Diário Político 211
Brasil, Brasis...
d’ Oliveira fecit 29/30, Outubro, 2018
Não sou brasileiro, nunca fui ao Brasil (e bem pena tenho) mas, desde pequeno, o Brasil faz parte da minha casa. O meu pai é (era) um carioca de gema e todos os seus parentes do lado materno o eram. Em boa verdade, um longínquo trisavô, fidalgote empobrecido saiu demandou as terras de Santa Cruz, estabeleceu-se bem longe da corte, no Rio Grande do Sul e amassou uma fortuna gigantesca, com sorte, bom senso, muito trabalho e provavelmente alguma ajuda extra. Mais tarde, um médico alemão chegou aos mesmos sítios e casou com uma neta do terra-tenente. Vem daí uma longa teoria de famílias Heinzelmann e Martins que alastraram do estado do sul até ao Rio. Um desses Heinzelmann, militar de carreira ainda se correspondeu comigo via internet. (“Ué que é que você é a vôvô?”- Respondi-lhe que trineto e daí uns tempos de correspondência até ele desaparecer no éter. Em boa verdade, devo-lhe uma lista de Heinzelmann desde o século XVI que o pai, também militar coligira com dificuldade, várias falhas e muita paciência).
Depois, o Brasil foi para mim, as “Selecções do Reader’s Digest”, a revista “Cruzeiro” que chegava a Moçambique, bem como duas publicações de “quadrinhos” (Gibi e Guri) que eram óptimas.
Um pouco mais tarde irrompia, na minha mocidade, a literatura brasileira: graças e louvores se deem a todo o momento à editorial “Livros do Brasil” que nos trouxe, Amado, Veríssimo, Guimarães Rosa, Lins do Rego e mais outros tantos – nunca esquecer a abençoada Clarice Lispector, Deus a tenha o seu lado direito, senão ao colo sé que ela deixa e o Senhor se atreve. Através do Cruzeiro chegavam-nos ecos das tragédias brasileiras, ainda me recordo do fim de Getúlio Vargas, dos escritos de Lacerda, dos desenhos e piadas de Vão Gogo e de toda uma plêiade de jornalistas e cronistas que se deixavam ler com um profundo encantamento. Já perto da Universidade, chegaram os poetas. Primeiro o Manuel Bandeira e depois, em turbilhão, Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto com quem tive a honra e o imenso prazer de conversar um par de vezes. E outros, muitos outros (uma comovida homenagem ao grande Vinicius de Moraes “o branco mais negro do Brasil” que vi e ouvi no Teatro Avenida de Coimbra, em plenos anos sessenta acompanhado por dois estreantes (Toquinho e Maria Creuza). Dessa época são também os “Jograis de S Paulo”, um quarteto de recitadores extraordinário de quem consegui há pouco gravar para “cd” dois Lp de primeira água (“Poemas de Fernando Pessoa” e “Poemas Brasileiros”) que nunca foram reeditados nem passados a cd!!! Estes quatro actores tornaram-se célebres porque, mais tarde, interpretaram muitas personagens de telenovela (assim de repente só posso lembrar o Nacib, da “Gabriela cravo e canela”, a única telenovela que vi de cabo a rabo. A partir dessa, nunca mais consegui prestar atenção às que se seguiram. Defeito meu ou “Gabriela... era imbatível?
Nunca perdi de vista a política brasileira (Café filho, Kubitschek, Jânio Quadros, Goulart e uma série longa de generais que acaba com um Figueiredo que, por acaso, era irmão de um Guilherme autor de um manual/tratado sobre os chatos que é imperdível e emparelha com os notáveis escritos de Stanislaw Ponte Preta, aliás Sérgio Porto. A “ditadura” saía dali bem maltratada...
