Tentar perceber
mcr 13 Abril 2018
Os portugueses, ou alguns portugueses, nunca deixaram de sentir o Brasil como algo seu.
E não por este ter sido, durante mais de dois séculos, o destino natural e quase obrigatório da emigração portuguesa. Não há português que não conte com parentela brasileira pelo menos em segunda ou terceira geração. Não é só o facto de usarmos a mesma língua (ou algo parecido com isso: ao falar do português do Brasil recordo sempre a frase do inglês que ao referir-se aos Estados Unidos afirmava que tudo era quase igual excepto a língua).
Eu, mesmo, tenho um pai nascido no Rio de Janeiro e descobri através deste blog uma série de primos distantes pelo lado de um trisavô alemão, médico emigrado no século XIX para o Rio Grande do Sul. Até me lembro da primeira frase da mensagem do primo Sérgio Heinzelmann: “Ué que é que você é a Vôvô? - Trineto caro Sérgio enquanto V é apenas bisneto!...” E durante anos trocámos correspondência vária até ele ter (suponho) morrido.
O meu pai filho de uma Heinzelmann nunca esqueceu os seus primeiros anos na “fazenda” da bisavó Ubalda que ele visitava indo de Portugal até ao Rio e daí até Petrópolis, onde a acaudalada e poderosa família materna se estabelecia durante o Verão. Quando, muito pequeno, ficou órfão da avó Dora, houve um acordo entre o meu avô e a sogra: o menino iria de longe em longe ao Brasil visitar, avó, tias e primos e primas. Depois da morte da avó, o ciclo interrompeu-se e só lá voltou cinquenta anos depois. Entretanto, as primas vieram a Portugal várias vezes e a relação familiar só acabou quando foram morrendo.
Nasceram, também no Brasil, um trisavô materno e outro paterno. Como se, desde o século XVIII, os meus familiares se tivessem entretido a cruzar o Atlântico para estudar em Coimbra, para casar, para se estabelecerem noutra terra que não a natal.
Percebo, portanto, esta quase mística da grande família luso brasileira. Por meu lado, sempre me interessei pelo Brasil via literatura (e o cinema) e durante os breves anos que vivi em Moçambique não só lia revistas de “quadrinhos” brasileiras (Gibi, Guri) mas também consumia uma revista mais adulta, “O Cruzeiro”, que me forneceu as primeiras pistas para a política brasileira. Lembro-me perfeitamente (e lá voltaremos) do fim do governo de Getúlio Vargas e do seu suicídio, dos temíveis artigos de David Nasser e Carlos Lacerda. E de Vão Gogo, irresistível humorista de que tenho dois ou três livros notabilíssimos.
Nos meus anos de Universidade segui apaixonadamente todas as peripécias da política brasileira desde o consulado de Café Filho até à aventura de Jânio Quadros e de João Goulart. Depois vieram os generais e foi o que se viu. Curiosamente, um dos livros mais divertidos que li e conservo é da autoria de um irmão do general João Figueiredo, de seu nome Guilherme. O livro em causa é “Tratado Geral dos Chatos” e ainda hoje se lê com um sorriso.
Estou, pois, à vontade para analisar este último e triste episódio da vida política brasileira. Como muitos da minha geração, assisti interessado e comovido aos primórdios de Luís Inácio da Silva, mais tarde Lula. Em boa verdade, simpatizei mais com Fernando Henrique Cardoso, de longe o melhor presidente que o Brasil teve nos últimos cinquenta anos. É Cardoso quem inicia a política económica que iria tentar fazer o Brasil sair do subdesenvolvimento. Foi dele a ideia do real e assumpção de uma série de medidas de política social e ambiental. Internacionalmente, foi (e é) considerado um líder de primeira linha e partilhou com Jimmy Carter, Desmond Tutu ou Nelson Mandela.
Tenho assistido a este encalorado debate sobre Lula e, espanto dos espantos, verifico que quanto mais cultos deveriam ser os intervenientes menos parecem saber (ou explicar cá para “fora”) as reais condições do processo, melhor dizendo dos processos que envolvem o ex-presidente do Brasil.
