Estes dias que passam 373
Valha-nos Nossa Senhora da Boa Morte
Coisas simples e evidentes
mcr 31.05.2018
Uma Manuel (Maria) e um Manuel, gente do mais estimável e inteligente que por aí anda, ofenderam-se muito comigo quando lhes resumi sucintamente (demasiadamente sucinto) o meu post sobre a votação da eutanásia.
O Manuel quase que me gritou que eu seria contra a “despenalização”, acusando-me de querer mandar para a prisão, para o cadafalso ou para Vorkuta qualquer criatura que ajudasse outra a morrer.
A Maria Manuel avançou com o tema do aborto, com a luta de dez anos (aliás até reconhecia que dois sucessivos referendos não tinham tido consequências por falta de votantes).
Eu, velho ou novo reaccionário empedernido, lá ia dizendo que a AR entendera pronunciar-se sobre uma questão que não fora discutida pelos partidos e pelos deputados nela integrados durante a última campanha eleitoral. Que isso, só isso, feria a votação de ilegitimidade ética e política; que a famigerada discussão ampla e generalizada nunca existira, que o chamado direito à morte nunca por nunca poderá ser paralelo ao direito à vida; que os cidadãos eleitores tem o direito de conhecer as opiniões dos que solicitam durante um escasso mês o voto popular; que o facto de a eleição dos deputados não se fazer uninominalmente como em qualquer país civilizado em que o cidadão sabe perfeitamente que vota em A ou B e não numa turbamulta; que, no caso das cidades mais importantes (Lisboa, Porto, Braga, Aveiro, Coimbra ou Setúbal), a votação e eleição aparecem absolutamente opacas perante os eleitores mostrando os candidatos como simples peões de brega, fungíveis, como se de coisas simples se tratasse, torna esta Assembleia numa espécie de tablado onde os partidos levam a “voz cantante” e os deputados apenas levantam e sentam o cu para votar como manda o chefe que, por sua vez, mais não é do que uma correia de transmissão do aparelho obscuro que governa de facto o Partido; que –e isto é o mais importante – não basta legislar sobre a eutanásia mas sim sobre como se morre em Portugal.
Morre-se mal ou muito mal por cá. Cuidados continuados são como qualquer pessoa minimamente séria sabe mais raros do que os milionários do totoloto. Cuidados paliativos, idem, aspas, aspas. Quem tem dinheiro, desanda para as escassas instituições privadas que existem e são obviamente caras. Quem não tem morre no hospital ou é rapidamente mandado para casa onde morre na mesma no meio do desamparo e da mágoa impotente dos familiares.
Isto queridos, Manuel e Manuel, perturba-me, ofende-me, indigna-me. È que, a esmagadora maioria dos moribundos não quer morrer. Agarra-se à vida como a lapa ao rochedo. E os seus familiares, honra lhes seja, também não o querem ver desaparecer. Centenas de milhares, para não falar em milhões de portugueses tentam tudo para acompanhar os seus na hora da verdade. E isso vê-se até na hora da morte ou no dia dos mortos altura em que os cemitérios florescem desmedidamente como se as pessoas quisessem lembrar aos seus mortos que eles estão, por um simples dia, vivos, pelo menos na memória dos mais próximos.
Pessoalmente, gostaria que me evitassem sofrimentos inúteis, tratamentos caros e também inúteis para já não falar no temendo sacrifício que uma pessoa em fim de vida, doente ,incapaz e sofredor, impõe aos seus familiares. Vi, como morreu o meu Avô Alcino, uma caricatura de velho doente e envergonhado ( o Parkinson afectara-lhe a fala, retira-lhe o controlo de várias funções excrescentes o que o envergonhava medonhamente. Estava à mercê do filho, da nora, deste neto inepto ou de alguma empregada doméstica que provavelmente pensava que “não era para aquilo que a pagavam”. Vi o meu tio Joaquim, vaguear pelo Alzheimer, balbuciando palavras desconexas, o olhar enlouquecido não reconhecendo amigos ou inimigos, mulher parentes ou filho. Anos a fio... sofria? Não sofria? Logo ele que adorava ler, conversar, passear que se ria e pensava!
Todavia em um nem outro são, penso, candidatos a uma morte piedosa. O “famoso” sofrimento irreprimível não ocorrerá nestas duas cada vez mais presentes doenças da velhice.
Mas eu gostaria de ser poupado à humilhação (claríssima e sentidíssima no caso do Avô) de acabar assim os meus dias. E para isto não há, ninguém prevê, uma solução que preserve a decência da vida e limite no possível a tremenda decadência da pessoa.
Ou há: cuidados continuados, cuidados paliativos residências medicalisadas para os cada vez mais numerosos anciãos que sobrevivem mas subvivem.
Alguém lembrou isto durante essa inexistente e absurda discussão, durante essa desoladora votação?
