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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

O leitor (im)penitente 207 (b)

d'oliveira, 31.03.18

4)MARIA HELENA ALVES -uma casa de familia-.jpg

 

regressando a um tema mais antigo 

Um obrigado ao "leitor desconhecido" que me corrigiu a fotografia postada como da Casa Havaneza, maravilhosa livraria na Figueira da Foz. Devo ter clicado à toa e saiu-me uma farmácia! Desta feita a fotografia é boa. E até se vê a Maria Helena Alves, ultima proprietária da livraria.

Ah que belos tempos... 

Au bonheur des dames 436

d'oliveira, 31.03.18

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Páscoa feliz

mcr 31-3-2018

 

No momento em que escrevi este título para a crónica de hoje, lembrei-me de ter ouvido uma história de dois irmãos em que o homem se chamava Natal Querido e a irmã Páscoa Feliz. Trop beau pour être vrai!... Todavia, não descri inteiramente do amigo que me falava destes singulares nomes porquanto o meu pai contava que no seu tempo de moço atrevido havia duas irmãs que se chamavam República e Liberdade (a mocidade local à falta de melhor entretenimento fazia mas incursões à rua onde as duas manas moravam e berravam vivas à Liberdade e à República esperando que a polícia desse tempo (eram os ominosos anos trinta do século passado) os interpelasse para poderem galhofeiramente referir que nesses gritos nada havia de subversivo  mas tão só de louvor às duas moçoilas.

Eu próprio conheci um Lenine de Jesus e adorava cumprimenta-lo com grandes salamaleques tratando-o de camarada Lenine de Jesus ou até só camarada Jesus. A criatura era, se a memória sempre traiçoeira não me falha, militante no mesmo carnaval político que frequentei entre 74 e 75...

Mas não era de nomes que vinha falar mas tão somente deste estranho costume de celebrar a Páscoa com idas maciças para o Algarve, consumir a “semana santa” entre a praia, grandes comezainas e noites brancas nos locais de uso.

A Páscoa é a grande, a mais emblemática data da Cristandade. É quase ou absolutamente o cerne desta fé. Sem Páscoa não há cristianismo.

E que vemos nós neste torrãozinho de açúcar à beira mar plantado? Pois uma emigração em massa para umas curtas férias balneares nacionais ou mesmo internacionais. É verdade que aqui e ali, e sobretudo em Braga (a idolátrica como referia Pacheco) há umas procissões soleníssimas cheias de criaturas com capuzes fora de moda (farricicos?), muitas cruzes num desfilar de piedade pouco convincente e vagamente andaluz. Mas a coisa é mais folclore e turística do que realmente religiosidade entranhada e sentida.

(a este propósito não resisto a recordar uma história passada nos primórdios de setenta. Com mais um par de amigos e amigas fomos de longada para a Catalunha onde nos reuniríamos com outros amigos então exilados na Suiça. Numa cidade (cória?) do caminho, já ao lusco fusco caímos no meio de uma dessas tremendas procissões penitenciais da semana santa. Logo que a rua ficou vazia corremos para um restaurante recomendado por uns locais onde se comeria bem e a bom preço. Já estávamos instalados na grande sala a petiscar presunto e à espera de umas carnes – nesse tempo a malta não religiosa fazia questão de só comer carne na quaresma e sobretudo na semana da Páscoa- quando vemos entrar a multidão dos processionários ainda fardados com as vestes de ocasião. em alta grita foram, também eles!..., encomendando acepipes vários e doses quilométricas de tapas onde não faltavam o chouriço, o presunto e outras especialidades cárnicas (roubo a palavra a José Quitério, gastrónomo e e crítico de grande gabaritoque escrevia algum do melhor português que se usava no Expresso. Saravah, velho amigo e irmão, um abraço deste teu velho companheiro de fuga ao estudo, de noites varadas em conversatas saborosas numa Coimbra, ainda sem atropelos urbanísticos e com uma “baixa” cheia de livrarias e cafés). Fiquei esclarecido. A espanholagem que nos acompanhava nesse restaurante devia considerar que a procissão de que fizera parte permitia uma fuga ao preceito do jejum pascoal. Beberam e comeram e cantaram. E nós com eles, claro.)

E o mais curioso desta migração pascal é que ela ocorre sem lhar para o calendário, sequer para a meteorologia. Caiam as festas em fins de Março ou em Abril bem avançado e ala que se faz tarde. Praia com eles. Chova ou faça sol. “Ei-los que partem” com uma fé eventualmente pagã no milagre das rosas algarvio. Substituem a água benta pela do mar, a missa matutina por uma soneca que a noite foi de discoteca e até às tantas.

Decididamente, o país alegadamente católico, apostólico e romano, aposta numa ligeira intermitência da fé e dos deveres do crente. Portugal, à medida que se vai europeizando, transforma-se em terra de missão.

Não é que a coisa me incomode. Sou (ainda...) um agnóstico da velha guarda que só não se declara ateu porque isso tem um ar de militância desagradável. Aliás, escrevi acima “ainda” porque nada me garante que mais entrado em anos (e eu já estou quase na quarta idade) não me suceda o mesmo que a Jean Barois herói de um grande livro de Roger Martin du Gard, prémio Nobel e autor do magnífico “Les Thibault”, obra admirável que provavelmente ninguém lê. Porventura nem sequer existem actualmente versões em português. Barois é católico em jovem, passa a ateu durante a vida adulta mas quando já está no ocaso da vida retoma a fé antiga, depois de, durante anos, ter provado a desrazão da crença. Não me sinto fadado para Barois, não andei a pregar a evidência da ciência e da razão versus a religião mas tudo pode suceder-me amanhã. O mais certo é morrer de cancro ou perdido no Alzheimer ou outra doença medonha. Todavia, a velhice e o seu cortejo de misérias físicas podem predispor uma pessoa a subitamente acreditar numa vida outra e eterna. O medo da morte é como o sono da razão: cria monstros. E aterroriza o mais corajoso.