Comecemos pelas questões processuais. A legislação brasileira, como, aliás muitas outras, integra a delação premiada. Com isso pretende-se tornar o processo mais expedito, acelerar a investigação criminal e dividir os réus. Há, até, num cada vez maior número de países, a tentação de criar mecanismos idênticos ou semelhantes sobretudo para combater a crescente e cada vez mais sofisticada corrupção. Há mesmo exemplos encapotados do recurso a este expediente para a identificação de contas ocultas em paraísos fiscais. Só não o vê quem não quer ou quem acha isso inconveniente para os seus negócios privados.
A segunda questão prende-se com o começo do cumprimento da pena de prisão decretada pela 1ª ou 2ª Instância. Nos Estados Unidos, a pena começa a ser cumprida imediatamente mesmo se há recurso dela para um tribunal superior. No Brasil, o Supremo Tribunal criou, há já algum tempo, jurisprudência no sentido de acelerar o cumprimento da pena no caso de a 1ª e a 2ª Instâncias o terem determinado.
Fico estarrecido com um senhor professor (catedrático afirma ele e não serei eu quem o contradiga mesmo se isso me espanta e me dê a entender como a universidade se degradou) que veio a público dizer exactamente o contrário. Não vou perder tempo com um conhecido comentador coimbrão que no seu profundo amor a Lula vem falar de conspiração e de perseguição política. Como se a operação Lava Jacto não tivesse no rol de acusados, processados e detidos, um número bem mais elevado de personagens conotadas com o poder financeiro e com a Direita política e/ou social.
A terceira questão é ainda mais curiosa: ao que parece ninguém quer recordar o “Mensalão”. Num pais em que o Presidente da República detém poderes extensíssimos, aquela aventura apenas caiu em cima de José Dirceu, fiel entre os fieis de Lula. Este no unânime dizer dos analistas, “passou entre os pingos de chuva”, mesmo se esta fosse torrencial. Começou aí a desgraça do ex-presidente que nunca conseguiu explicar satisfatoriamente como é que o seu ex-braço direito organizara a captação de fundos gigantescos para o PT, para comprar deputados de outras formações, para todos os seus próximos apoiantes.
A quarta questão tem a ver com o facto de, no Brasil, o juiz de instrução (ao contrário do que se passa entre nós) poder vir a ser o juiz do processo. Podemos discordar (eu discordo) mas no Brasil a lei é exactamente essa e, até à data, ninguém por cá se tinha lembrado de a criticar...
A quinta questão radica nas acusações ao juiz Sérgio Moro. Durante anos, enquanto ele ia prendendo capitalistas e financeiros, ligados ao anterior establishment, Moro foi um herói. Lá e cá. Junto dos militantes do PT e de muita gente portuguesa. Moro era a versão brasileira dos juízes italianos das “mãos limpas”, ou dos émulos espanhóis de Garzón.
Agora é a bruxa má, a madrasta de Lula Branca de Neve. Ziguezagues da História com tempero ideológico em excesso...
Todavia, foi Moro quem exculpou o senhor Vaccari, tesoureiro do PT justamente no processo Lava Jacto. Ou seja, Moro desempenha nesta tragicomédia brasileira, neste samba de enredo, dois papéis: o de dr Jekyll e o de mr. Hide. Em que ficamos? Mau nos dias pares, bom nos ímpares e descanso ao domingo?
Deixemos, porém estes enfadonhos pormenores e vejamos a situação tal qual parece passar-se Brasil. É, ou foi, o PT uma organização revolucionária? Teve ou não uma governação popular e de conquista de direitos para as massas mais desfavorecidas da população?
