au bonheur des dames 455
Morreu a Fernanda
mcr 28.06.18
Maria Fernanda Vieira da Bernarda, anos 60. Alta e desembaraçada, uma “moçoila que respira saúde”, na expressão do meu primo Mário Leão, num dia em que foi a Coimbra manifestar a sua solidariedade à malta já em greve.
Conhecia-a uns anos antes da “crise”, da nossa crise, como me lembraram vários amigos que me foram telefonando e enviando mensagens desde a manhã de quarta feira, vinha eu para Lisboa fazer a minha visita mensal à velha, velhíssima Mãe e aos restantes cada vez menos familiares.
Noutros tempos teria reagido com mais emoção à notícia mas sabia, com vergonha o confesso, que a “Bernarda” (era assim que a Isabel Pinto, eu e mais alguns a chamávamos) estava mal, muito mal. Uma esclerose múltipla contra a qual combateu com serenidade, coragem e teimosia, tinha-a atirado para uma cama há vários (dez?) anos já. Eu ainda a vi, já em cadeira de rodas mas toda sorriso e alegria pelo reencontro com velhos amigos. Terá sido na última vez em que participei nas comemorações do 17 de Abril. Depois, o peso dos entretanto mortos começou a minar-me a alegria do reencontro e decidi não mais participar no que se ia transformando num velório de gente prometida à morte.
Todavia, a Bernarda era outra história. Não só fomos colegas (ter-nos-emos formado no mesmo ano, julgo) na faculdade mas, durante muito tempo, convivemos fora da “Alta” especialmente nos cafés conspirativos da praça da República (a “praça vermelha” como dizia um comum amigo que depois chamava ao café Mandarim, o “kremlin”). Pois foi nesse “kremlin” que muitas vezes nos juntámos, um alegre grupo que ia preparando a reconquista da Associação Académica ocupada por uma infame “comissão administrativa”, durante três longos anos.
Não vou fazer a história desses dias de vinho e rosas, de chumbo e desgosto, que isso está feito e detesto as memórias de antigo combatente.
Logo nos inícios de 70 estávamos, muitos dessa fornada, no Porto e, juntamente com o António Lopes Dias, a Isabel Pinto, o José Afonso e a “Bernarda”, formámos uma espécie de sociedade de advogados partilhando um escritório de cujo aluguer me encarregaram. (Em boa hora o decidimos que a senhoria ao saber o meu nome me perguntou por um tio avô e perante a minha resposta positiva logo nos fez um desconto de 500$00 mensais. O velho tio Alfredo Corrêa Ribeiro morrera entretanto e deixara ao pai da senhora uma espingarda. Agradecida, fazia-nos aquele enorme desconto...)
No Porto, o grupo vindo de Coimbra, ou melhor, o grupo que já era de amigos em Coimbra prosseguiu uma louca continuação da “crise” de 69, com o apoio de mais outra gente que ficara em Coimbra. Reuníamo-nos gravemente, várias vezes na casa que eu e a Maria João partilhávamos, outras na casa da Bernarda e do Zé Ferraz e tentávamos pôr de pé uma teoria conspirativa e revolucionária fora dos esquemas do PC e do recém nascido PS. Éramos todos sócios da “Centelha”, editora nascida em Coimbra e divulgadora de todos os heterodoxos marxistas bem como de muita e da melhor poesia portuguesa do momento. Quando um dos nossos, o Zé Afonso, então na tropa, nos avisou da iminência do 25 de Abril, foi o delírio. Distribuiram-se tarefas de apoio à intentona que nem foram necessárias pois, como se sabe, tudo correu bem. A mais louca ideia, proposta pelo Zé Ferraz ou pela Bernarda, consistia, caso fosse necessário, em fornecer uma cela para o general comandante da região militar em casa deles pois uma das casas de banho era interior e tinha tudo o que fosse necessário a um preso!