Mas há mais e pior: Foram votados quatro projectos: convenhamos que eram profundamente semelhantes e as diferenças poderiam, caso houvesse votação na especialidade, ser praticamente apagadas. Então não é que as votações foram sempre diferentes. Que houve deputados, mormente no PS e no PSD que só votaram os “seus” projectos e contariam os restantes? Isto pode ser chamado de “voto de consciência”? Isto foi de um “elevado nível”? As intervenções foram, e estou a ser simpático, de uma vulgar mediania, recheadas de narizes de cera que mais pareciam trombas de elefante. O Parlamento deu-se em espectáculo a si meso e merecia um Eça e uma “campanha alegre” para descrever o que se passou.
Mas deixemos isto que é triste e penoso e passemos a um argumento refalsadamente indecente: a comparação com o processo da despenalização do aborto. A campanha durou anos e anos e baseava-se numa incontornável realidade: a prática transversal e generalizada do aborto clandestino. Ao que, na altura, se afirmou, em Portugal realizar-se-iam ano bom, ano mau, quarenta mil abortos. Quarenta mil entre os praticados por médicos clandestinamente e regiamente pagos aos “selvagens” no recôndito das aldeias ou das casas por métodos bárbaros que causavam a morte a não poucas mulheres e que deixavam muitas mais profundamente marcadas ou incapacitadas em diferentes graus.
A prática do aborto clandestino fazia parte do modo de ser português como aliás do modo de ser de muitos povos e países. A urgência em lhe pôr cobro era sentida por uma larguíssima maioria dos portugueses. Só que, neste caso, havia uma fracção ruidosa e disciplinada que era contra. Que ainda é contra. Que em certos países é violentamente contra. Que, por isso, chega a matar, a pôr bombas.
E havia mais: havia o perigo das malformações dos fetos; o resultado insuportável de violações de mulheres indefesas; a ignorância de muitas raparigas que, só tarde e a más horas, percebia que no amor nem tudo são rosas, ou sendo-o também há espinhos. Entre os mais pobres havia o terror de não poder alimentar mais uma boca.
Ou, por outras palavras: havia uma profunda consciência dos males de uma política sanitária de interrupção da gravidez não desejada ou perigosa. E tanto era assim que o recurso desesperado ao aborto clandestino e perigoso era banal, tocava todas as classes, religiosos e não religiosos. Havia, digamo-lo, uma clara reprovação da ilicitude de tal prática. E o sentimento generalizado de que urgia acomodar a lei às espectativas reais das pessoas, mormente das mulheres principais interessadas e principais vítimas. Por isso, uma vez, finalmente, votada a “lei do aborto” não se verificou nenhum protesto digno de nota nem sequer por parte dos que à lei se opunham.
E no que toca à eutanásia? Aqui as questões são diferentes. Em primeiro lugar, há a percepção de que ajudar a morrer é, ainda, matar. Depois, convirá fazer uma simples pergunta: quantos dos leitores que, como eu, não querem morrer na indignidade, no sofrimento intolerável e também não desejam que o seu pesadelo seja extensivo aos seres mais queridos e mais próximos, já tiveram a precaução de registar o seu “testamento vital”? Não pergunto, para não embaraçar nenhum/a dos deputados/as favoráveis aos projectos chumbados, se algum/a sequer se lembrou dessa pequena, fácil formalidade?
Se não erro, ainda não há vinte mil portugueses registados. Vinte mil num universo de nove (mas que fossem só oito...) milhões de adultos! Ou seja: perante a hipóteses de serem atingidos por doença ou acidente com consequências mortais e intenso sofrimento (para não falar na hipóteses de uma agonia lenta e extremamente onerosa para o próprio e para os familiares), apenas uma pequeníssima, insignificante minoria decidiu dar um passo, fácil e gratuito. Dispor que, em caso de impossibilidade futura de manifestar a sua vontade, o cidadão recusa tratamentos inúteis e nomeia simultaneamente um ou mais procuradores que velarão pelo respeito da sua vontade livremente tomada em plena consciência. Vinte mil, ou um pouco menos!
Esta é, para já, a imagem de uma sociedade que mais de cem auto-proclamados políticos afirmaram compreender, defender e representar. Não vou perder tempo e palavras com muitos, a grande maioria dos que no Parlamento lhes fizeram frente. Nem sequer, piedosamente, desejar que algum dia estejam perante o dilema da morte piedosa, seja a deles ou dos seus entes queridos. Não vá suceder como aquando do aborto em que à janela o atacavam e no quarto dos fundos ou numa clínica cara, o praticavam. Como bem prega frei Tomás: Olhai para o que diz e nunca para o que faz.
Mas isso é já uma outra guerra...
(nb Também não queria recordar um pequeno pormenor que parece ter escapado a muitos, senão a todos: Na União Europeia apenas três países, Holanda, Bélgica e Luxemburgo legiferaram sobre o tema. Por outras palavras, apenas 10% dos europeus da UE... Mesmo sendo um principio (com já 15 anos), é pouco. E revelador do estado da discussão ou do receio de a iniciar. Convém avisar que, justamente, nestes países, iniciadores da UE, existe uma excelente taxa de cobertura médica e de cuidados paliativos e continuados. Nada que lembre Portugal...)
* Na imagem: Nª Srª da Boa Morte (Igreja de S Roque?)