De todo o modo, desejo-vos, caros leitores e leitoras, uma boa Páscoa. que o cabrito, as amêndoas e demais mimos da época vos caiam bem. Também vos desejaria bom tempo, mar chão e quente mas isso vai contra todos os prognóstico do Instituto do Mar e da Atmosfera. E ao ex-camarada Lenine de Jesus, Salut e forza nel canut como se diz na Catalunha. Com a idade que terás é um voto mais simpático do que saúde e fraternidade...

* na gravura procissão em Braga

Estes dias que passam 368

d'oliveira, 23.03.18

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O regresso dos mortos mortos

 

 mcr  22/23 de Março de 2018

 

O jornal “Público” traz hoje (22/3) mais uma reportagem sobre a trasladação do cadáver de um militar morto na guerra colonial. Obviamente era o de um soldado de origem humilde. Daqueles cuja família nunca poderia pagar os custos do repatriamento do cadáver. Naqueles tempos ásperos e obscuros, a quantia exigida era quase um absurdo para mais de 80% da população portuguesa. Pior: os soldados e cabos que faziam o Serviço Militar Obrigatório vinhamde famílias numerosas, pobres e razoavelmente incultas. Os senhores oficiais (do quadro ou milicianos) eram provenientes das elites, de gente mais acomodada que mesmo com grande sacrifício poderia custar a trasladação. Ignoro se os oficiais do QP (Quadro Permanente) teriam o privilégio de ser repatriados gratuitamente quando morriam nos sertões africanos. De todo o modo, as baixas no corpo de oficiais foram diminutas, não só porque estes eram menos mas sobretudo porque o seu treino militar era superior. É verdade que alguns (muitos. E um único já seria demasiado)por lá morreram. Estou a lembrar-me do João Cabral de andrade, meu amigo, do Bação Leal que mal conhecia ou do José Manuel Pais que bateu com os costados em angla depois de denunciado por um miserável informador da PIDE, estudante como ele, e hoje médico na “outra banda” (Este canalha deve ter denunciado meio CITAC a que pertenceu e a sua sorte é apenas derivada da minha falta de memória. Não me lembro do seu nome infelizmente)

Voltando ao tema principal: os mortos na guerra de África, colonial ou do Ultramar, como lhe quiserem chamar.

Bem ou mal, estes jovens homens morreram ao serviço de Portugal. como antes, de 1916 a 1918 morreram milhares de outros na Flandres com o mesmíssimo pretexto de salvar o Império Colonial. Ou de tornar a 1ª República mais aceitável perante uma Europa que nos olhava de soslaio...

Conviria acrescentar, mesmo que isso perturbe algumas ignorâncias bem pensantes, que esta guerra de 13 longos, longuíssimos, anos com o seu cortejo de 9.000 mortos e de muitos mais feridos (sem falar em todos, e são multidão, os que se viram afectados – algumas vezes para toda a vida- com o stress de guerra) que a defesa das “colónias”, do “ultramar” ou , tout-court, de Portugal foi durante muito tempo uma causa popular em Portugal e entre os portugueses. É verdade que, nesses anos de chumbo, houve sempre “alguém que resistiu”, que não se conformou mas isso não quebrou o largo consenso que subsistiu quase até ao fim do Estado Novo. Aliás, este caiu por obra dos oficiais do QP que se fartaram da guerra e da falta de perspectivas que tal estado de coisas pressupunha. É verdade que difusa mas seguramente crescia na população (sobretudo a mais ilustrada) uma crítica à guerra. É verdade que a gigantesca emigração verificada nos anos 60 e 70 do século passado também teve uma pequena componente política de gente que fugia à guerra pelos mais variados motivos sendo que o principal era obviamente a vontade de não arriscar o coiro numa guerra que nada lhe dizia. É verdade que, mesmo cá dentro, houve sempre oponentes à guerra fosse por pacifismo, fosse por acreditar no direito dos povos a disporem deles próprios. Mas a verdade, a “áspera verdade” (Danton) é que desde a Situação até boa parte da Oposição, as colónias foram durante muito tempo indiscutíveis. E tão indiscutíveis foram que, de 1965 a praticamente 1974, a população branca colonial em Angola e Moçambique aumentou de forma quase exponencial. Foram dezenas de milhares ou, talvez, mais de cem mil, os portugueses da “metrópole” que resolveram fixar residência em África. Acreditavam na melhoria de vida, nas vantagens de lá viver, na continuação do Império mesmo na forma mitigada de federação de Estados de língua portuguesa. Poder-se-á dizer que este movimento se inscrevia no mais geral movimento migratório cujo centro foi Paris e região adjacente. Seja como for, este ocorreu e contribuiu em muito para o enorme surto de desenvolvimento que as duas principais colónias experimentaram. Estes novos migrantes para o “Ultramar” modificaram objectiva e subjectivamente as condições de vida da maioria negra. Tinham menos preconceitos raciais, já não vinham como grupo superior aos colonizados, acabara o Estatuto do Índígena, as escolas abriam-se de forma extraordinária   aos negros e via-se o impossível: acesso a cargos políticos municipais e regionais. Nada disto diminuiu o ímpeto independentista entre os novos “assimilados” (se me é permitido o uso de uma expressão repulsiva e negregada), bem pelo contrário. As novas e incipientes elites africanas alinhavam nas escolas secundárias e nas novíssimas universidades pelo diapasão nacionalista influenciando, mesmo que num número mínimo, jovens brancos.

