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It’s a long way to Tipperary
(tu est seul le matin va venir Appollinaire, “Zone” in “Alcools”)
Até Tipperary foi muito o caminho como se sabe. Quatro anos pejados de mortos, de mortos inúteis sacrificados por generais incompetentes e por tácticas militares há muito controversas.
Verdun ou o Chemin des Dames, para não falar de Passchendaele (julho –Novembro de 1917) onde só morreram cerca de 300.000 soldados, são exemplos da cegueira homicida de irresponsáveis militares que, mesmo contra toda a evidência, continuavam a tentar romper uma frente perigosíssima mandando para um infame matadouro dezenas de milhares de homens. Estes sabiam que só um milagre os salvaria das metralhadoras inimigas e mesmo assim avançavam. E avançavam porque na retaguarda havia quem os obrigasse a tal e quem à mínima falha os levasse a tribunal de guerra e ao fuzilamento.
Ao lado destas tremendas batalhas, La Lys, o nossos desastre (400 ou 1400 mortos os números variam. Certo, ou quase, é o número de prisioneiros: 6000), passa despercebido mesmo se os seus efeitos no debilitado Corpo Expedicionário Português (CEP) fossem medonhos.
Em Portugal, ainda é quase proibido (ou impossível) falar da Guerra e da nossa participação nela. Os “guerristas” (e nunca esquecer João Chagas que logo no início se fez ardoroso defensor da participação portuguesa na hecatombe- vale a pena ler “É a guerra” de Aquilino Ribeiro que foi testemunha do confronto desde o primeiro dia visto estar em Paris) entrincheirados no Partido Democrático mas com cumplicidades nos dois restantes grupos republicanos, viram na participação portuguesa uma porta aberta ao reconhecimento do regime por uma Europa bem arredia.
Pouco lhes importou verificar que se algo havia que defender não era na Flandres mas no sul de Angola e no Norte de Moçambique onde se temiam os efeitos de uma combinata anglo-alemã que, ela própria, está sepultada em tantas e tão contraditórias versões que custa destrinçar quais eram exactamente os termos desse acordo feito à custa de um Portugal colonial que ainda não ocupara com efectividade e segurança todos estes territórios.
Mas, e mais grave, era a situação militar interna. Vejamos: o corpo de oficiais do Quadro Permanente era maioritariamente desafecto à República. Para contrariar essa situação, a República contava com os sargentos e com a influência da Maçonaria e congéneres nas praças. A isto juntava-se a sempre prestimosa colaboração de grupos civis que, quando convocados, tentavam invadir os quartéis ou impedir a tropa de “sair” graças à famosa “artilharia civil” (assim se chamavam os bombistas).
A situação nos quartéis era, para usar um termo brando, uma calamidade onde a indisciplina se aliava às péssimas condições de instrução, aquartelamento, alimentação e fardamento.
Não existia Marinha digna desse nome, pese embora a fanfarronada de uma votação no Congresso (1911) em que se votou a compra de uma formidável frota que incluía couraçados e cruzadores em profusão. Foi a anedota da década. Portugal não tinha sequer meios para sustentar um couraçado quanto mais para o comprar.
E quem diz navios puramente de guerra diz igualmente uma marinha mercante eficaz. Pura e simplesmente não havia um único navio de transporte de tropas. Os cinquenta e tal mil homens mandados para França foram embarcados em navios ingleses. Por isso mesmo também (falta de transportes disponíveis) nunca houve rotação de praças e sargentos mesmo se tal estava garantido pelo Governo. Apenas os oficiais, e quase sempre, à sua custa, puderam vir a Portugal nos seus períodos de licença.
Para as colónias, sobretudo para Moçambique, seguiram algumas dezenas de milhares de homens, igualmente impreparados. Uma vez chegados, deparavam-se com a quase impossibilidade de se deslocarem por falta de mapas, de guias, de caminhos para já não falar do transporte da “impedimenta” essencial para quem vai ocupar longas extensões de fronteira a muitos e muitos quilómetros do local de desembarque. Mesmo aí, e nos locais de concentração de tropas, faltava tudo a começar por hospitais de campanha.