À 1ª questão responderia Não e à 2ª Sim, absolutamente. No início da sua carreira de governante, Lula foi claramente um dirigente democrata e “moderado”, sobretudo se o compararmos com alguns outros líderes sul americanos. Foi populista? De certo modo mas isso não pode, sem mais, ser apontado como pecado mortal numa época em que em todas as geografias o populismo está de moda, seja com o sr Orban, com o inenarrável Nicolás Maduro (outro herói de alguma, escassa “Esquerda” caviar lusitana que amando sofregamente o povo recruta, porém, os seus militantes e os seus votos nas classes urbanas educadas. Até o Sr. Presidente da República passeia pelo país babado a sua bondosa figura, o seu resplandecente afecto e é imortalizado diariamente em centenas (que digo? Em milhares!) de selfies.
Costuma dizer-se que “o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”. A coisa é visível por todo o lado desde a Venezuela à Europa dita oriental (nem sequer referindo a Rússia do novo Czar Putin, acrisolado defensor da russificação de várias partes dos países vizinhos e “soberanos” (Putin nunca esqueceu a famosa teoria da “soberania limitada”, cara ao poder soviético e aos seus epígonos portugueses).
O PT começou muito informalmente mas cedo se integrou no mundo surpreendente da política brasileira. Dotou-se de um aparelho e os seus dirigentes depressa desenvolveram os mesmos apetites dos congéneres dos partidos tradicionais. Recordo, apenas e em contraponto, a solitária mas corajosa figura de Marina Silva que depressa se desiludiu e tentou fazer carreira aparte. Bom seria que os eleitores se lembrassem dela, agora.
(descendente de negros por um dos lados, MS é um dos raros exemplos de um Brasil plurirracial que, entretanto, expulsa os não brancos para o ghetto invisível mas real das dos subúrbios favelados, habitat das classes baixas e domínio dos grandes traficantes e dos “bicheiros”. Num país com uma população maioritariamente não branca, são os brancos quem leva “a voz cantante” como dizem os nossos vizinhos. Procurem, fora da música e do desporto, os negros e mulatos relevantes. Ainda há pouco, foi notícia a chegada do primeiro juiz negro ao Supremo Tribunal. Vejam, se quiserem, o plantel dirigente do PT para não ir sequer aos outros partidos que, provavelmente, ainda são mais brancos).
Um ignorante comentador facebookiano teve mesmo a audácia de comparar Lula com Obama, criatura que ele, num vero delírio racista, considera um espantalho. Ou seja o Brasil dos negros invisíveis (cfr Ralph Ellison) é , moral e eticamente, muito superior ao país que já elegeu e reelegeu um presidente negro, que mantem um sólido grupo de senadores e congressistas negros, que tem um grande número de políticos estaduais e municipais negros e “latinos” que ostenta uma miríade de grandes intelectuais negros que não se confinam à música e ao desporto. Com amigos destes, Lula não precisa de inimigos...
Pessoalmente, dói-me a queda de um mito e de alguém que vi começar na luta desproporcional contra a ditadura dos generais. Desejaria que se provasse a sua inocência. Por razões várias, pessoais, abomino a prisão seja de quem for. Sei, de modo intensamente vivido e sofrido, o que isso representa na vida de alguém. Todavia, a simpatia não pode altera aquilo a que Danton chamou “a áspera realidade”.
E, por cá, não há, que se veja, quem se preocupe com esse ligeiro pormenor. Lula merece mais, muito mais, que estes seus defensores que o confundem com Maduro ou, mais simpaticamente, com o Chico Chicão da velha telenovela.
E já agora: não mitifiquem seja quem for, e Lula muito menos mesmo se ele vos convida para tal (“já não sou um homem mas uma ideia”!) No cortejo de horrores que nos deixou o século passado, o que viu nascer Lula, abundaram os mitos e soçobrou a ideia simples e honrada de humanidade.
* por razões que se prendem com a sua paisagem, com a fauna e com a flora, o Brasil foi alvo predilecto de grandes ilustradores, a começar pelos portugueses que lá fizeram grandes expedições e nos deixram obras sumptuosas e de grande rigor científico (por todos o dr Alexandre rodrigues Ferreira).todavia a ilustração de hoje é obra do francês Debrée que retratou o Brasil já no século XIX. A sua extensa obra é hoje pertença de grandes galerias e/ou colecções particulares. Quem porfiar talvez encontre em alfarrabistas antologias dele.