Neste amplo movimento devem ainda contabilizar-se o aumento de casamentos e uniões de facto inter-raciais. Muitos soldados desmobilizados optaram por se fixar nos territórios onde tinham combatido e juntavam-se com nativas africanas.

Voltemos, porém, aos 1500 soldados metropolitanos mortos nos teatros de guerra e aí sepultados em cemitérios disseminados na Guiné, Angola e Moçambique. Terá passado por África cerca de um milhão de portugueses parecendo, por isso, diminuto o número de mortos total (9000) e mais ainda o de cadáveres que não voltaram à terra natal. Este é um argumento forte para, de uma vez por todas, se proceder ao repatriamento desses corpos. O Estado português não pode atirar para cima dos familiares sobrevivos o custo desta operação que, por ser isolada, tem sempre um preço elevado. Mal ou bem esta gente morreu pelo país exactamente como os morto da 1ª Grande Guerra cuja memória se perpetua em centenas de monumentos por todo o país, em talhões próprios nos cemitérios das principais cidades ou na simples existência de uma “Liga dos Combatentes” criada em 1923 em plena1ª República e destinada a perpetuar a memória dos mortos e em ajudar os sobreviventes em diversos domínios.

Esta instituição poderia e deveria ser ajudada no apoio que presta às famílias dos caídos em combate nas colónias. O Estado deveria assumir uma parte importante dos custos da trasladação dos cadáveres o que, numa operação conjunta, mitigaria, e muito, os custos dessa missão legítima, necessária e, porque não?, patriótica.

Para uma imensa maioria dos portugueses a lembrança cultual dos seus mortos faz parte da sua razão de ser. Digo portugueses mas poderia dizer seres humanos. Uma das características do actual homo sapiens é o culto dos mortos. Quase se poderia dizer que a civilização começou com o sepultamento (ou com fórmulas mortuárias de valor idêntico) dos membros da comunidade. A sepultura tem a mesma marca das gravuras rupestres e traça com bastante segurança a passagem para o que chamamos civilização humana.

É verdade que há países em que a norma é sepultar o seus mortos em combate nas regiões onde pereceram. O caso da Grã Bretanha é o mais conhecido. Há cemitérios de guerra britânicos disseminados por todos os continentes. Todavia, esses cemitérios são regra geral considerados “território britânico”, estão bem tratados e melhor documentados. Os americanos têm por principio não deixar nenhum dos seus soldados (morto ou vivo) para trás. Ainda hoje, rebuscam em zonas perdidas do Vietnam e do Laos cadáveres dos seus combatentes. Criaram para o efeito uma agência e celebraram acordos e protocolos com as autoridades nacionais desses países com que estiveram em guerra. Trasladaram para o cemitério nacional de Arlington cerca de meio milhão de cadáveres de soldados mortos em combate desde a guerra da Secessão até às mais recentes (Vietnam, Iraque).

Anda por aí meio mundo a encher o peito de bazófias sobre as maravilhas da pátria mormente as mais recentes, desde o festival eurovisão até ao “melhor do mundo” e a um obscuro campeonato de futebol de salão. Tudo isso e o sol, o sal e o sul tão turísticos aquece os ímpetos da portugalidade do século XXI. Será pedir muito uma sepultura junto dos seus para os soldados perdidos numa guerra travada, queiramo-lo ou não, em nome de todos nós  nos sertões esquecidos da Guiné, de Angola e Moçambique?

 

*O título do folhetim refere um filme de terror dos anos 80 (“O Regresso dos mortos vivos” de Dan O’Barron) que, com o passar do tempo se tornou um filme culto que teve direito a remake e continuações.

** este texto começou a se escrito ontem mas a habitual preguiça do autor só hoje permitiu concluí-lo. Mas não é um dia a mais que prejudica uma justiça que tarda já quase meio século.

O leitor (im)penitente 207

mcr, 15.03.18

O deserto cresce.

Ai de quem abriga desertos.

 mcr 15-03-2018

 

Os dois versos que titulam este folhetim andam comigo à cerca de cinquenta anos. São de Nietzsche, o admirável, e fazem parte dos “Ditirambos dionisíacos”. Quem se interessar pela grande poesia alemã encontrará a tradução da poesia de Nietzsche nalgum alfarrabista mais atento (ou feliz). Caso contrário, a Gulbenkian publicou as “Obras de Paulo Quintela” (ou um título do mesmo género). Nesse conjunto há três volumes de traduções de poesia e num deles vem a obra poética do filósofo. Imperdível! A ler com extrema urgência!

Vem isto a propósito de alguns nacionais e recentes óbitos de livrarias. Sem ir mais longe desapareceram, numa penada desde o início do ano, a “Leitura” no Porto, a “Miguel de Carvalho” em Coimbra e a “Pó dos Livros” em Lisboa.