A “democratização” teve dois grandes protagonistas, Tancredo Neves e Fernando Henrique Cardozo. O primeiro foi uma esperança e o segundo lançou –mesmo quando alguns finórios esquecem a sua imensa obra (e bom teria sido se tivessem lido um seu artigo saído no “El País” há duas escassas semanas) mas FHC não cabe nos estreitíssimos quadros mentais de alguma nomenclatura lusitana sobretudo num apaixonado “madurista” coimbrão que só vê maravilhas na Venezuela e medonhas profecias nessa indigência chamada Bolsonaro). O resto das presidências do Brasil, por muito que isso custe a uma certa inteligentsia esquerdizante, morreu com o mensalão. Nunca percebi como é que houve quem passasse por entre as gotas da chuva desse imenso escândalo e se fosse aproximando da beatificação democrática. É que, nesse momento, ainda havia hipóteses de inverter a triunfal marcha do populismo que se alimentava da corrupção avassaladoramente crescente de um regime exausto que fugia para a frente semeando medidas populares sempre segundo uma conhecida receita sul-americana que Perón e seus sucessores inventaram para anestesiar a Argentina e manter até hoje uma coorte popular saudosa desses tempo de desastre nacional anunciado (nem os anos dramáticos da Junta Militar conseguiram -no meio de um cortejo de horrores- vacinar duradouramente os “descamisados”).
Pelos vistos, só entredentes e em voz baixa, é que há quem lembre as responsabilidades da “Esquerda” neste vertiginoso caminho para o abismo. A “Direita” só não aproveitava este desastre ético, social e económico se fosse absolutamente imbecil. E nunca, por nunca, o é.
Ontem, na televisão, o pomposo dr. Louçã insistia na tola trivialidade: Bolsonaro é “fascista”. Eis uma qualificação fácil, encantatória, própria de um sacristão retardado que, pelos vistos, não aprendeu a história do século XX. Bolsonaro é claramente de Direita, odeia homossexuais, criminosos ( e no Brasil, no último ano, houve vários homicídios por dia, parece mesmo que por hora!), tem uma devota admiração pela generalagem da última ditadura que, aliás saiu pelo seu pé sem revolução das massas ou golpe de algum quartel menos autoritário. Nada disto absolve os militares golpistas mas também não eleva a nenhum altar especial os seus opositores (que, uma vez caído o regime, se multiplicaram como os pães e os peixes evangélicos. Como cá, aliás, como cá...).
A democracia brasileira teve de tudo e, sobretudo, abundaram os políticos medíocres, os Sarney, os Collor de Mello, os Itamar Franco... A ascensão do Partido dos Trabalhadores foi fartamente ajudada pela mediocridade desta gente e poderia ter produzido um estado regenerado não fora a fatal atracção pelo abismo. A corrupção aumentou e com ela aumentaram os corruptos, os corrompidos, a exasperação de quem assistia a este deboche.
Quando o cerco judicial a Lula se começou a apertar, Dilma Roussef, a “presidenta” (é dela o termo tão enganadoramente feminista) não soube, ou não pode, ou não a deixaram, distanciar-se do padrinho, bem pelo contrário. Caiu com ele, perante o protesto dos que subitamente entendiam a Justiça como demasiado politizada. A mesmíssima Justiça que já tinha atirado para a prisão dezenas de poderosos empresários e acusado outros tantos para não falar da multidão de políticos indiciados e arguidos por corrupção. Mas a “Justiça” só é boa quando varre os nossos inimigos...
O PT, entretanto, não percebeu que um candidato preso não é um candidato credível. E que insistir nele pode ter efeitos imprevisíveis. E assim começou a surdir um candidato improvável, um deputado discreto que percebeu (e para isso não era preciso especial clarividência) que o eleitorado brasileiro achava insuportável o partido no poder, o sistema, o desemprego que crescia exponencialmente, a criminalidade incontrolável o custo de vida, as tentativas canhestras (sentidas, aliás, como ilegais, imorais e injustas) de libertar Lula.
