Ou seja, o anjinho ofendido primeiro contratou, fez o filme, recebeu o cacauzinho e, depois, muito depois, lembrou-se de protestar. É obra!
Numa entrevista no “Late night show”, animado pelo prodigioso Stephen Colbert, um entrevistado confessou que ao abraçar uma mulher lhe “tocara nos seios”. E estava muito arrependido... Pergunto-me como é que ao abraçar se toca nas mamas da criatura abraçada.
A campanha corre, infrene e imparável, pela América. Todos os dias se noticiam casos de há dez, vinte, trinta anos. A diligente justiça americana renova a perseguição a Roman Polansky, ameaça Woody Allen e instala no meio libertino e sofisticado de Hollywood um clima de denúncia onde vale tudo. Pelos vistos qualquer “inapropriate behaviour” é tremendo crime. Um olhar mais demorado pode ter efeitos tão dramáticos quanto um apalpão que, por sua vez está ao nível do assédio puro e duro, quiçá da violação. Al Capone e a KKK espreitam, com Manson e os bombistas de Ocklahoma, as vestais do cinema americano, para o efeito vestidas de negro severo mas generoso em decotes.
Um grupo de cem artistas, académicas e escritoras francesas publicou em “Le Monde” uma carta aberta onde pedem moderação, bom senso e calma e, horribili dictu!, defendem que aos homens deve ser permitida uma suave intencionalidade sexual no que dizem, pensam ou fazem perante as mulheres. Jesus! Caiu o Carmo e a Trindade. Ou melhor, a torre Eiffel e o Arco do Triunfo. A primeira como vero símbolo fálico e o segundo como uma vagina desmesuradamente acessível à peonagem que o atravessa a pretexto de ver a chama do soldado desconhecido. Aliás, o Arco, tributo às campanhas napoleónicas é, desde há muito um símbolo a proscrever por nacionalista, imperialista, militarista etc.
No dia seguinte trinta senhoras da melhor sociedade feminista responderam às anteriores cem. Estão em minoria mas isso não espanta num país onde um antigo presidente da república (Felix Faure) morreu literalmente na boca de uma amante posteriormente conhecida como “pompe funébre”. Onde outro, Mitterand, era conhecido por ter “casa civil e casa militar”(na amável interpretação de Jorge Amado) ou outro ainda mais recente se disfarçava de motociclista para se escapar do Eliseu para se ir aconchegar nos braços de ma actriz que (Vergonha!) nunca se queixou de assédio. Há quem se lembre de uma (a única) Primeira Ministra da França, Edith Cresson que afirmou sem pestanejar que uns bons 25% dos ingleses eram homossexuais e por isso desprezavam as mulheres. A senhora Cresson, além de inteligente, culta e belle femme, foi, et pourquoi pas?, amante de Mitterrand mesmo se esse fait divers não deva ter influído na sua nomeação.
Não admira num país que viu nascer Sade, Laclos, Bussy-Rabutin, Crébillon fils, Brantôme (e não esqueçamos osenormes Montesquieu e Diderot que escreveram belos textos eróticos) ou já no nosso tempo, Roger Vailland, esta desatada fúria americana cause uma divertida perplexidade. Alguém, não consigo recordar agora, citou Mae West essa deliciosa e inteligentíssima desbocada. Que diria ela, perguntava-se esse desconhecido, se visse e ouvisse o que se passa?
Esta campanha acaba por abafar outras bem mais urgentes quais sejam pagamento igual por trabalho igual (e não só no cinema, que diabo, mas nas fábricas, nas grandes cadeias de distribuição, na Banca ou noutros domínios), a luta pelo ambiente, a eventual proibição do porte de arma ou a necessária limitação da intervenção de seitas e grupos religiosos na condução dos negócios públicos. Neste momento tudo isso está na sombra. O que está a dar, graças a uma centena de famosas, é o assédio sexual seja ele qual for, revista ele a modalidade mais inócua. Foram causas idênticas, ou um estado de espírito idêntico, que levaram à imbecilidade da lei seca, que mantiveram no índex as obras de Miller e um bom cento de argumentos ou de filmes “unamerican”
Às vezes, por muito jazz de que eu goste, por muito poeta e escritor americano que aprecie, por muito John Ford que veja e reveja, sinto que tive a sorte de nascer em Portugal. Arre, que isto até me faz parecer nacionalista! Credo, Deus me livre...
* na imagem Kirk Douglas, 101 anos e mais de 80 de cinema, veio de preto, sabe-se lá por que razão. A acompanhante também.
**o título leva o #me too a negro. É uma mostra de solidariedade, juro.