Sabe-se, igualmente, que um senhorio insaciável já terá dado ordem de marcha (e de despejo) a mais três alfarrabistas da rua do Alecrim em Lisboa (a Campos Trindade, a António Trindade e o Centro Antiquário do Alecrim).

Conheço muitas cidades por via das suas livrarias ou oriento-me nelas seguindo caprichosos itinerários nem sempre planeados entre uma e outra.

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6) Continua na Praça Nova, Fig.Foz....JPG

 

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(a este respeito vale a pena contar que na última estadia em Veneza, andando eu ocupado em mostrá-la à CG, metendo sempre por ruas novas e inesperadas, calhou que, vindo do Rialto para o Campo di San Fermin, oiço a minha mulher soltar o medonho rugido da leoa esfomeada que vê um antílope apetitoso e descuidado. Era, à nossa direita, uma loja de lãs. Fiquei aterrado: a CG é uma temível tricotadeira e anda sempre em busca de algum mirífico fio. “Ai, Jesus, que isto é para uma hora pelo menos”, suspirei in imo pectore. Já me resignava ao inevitável quando, ao olhar para esquerda me deparei com uma livraria. Enquanto a CG avançava para as lãs, precipitava-me eu, em voo picado, para a salvadora loja. Era um verdadeira livraria dedicada a Veneza e história veneziana com extensões ao Veneto. Uma maravilha! Depois de visitar com detalhe um par de títulos, conversei com o livreiro sobre a sua excepcional, e cara!, mercadoria e à saída, ajoujado de compras e aliviado de mais euros do que devia, pedi-lhe um cartão da livraria para poder lá voltar. Espantado, descobri que tinha entrado na “Linea d’Acqua”, um livraria recomendada por um grande amigo e vizinho. E disse-o ao livreiro. Este perguntou-me de onde vinha e quando o informei que do Porto, retorquiu-me seguríssimo: “Ah, então foi o António Abreu! “

E, de facto era. O AA era um ávido leitor e um verdadeiro veneziano. Todos os anos, passava lá quinze dias, hospedado numa casa alugada no Cannaregio, o último sestiere acessível ao turista português. )

 

 

Voltemos, porém, às livrarias que desparecem. Não é de hoje esta doença mortal dos negócios que envolvem a venda de livros. Lembro-me, pesaroso, da excelente “Havanesa” na Figueira, poiso de livros e de tertúlias fieis. Em chegando à terra, o meu primeiro destino era a Havanesa, mesmo antes de ir vera família ou pousar a mala. Em Coimbra, desapareceram várias livrarias, entre elas a enorme “Atlântida” que enchia dois pisos, a “Luso-Espanhola” onde comprei os primeiros poetas de língua espanhola ou a “Cunha”, uma pequena loja cheia de títulos antigos e difíceis de encontrar. Em Lisboa vi morrer a “Opinião” (lugar de encontros inesquecíveis), a “Bucholz”, e a “Sá da Costa” (construída de raiz para ser livraria)bem como as alfarrabistas “Camões”, “Burnay”, “Barateira” e outras de que nunca soube o nome embora nelas tenha encontrado e comprado livros. E ainda, já há alguns anos as vizinhas “Portugal” e “Aillaud & Lello”. A Galiza passou é menos interessante depois do desaparecimento da “Michelena” em Pontevedra onde havia um cão que dormia junto das estantes (no plural!) de poesia. De Paris, então, nem consigo saber quantas foram encerradas. Tenho um vago pressentimento que, só nos 5º (Quartier Latin) e 6º (St Germain des Prés/Montparnasse) bairros creio que já contabilizei vinte desaparecimentos entre 1970 e 2000. Desde “La joie de lire” até à “Librairie du Globe” com obrigatória passagem pela opulenta “PUF” que de horas perdidas e encontradas na felicidade de folhear, cheirar, ler e comprar livro após livro. Outras, mais pequenas mas, por vezes, mais curiosas não conseguiram defender-se dos abutres do turismo e do luxo que contaminaram ruas inteiras com restaurantes de baixa, baixíssima, qualidade, de “hostels” quando não de boutiques de luxo onde se não vê viva alma. Neste capítulo Saint Germain bate tudo o resto.

Eu sou um leitor inveterado, viciado, possuído pelo demónio dos livros. Gastei, ao longo de uma vida que já vai longa, uma fortuna (no verdadeiro sentido da palavra) a encher esta casa de livros. Vai para cima de 24000 o que mais do que um exagero é uma tolice arrogante. Nunca conseguirei lê-los todos mesmo se neste grupo haja, à vontade, mais de 4000 títulos de obras de consulta que obviamente podem passar anos sem que lhes toque.

Quando me apaixono por um tema (e eu sou, nesse campo, um incurável pinga-amor) desato a comprar tudo o que lhe diz respeito, sabendo perfeitamente que esse excesso denota mais falta de critério do que razão e bom senso. Sou um biblio-adicto, isto deve ser semelhante ao que se passa com os cocainomanos, só que mais caro.