Haddad, que poderia ter sido um excelente candidato original e não – como a sociedade brasileira pressentiu – um “pau mandado” (que reunia semanalmente com Lula!!!), um homem de palha que, uma vez no poder, amnistiaria imediatamente o seu mentor, foi escolhido quando o furacão já vinha a caminho. A pergunta que poderia fazer-se é se o aparelho “pêtista” sequer o queria, se confiava nele se não esperava apenas o momento de o defenestrar, uma vez ele eleito e amnistiado Lula.
Percebe-se a desconfiança dos outros candidatos ditos democratas, o mais que tíbio apoio (sempre “crítico”) que deram a um homem que fora, todos concordam, um bom governador de S Paulo, mas que não tem qualquer mandato electivo para poder agir num futuro imediato. De que modo poderá Haddad intervir? Terá o apoio do partido a quem evitou uma derrota humilhante? É bom não esquecer que, da primeira para a segunda volta, o PT com Haddad registou uma subida quase vertiginosa (de 22 para 44% mesmo se nesse número se possam, e devam imperativamente, contar-se com as vozes de todos que repudiavam Bolsonaro mesmo que a simpatia para com o PT fosse inexistente ou diminuta.
Por outro lado, o PT tem a maior bancada no Congresso onde campeiam cerca de trinta partidos. Com esta pulverização partidária, Bolsonaro não terá a vida fácil. Não me custa pensar que terá de misturar alguma água ao seu vinho se é que não será obrigado a engolir sapos, e bem gordos. O mesmo sucedeu, aliás, a Trump que já viu medidas programáticas suas serem derrotadas e abandonadas. Julgo mesmo que a privatização de algumas grandes empresas públicas naufragará na antiquíssima tradição brasileira, reforçada nos tempos de Getúlio que, se não erro, foi quem estatizou a Petrobrás, entre outras.
No que diz respeito às medidas securitárias, é bom recordar que a polícia depende das autoridades estaduais (e os Estados do Nordeste são pêtistas) pelo que, mesmo neste ponto extremamente melindroso, muita água passará debaixo da ponte.
A liberalização do uso e porte de armas levanta um curioso problema: pelos vistos, no Brasil, os criminosos sempre tiveram um acesso franco e fácil à aquisição de armamento (de que fazem um uso generoso e imoderado: não são apenas os 36.000 homicídios contados anualmente mas a quantidade provavelmente muitíssimo maior de agressões, roubos, ameaças e assaltos diariamente perpetrados o que faz com que muitos particulares sintam essa promessa como justa, leal e necessária. Tudo isto terá de passar pelo crivo do parlamento onde os bolsonaristas, lato senso, não detém a maioria.
O “fascismo” na sua essência pressupunha uma visão pagã da vida, um partido único, militarizado, organizações militarizadas da juventude, dos sindicatos, submissão das igrejas ao Estado quando não o seu enfraquecimento. Por muitas homilias que Louçã pronuncie, nada disto, pelo menos nos curto e médio prazos, é ou parece ser exequível.
De todo o modo, o discurso do futuro presidente do Brasil é assustador, repelente e não augura nada de bom. A personagem é antipática, o seu passado é risível e são permitidas todas as dúvidas (até as menos razoáveis) sobre a sua capacidade para governar. De certo modo, isso acaba por minorar algum receio (minorar, repito, não apagar) que eu tenha. Bolsonaro terá de se apoiar em alguém como já é patente no que toca à Economia (onde, temivelmente, parece prosperar um ultra-liberal) e na Casa Civil.
O Brasil, não sendo uma “tenda de milagres”, não é também um país conformista, habitado por dóceis fantasmas. O famoso “jeitinho”, o desembaraço, a atitude lúdica e desafiante de boa parte da sua gente, se levaram à catástrofe da corrupção instituída e respeitada, também permite pensar num combate vitorioso a esse estado das coisas e numa eventual eventual salvação. Assim seja