Éramos aliás vizinhos, no bairro onde ainda hoje vivo e lembro-me que quando me instalei no meu primeiro apartamento, logo a Bernarda apareceu com prendas várias desde uns copos e chávenas desemparelhados até um cobertor (eu entretanto divorciara-me). Não tive coragem para lhe dizer que tinha um enxoval completo... No nosso comum escritório prosseguíamos a nossa actividade de advogados de sindicatos e do que mais viesse à rede pois estávamos todos no começo. O pouco dinheiro que ganhávamos era rigorosamente dividido por todos fosse qual fosse o apport de cada um. Ao mesmo tempo íamos dividindo uma peculiar espécie de clientes gratuitos: a estudantada em revolta e o resto da oposicrática que ia aparecendo à procura de um advogado para o caso da polícia se interessar pelas actividades de alguém.
Com o 25 de Abril, demorámos algum tempo a decidirmo-nos onde cair partidariamente mas praticamente todos acabámos no MES e quase todos saímos de lá ao fim de um ano. Mais tarde, muitos, reencontraram-se no PS mesmo se nem todos tenham ficado por lá. Entretanto a Centelha faleceu de morte macaca afogada pelas dívidas de distribuidores que faliam com singular rapidez. Alguns, mas já menos, ainda criámos um livraria no Porto, a “Erva Daninha” que não obstante o nome durou apenas um par de estações. Nada disso, porém, quebrou a boa disposição ou afectou a amizade. Vínhamos de tempos duros, não queríamos (pelo menos a maioria de nós) galões de evolucionário nem prebendas do novo regime. Se nos aguentámos à tona e, de certo modo, prosperámos foi à custa de muito trabalho. Hoje está tudo na reforma ou quase porque há ainda alguns que acham melhor entreter-se a trabalhar do que calçar as pantufas. A Bernarda, essa, cedo teve de as calçar que a esclerose múltipla não é para graças nem dá tréguas. Houve casamentos e divórcios, claro mas singularmente todos os ex-cônjuges de que consigo lembra-me mantem as boas relações e a cumplicidade de antanho.
Dizem-me que no facebook, instituição que não frequento se vão multiplicando notícias e quiçá comentários. Todavia, faltaria a uma amizade de quase sessenta anos se não a recordasse aqui, neste pequeno canto tanto mais que alguns dos meus sacrificados leitores vem desses tempos bárbaros. Como alguém dizia, hoje, no velório, já nos podemos considerar relíquias senão sobreviventes. Ao encontrar esse quarteirão de amigos e conhecidos dezenas de outros me vieram à memória. Não estavam lá, nem poderiam estar. Subsiste a memória terna e frágil deles, caras e sorrisos de rapazes e raparigas que num momento único e irrepetível, num país naufragado e silencioso gritaram sem raiva mas com alegria e desafio a sua vontade de estar vivos e de viver.
E foi disso que falámos hoje na sala ao lado daquela onde jazia o cadáver da Fernanda, digo da Bernarda, digo da nossa boa, especial e querida amiga.
E nessa sala soturna pareceu-me ver, se é que não vi mesmo, o Osvaldo (Vává) Sarmento e Castro, o António Mendes de Abreu , o Zé Salvador, os dois Alfredos (Soveral Martins e Fernandes Martins, o João Bilhau. E outros, muitos outros, nomes delidos pelo tempo, pela minha incúria ou, mais provavelmente pela memória que já me vai traindo. Riam-se dos vivos envelhecidos que, de todo o modo, pareciam estar contentes por se reverem ao fim de tantos anos, tanta oportunidade perdida, tanto mar, tanto mar...
Vai esta dedicada ao João da Bernarda, com um forte abraço. Ele, mais velho e sem ligação ao meio académico, esteve connosco sempre, valente e bem humorado. A ajudar em tudo o que fosse preciso. Vinha da mesma cepa, é o que é.
* a gravura: esta imagem está mais que vista mas onde estou não tenho acesso a nenhuma fotografia e na internet esta imagem era a única que podia usar-se. O resto era de gente que não conheço. Para quem, por milagre não saiba, esta é a fotografia das escadas monumentais tirada logo a seguir à inauguração do edificio das Matemáticas e ao "sacrilégio" dos insultos ao "venerando" Presidente da República. O que nós nos divertimos.