Todavia, a morte das livrarias, e de uma só vezada apontei seis mais acima, não desconsola apenas os viciados. Mostra, também, e com que crueza, o estado da chamada “cultura” no “torrãozinho de açúcar”. Cresceu muitíssimo o número de editoras mas baixou torrencialmente o número de exemplares editados de um mesmo título. Vendem-se, ou estão à venda, centos de títulos assinados por personalidades do jet set, da televisão ou da política que nos atormentam quotidianamente. Quase desapareceu a edição de poesia e a de teatro – se existe – vive na mais pura clandestinidade. Só de autores portugueses há uma boa centena desaparecida das estantes e das montras. Quem quer, vai por eles aos alfarrabistas. E esses mesmos vão sendo paulatinamente escorraçados da cidade. É o caso, gritante, da “Miguel de Carvalho” em Coimbra. Esta livraria estava na “baixinha”, muito perto das escadas dos gatos e da portagem num sítio que poeticamente se chamava “Adro de Baixo”. A livraria, quase paredes meias com outra (“Minerva”) era muito bonita, confortável e tinha no andar de cima um espaço para o comprador se sentar confortavelmente e folhear o que lhe apetecesse. O espólio era bom e o atendimento impecável. Miguel de Carvalho, o proprietário, pequeníssimo editor de obras surrealizantes, tinha a paixão da livralhada. Abandonara a engenharia pelo incerto comércio das espécies bibliográficas e mensalmente fornecia, por mail, um catálogo das últimas novidades adquiridas e postas em venda. Numa cidade universitária com mais de vinte mil estudantes não encontrou público que garantisse a sobrevivência da livraria. Assim vai a nossa universidade, assim vão os nossos intelectuais e as nossas futuras elites.

A “Leitura”, então é um caso medonho. Começada na década de cinquenta com o nome de “Divulgação” rapidamente se tornou um sério caso de sucesso. Comprei nela, com as primeiras e modestas mesadas, os primeiros livros. Lembro-me mesmo dos títulos de dois deles: “Alguém Mora na outra margem” (Carlos Gabriel) e “Sete poemas para Egéria e notícia para mim” (Helder Grilo Gonçalves -ou Gouveia?). Era obra de um grupo de amigos que, de facto, eram liderados por Fernando Fernandes, um livreiro de mão cheia mesmo numa cidade onde competia com Domingos Lima (Lello) e com três gerações Perdigão (Latina). O Fernando levava a profissão a sério, importava livros de todo o lado, fornecia (oh truque malévolo!...) o “bulletin du livre” a uma série de clientes que retorquam com encomendas volumosas. Outro dos seus hábitos era o de anotar vendas e pedidos de clientes que ele considerava “seminais”. O pedido vinha sempre em duplicado ou triplicado e o livro era proposto a clientes cujos hábitos de leitura parecessem semelhantes ao do primitivo encomendador. Convém lembrar que a “Leitura” começou por se designar “Divulgação” até, na sequência de uma crise de crescimento, se abrir a mais um sócio e se baptizar definitivamente. Morre, agora, anos depois de FF a deixar, sob o nome tolo de Leitura books and living, parvoiçada saloia que denunciava já um morte a prazo.

Agora, e eu pecador me confesso, as tradicionais livrarias começam a ser ultrapassadas pelos circuitos na internet, mormente pela amazon. A razão é simples: através desses gigantescos circuitos conseguem-se livros praticamente esgotados ou há muito desaparecidos das estantes. A Amazon, a Alapage, a Chapitre, a Decitre ou a Abebooks, respondem com qualidade desigual a essa necessidade. Em Portugal a Wook traz-nos a casa com desconto e sem portes de correio livros recentes ou até menos recentes. Todavia, nestes mundos da internet algo se perde e se arrisca: compram-se os livros às cegassem a possibilidade de com vagar os folhear e consultar. Só leitores empedernidos e sabedores do que pretendem se podem arriscar. E mesmo assim...

Depois, as livrarias foram (e algumas ainda são) centros de convívio para já não falar na descoberta sempre entusiasmante de livros de que nunca se ouviu falar. Basta correr as estantes mesmo com um olhar distraído.

(a este propósito recordo que na Figueira, sob o adro da Igreja de S Julião –a principal – havia uma livraria devota animada por duas senhoras mais católicas do que o monsenhor Palrinhas de saudosa (?) memória. Certo dia, nos idos de 60 descobri na montra entre missais e hagiografias piedosas “A semana santa” de Aragon! Todos os meus amigos foram visitar essa montra e ver o lugar de honra obtido pelo romance do comunista Aragon. O que nos divertimos!)

Em Portugal coabitam as mais extravagantes manias. Há anos foram os bancos que, numa ansia de abrir balcões (que agora fecham sem dar cavaco a clientes e trabalhadores), desalojavam veneráveis cafés e pastelarias e desertificavam ruas e praças. Agora, sob a ilusória luz de um turismo que durará enquanto durarem as guerras no Mediterrâneo e os baixos preços do alojamento e da restauração por cá, fecham-se livraria e outras lojas tradicionais. Há ruas que já ó tem prontos a comer de mais do que duvidosa qualidade. O seu tempo será limitado pela concorrência crescente, pelo fim do voyeurismo turístico e pela impreparação profissional dos seus novéis exploradores. As bolhas rebentam sempre mas o que foi destruído já não volta. E o deserto cresce...

 

As gravuras: a preto e branco o interior da ainda Divulgação mais tarde Leitura

Também a preto e branco "La joie de Lire" (Paris)

A cores -se estou certo, o interior da Havanesa (Figueira da Foz)

 

 

 

O futuro dos ex-primeiros-ministros

José Carlos Pereira, 07.03.18

notícia de que Pedro Passos Coelho vai ser professor catedrático convidado do ISCSP na área da administração pública mereceu os mais variados comentários, sobre as suas competências, as qualificações académicas, o privilégio concedido, a qualidade do ensino universitário, as suas ideias políticas, a sua governação, etc. Nada de estranhar nestes tempos que correm, em que tudo é aceleradamente comentado nas redes sociais e nas páginas de comentários dos jornais.

O que é certo é que a lei dá cobertura a situações destas, permitindo os convites a personalidades que não tenham efectuado o percurso académico normal, mas que disponham de experiência profissional ou outros atributos relevantes para a respectiva área de ensino. Foi isso, certamente, que foi ponderado e avaliado pelos órgãos próprios deste conceituado instituto da Universidade de Lisboa, curiosamente hoje em dia liderado por um professor que Passos Coelho escolheu para deputado em 2011.

Contudo, este caso que envolve Pedro Passos Coelho levanta uma questão recorrente: o que devemos esperar que suceda aos primeiros-ministros que cessam funções? Com efeito, se por acaso esses governantes não têm uma carreira académica ou outra integrada na administração pública, o seu futuro depois de passarem pela política não está acautelado, ao contrário do que sucede com os presidentes da República, que ficam com direito a um gabinete e a uma pequena estrutura de apoio. Deveria o país estabelecer um regime especial para os primeiros-ministros que cessem funções, salvaguardada a condição, por exemplo, de terem cumprido uma legislatura inteira? Preferiremos que um ex-primeiro-ministro se envolva em negócios potencialmente conflituantes com a sua anterior acção governativa ou se dedique ao lobby empresarial?

Se olharmos para trás, para os primeiros-ministros que cumpriram pelo menos um mandato completo, vemos que Cavaco Silva retomou a carreira académica até se candidatar a presidente da República, António Guterres recuperou o seu vínculo laboral com a holding estatal IPE – Investimentos e Participações Empresariais até tomar em mãos o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e José Sócrates enveredou por uma carreira de consultor num grupo internacional da área da saúde. Pedro Passos Coelho prepara-se para encetar agora uma carreira no ensino superior, mas o que se diria se fosse servir um qualquer grupo empresarial?

É natural que quando alguém deixa o exercício do poder em idade activa tenha de continuar a trabalhar e a fazer pela vida. No entanto, se queremos ser rigorosos no regime de incompatibilidades, se não pretendemos ver os nossos ex-governantes na teia dos lobbies empresariais, talvez seja preferível encarar seriamente a possibilidade de estabelecer um regime de retaguarda para os antigos primeiros-ministros que dele necessitem do que ficar a perorar contra aqueles que se dedicam a lobbies ou outros interesses espúrios ou que beneficiam de tratamento privilegiado desta ou daquela instituição.

Estes dias que passam 367

d'oliveira, 07.03.18

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28 anos já...

 

Ou: mais de 9000 exemplares lidos com alegria, com sofreguidão com interesse ou com indignação. Numa palavra: o “Público” o jornal que, sem falhas, leio desde o número 1.

Quando digo sem falhas, não refiro todos os dias porquanto as férias de muitos desses anos passeia-as fora de Portugal e, sempre que, pude estive fora do país, às vezes por períodos que duraram meses. Todavia, em estando cá, nunca deixei de comprar o jornal, hábito e vício diários.

Esta fidelidade ao mesmo periódico tem, em mim, antecedentes fortíssimos. Em pequeno, muito pequeno, fui um fã do “Mundo de Aventuras” em detrimento do posterior “Cavaleiro Andante”. Durante esses anos, felizes e inocentes, o meu irmão e eu, batíamo-nos à compita para, cada terça feira, ir à loja do senhor Bracourt comprar a “Modas e Bordados” que a minha Mãe, que lia tudo e mais alguma coisa, aplicadamente comprava. O nosso alvo era o suplemento infantil “Joaninha” que no regresso até casa íamos lendo impacientes. Oh que saudades de duas longuíssimas séries “Aninhas e Ró-ró” (uma menina e o seu cão) e “Sem Família” uma banda desenhada baseada no romance de Hector Mallot (1830-1907, escritor comprometido com causa da liberdade, amigo de Jules Vallés que ele ajudou financeiramente durante o exílio, defensor do divórcio e uma nova política de saúde psiquiátrica, autor de mais de cinquenta romances).

Nos poucos anos que passei em Moçambique (e sobretudo nas férias grandes) lia “A Tribuna” um dos grandes títulos moçambicanos e o mais livre da imprensa africana.

Logo que entrei para Universidade, tornei-me um devoto de “Le Monde” e de “L’Éxpress” uma notável revista semanal que foi uma das publicações que mais defendeu a causa dos argelinos . Anda hoje os leio, mesmo se diferentes. Da banda de Espanha, sou, desde o primeiro dia, leitor de El País e, no que toca à Itália, confesso que abandonei “Paese Sera” por “La Republica” logo que este apareceu.

Sou, portanto, um leitor (e comprador) de jornais e não consigo começar o dia sem eles. No fim de semana as coisas complicam-se por via do “Expresso” (sempre desde o primeiro dia) e das edições mais volumosas dos jornais estrangeiros.

Mas voltemos ao “Público” que hoje festeja o seu 28º aniversário. Que bela aventura. Que zangas tremendas tive ao longo destes anos por via de artigos, comentários, omissões. Que falta me faz no dia de Natal e no de Ano Novo!...

Com todos os seus imensos defeitos, o “Público” é, de longe, o melhor quotidiano português, o mais imparcial, o menos populista e, de certo modo, o mais eclético em colaboração de todos os quadrantes políticos.

Tem falhas? Claro que as tem, a começar pela frágil cobertura de notícias sobe livros e literatura. Nada que se compare com, por exemplo, “El País” (ou até o “ABC”, também espanhol, conservador e monárquico que tem uma revista semanal de cultural de alta qualidade). O suplemento “babélia” deste jornal com mais de uma dúzia de páginas e que já vai na edição 1371, é um acontecimento e supera largamente o “Monde des livres” que aparece às sextas e é mais pequeno e menos variado.

Porém, em Portugal (e isto desde a morte de “O jornal”) a causa cultural tem perdido espaço. Sobrevive, com dificuldade, o “Jornal de Letras” (outra obrigatória e quinzenal leitura) e há por aí, tentativas dispersas e irregulares de imprensa cultural que morrem às duas por três por falta de leitores e de anunciantes. Por todos refiro o extraordinário “& etc.” suplemento e depois edição autónoma do Jornal do Fundão. A colecção completa (25 números) vale hoje uma pequena fortuna e as escassas dezenas de colecções encadernadas pelo editor praticamente não tem preço. (se algum leitor tiver uma e ma queira vender avise-me)

 

Ora o Público, jornal generalista, pertence, por vocação e tradição, a esta espécie de meteoritos jornalísticos que não chamam as grandes massas mas estão indissoluvelmente ligados ao melhor e ao mais puro espírito da democracia. Nasceu na 3ª República, orientado pelo Vicente Jorge Silva, alma do “Comércio do Funchal”, o jornal cor de rosa onde deixei alguns poucos artigos embora tivesse enviado para a Redacção muitos mais. A Censura foi implacável comigo e durante um interrogatório durante a minha última prisão o inspector que me coube insistia muito no carácter “subversivo e trocista” das minhas tentativas cronísticas. Fiquei orgulhoso por ter um leitor tão atento... e desanimado porque a atenção dele e de mais um par de funcionários me cortasse as asas para a glória literária...

Voltemos, porém, ao Público e aos seus escassos trinta ou quarenta mil leitores (em papel): há naquelas páginas, que o dia a dia tritura, uma alegria, um profissionalismo, uma teimosia que merecem um olhar. E, ao mesmo tempo, todos os dias lá aparecem a crónica de Miguel Esteves Cardoso e os desenhos irónicos e certeiros de Luís Afonso. Todos os dias! É obra!

No que toca ao jornalismo dito de investigação destaquemos o seu cuidadoso carácter sóbrio, a recusa do sensacionalismo que contamina quando não destrói outros exemplos noutros jornais. Raras, muito raras vezes, vi o jornal ser desmentido.

Finalmente (e porque este texto comemorativo já vai aparecer com alguns dias de atraso) gostaria de destacar o que me parece ser uma característica quase única na débil imprensa diária portuguesa: a tenção à divulgação de notícias científicas (da arqueologia à biologia, da química à medicina) que conseguem entusiasmar o leitor mais preguiçoso.

Tudo isto pelo preço de duas bicas na esplanada do costume!

Que bom!

Que muitos anos se sucedam, iguais ou melhores. Se algum de nós há de morrer espero ir eu em primeiro lugar não só porque tenho mais do dobro da idade do jornal mas sobretudo porque amanhecer sem o jornal tornaria ainda mais tristonhos os dias. Ou mais vazios...

Estes dias que passam 366

d'oliveira, 01.03.18

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Viva o Esportingue!

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Não tenho clube de futebol. Nunca tive, mesmo se confessasse uma certa ternura pela “Associação Naval 1º de Maio”, modesta equipa que andou décadas pela 2ª divisão, subiu surpreendentemente à 1ª onde se entreteve uns parcos anos e depois desapareceu do panorama futebolístico nacional. Acho que, actualmente, disputa alguma coisinha regional de somenos importância.

A minha ligação ao clube figueirense advém do facto de, entre meados de quarenta e de cinquenta, meu pai ter presidido aos destinos da Naval onde também exercia de médico gratuito e, se me lembro bem, uma que outra vez de chauffeur de um carro enorme e desengonçado onde se transportava toda a liderança do clube. Fora isso, só recordo ter penosamente assistido a uns jogos no “campo da Mata” levado, sem alegria nem prazer, pela pátria potestas. O mesmo, aliás, me sucedeu quando andava no 3º ano do liceu em Coimbra. De quinze em quinze dias era-me negado o prazer do fim de semana na Figueira porque a Académica jogava em Coimbra e o meu pai, sempre ele!, fervoroso adepto, vinha à bola e leva-me ao estádio. Um horror!

Feita esta necessária introdução, apenas com o fito de explicar o meu nulo apreço pelos clubes de futebol nacionais e internacionais, pela “bola” e por boa parte do que por aí corre disfarçado sob o nome de desporto, eis que me vejo perante o extraordinário (no pior sentido de eminentemente ordinário) caso do Sporting e da estrondosa carreira do seu presidente.

Comecemos pelo mais óbvio, a história. O Sporting (Clube de Portugal) é um produto lisboeta puro e duro e, mais do que isso, uma criação da chamada elite social e financeira da capital. Um clube de senhoritos, de meninos bem, chiques até dizer basta.

Ainda me lembro de ouvir um cavalheiro respeitável acusar um amigo de ser um “talassa” logo que soube que o segundo era sportinguista. Talassas eram a princípio os monárquicos mais conservadores e depois os ricos e os bem pensantes. “Poucos mas bons”, como se dizia, senhores do seu nariz e desprezando ostensivamente o “povo”, a “gentinha”, o “pé descalço” que, obviamente havia de engrossar os fãs do Benfica o outro clube de Lisboa (Não se referem o Belenenses, o Oriental ou o Atlético também lisboetas mas confinados a bairros e sem historial que mereça mais do que modestos titulares, mesmo se o Belenenses tivesse tido nos anos 50 e 60 honras de “grande”).

Durante as décadas da minha infância, adolescência e primeira juventude, o Sporting e o Benfica (ocasionalmente o Porto) eram quem todo lo mandava. Do primeiro ficou famoso o grupo dos “cinco violinos” (2ª metade dos anos 40: Jesus Correia, Peyroteu, Travassos, Vasques e Albano) prodigiosos jogadores. O Benfica é o que se sabe. Durante anos a fio, décadas mesmo, foi o clube do regime e a joia da coroa. Ganhava em todos os palcos desde Portugal até à Europa. Suponho que ainda é o clube com mais títulos e taças logo seguido pelo Porto que sempre foi sólido mas só começou a brilhar verdadeiramente depois dos anos 60.

Data dessa época o progressivo eclipse do Sporting. Não me vou dar ao trabalho de procurar mas aposto que desde os anos 60 até hoje não terá ganho mais de meia dúzia, o que em 58 épocas sabe a pouco. O resto distribuiu-se quase sempre entre o Benfica e o Porto com ligeira vantagem para o primeiro.

As direcções do clube foram sendo progressivamente ocupadas por uma nova classe social cada vez mais distante da conservadora e tradicional elite anterior. O que não tem nada de mal mas que, no caso em apreço, reveste uma peculiar característica. Os novos dirigentes tentam macaquear os antigos ou, pior ainda, os dos clubes líderes dos últimos cinquenta anos. Os associados, que sempre riscaram pouco, ficam deliciados quando os “chefes” farroncam, esbracejam, ameaçam, uivam e se desfazem em impropérios e acusações.

O delírio atingiu o auge (?) com o actual presidente do clube, um a criatura que dá por Bruno de Carvalho e se gaba de ser sobrinho neto de um antigo e fugaz primeiro ministro. Sempre me espantou esta necessidade de recorrer a eventuais antepassados que, de resto, nunca se identificam como “carnais” ou por afinidade, caso em que a reivindicação familiar além de obnóxia é parva.

A criatura Carvalho apareceu no universo televisivo mais vezes do que o decoro permitiria mas com sobrados motivos: o homenzinho excede-se em patacoadas violentas contra adversários internos e externos (mais, até, os primeiros) e numa última e triunfante alocução aconselhou os associados a não ler jornais (falo dos associados que serão alfabetizados e tenham algum escasso hábito de leitura) desportivos –todos inimigos do clube- a não ouvir os comentadores desportivos nos media (medida que até poderia ser salutar atenta a quantidade de horas que aquelas cabecinhas pensadoras ocupam os melhores horários televisivos, mas que no caso é apenas um protesto contra algumas observações “menos respeitosas” dos palestrantes sobre o Sporting) e mais quatro fatwas do mesmo teor. Em boa verdade, o cavalheiro Carvalho elaborou um programa informativo par os associados digno da Coreia do Norte: não vejam, não ouçam, não leiam, não comentem (e não pensem?) o que vai nas bocas do mundo. Fora de Alvalade (de um Alvalade expurgado de conspiradores, detratores, críticos ou meramente neutros) não há salvação. O sindicato dos Jornalistas ofendeu-se e protestou como se esta estúpida proposta valesse sequer um comentário. Como se uma boa parte do sportinguismo militante se fechasse ao mundo. Alguns benévolos comentadores gerais viram em Carvalho um novo fascismo como se ele soubesse o que isso é. Aquilo não é coisa alguma excepto arrogância de uma galinha pedrês que gostaria de ser águia um de uma lagartixa que se tomasse por um dragão. Mais do que irritar, Carvalho faz rir mesmo se a gargalhada seja penosa. Saber que num país pacato e civilizado ainda há destes abencerragens deixa muita gente perplexa e a perguntar onde é que a Educação Nacional falhou. Já se sabia que, no fim da escolaridade média, a escrita é um mistério, as contas um sacrifício sobre-humano e a capacidade de conhecer o mundo em que se vive algo de escasso e contingente.

É habito dizer-se que “no melhor pano cai a nódoa”. Convenhamos que aqui nem o pano é mais do que sofrível nem a nódoa assusta. Nada que lixívia e bom senso e alguma educação não limpe e desinfecte.

O Clube de Carvalho vai corajosamente na terceira e habitual posição. Nada prenuncia que possa, facilmente, ultrapassar os dois que o antecedem mesmo se, em futebol, haja horas que duram mais alguns minutos do que os usuais.

Todavia, numa coisa o Sporting é indubitavelmente já campeão: no terrorismo verbal, na tolice ameaçadora, na impotência acusatória. À falta de melhores razões, este título também serve.

(Em memória de João Taveira da Gama, sportinguista sofrido, amigo desde os sessenta que a Parca já arrebanhou. Felizmente não assistiu a isto. Para azar basta a morte, é inútil acrescentar-lhe a vergonha.)