A campanha moçambicana foi toda ela um desastre inenarrável a que acresceu o facto de o país estar a defrontar o melhor general de toda a guerra: Paul Emil von Lettow-Vorbeck
(que nunca teve às suas ordens mais de 3000 brancos e 10/12.000 ascáris) cujas memórias foram editadas em numerosas línguas incluindo o português. Von Lettow derrotou quase duas dezenas de generais e, pelo menos, um marechal sem nunca ter sido vencido. Entrou em Moçambique, por onde se passeou quase até Quelimane, mais para se abastecer de víveres do que para bater o inerme Exército Português mesmo quando este era coadjuvado por ingleses e sul africanos. A campanha de Moçambique foi um fiasco e um desastre medonhos que se saldaram em quase 10.000 baixas (num total de cerca de 20.000 expedicionários “metropolitanos” e dez vezes mais “indígenas” entre soldados, carregadores e civis muitas vezes vítimas do exército português. As famosas vitórias (Kionga onde só havia um cão para defender a praça e Nevala tomada desprovida de tropas e rapidamente reocupada pelos alemães) são ensombradas pela terrível derrota de Ngomano, um desastre de inépcia que forneceu aos alemães toneladas de mantimentos, munições, roupa e armamento. Pior, muito pior do que o “desastre” de Naulila no Sul de Angola onde as coisas, apesar de tudo, correndo mal, correram melhor para as forças portuguesas.
Sobre tudo isto, sobre esta apagada e vil tristeza da 1ª guerra em África continua tudo como no tempo da outra senhora: ou seja num opaco silêncio que evita a verdade incómoda e cruel de um país incapaz de defender os seus territórios e que desviou para a Flandres mais de cinquenta mil soldados ligeiramente menos impreparados que os das colónias e que se mostraram inúteis na frente de batalha onde estiveram sempre desacompanhados.
É bom lembrar que os Aliados não queriam, não pediram, sequer sugeriram uma intervenção portuguesa. Bem pelo contrário. A Inglaterra apenas sugeriu o confisco dos barcos alemães mas a ânsia de reconhecimento da “República” fez criar um Corpo Expedicionário que foi transportado para a Flandres em navios ingleses, que lá chegado foi de novo treinado, fardado, alimentado, armado e enquadrado por exércitos ingleses.
Vale a pena ler os diferentes testemunhos de militares portugueses, escritos directamente das trincheiras ou em posteriores memórias. Em relação a estes “cidadãos” treinados em Tancos (o famoso “milagre de Tancos”, uma mentirola para uso caseiro) o Estado Português tem uma dívida tremenda pela incapacidade em amparar, aliviar e tratar decentemente os homens que fez sair de Portugal. Por junto, seé que isso foi benefício, a República aceitou (foi obrigada a engolir) capelães militares para auxílio espiritual das tropas profundamente religiosas.
Não vale a pena falar das consequências políticas e, sobretudo, sociais, da guerra em Portugal. Mesmo tendo em linha de conta, a curta duração do estado de guerra em Portugal (1917-1918), o país assistiu a uma forte crise (o Sidonismo), ao aumento brutal do custo de vida, à crise dos abastecimentos vitais, e à da habitação. Acrescente-se o esfacelamento dos partidos republicanos, o crescimento da oposição e o definitivo divórcio dos sindicatos. Quanto a governos entre 1918 e 1926 houve pelo menos 30 uma média que superou a da primeira parte (1911-1917).
Há ainda uma outra herança da guerra que não tem sido trabalhada. Boa parte da oficialidade regressada aderiu à oposição ao regime e fortaleceu e participou no golpe do 28 de Maio (entre todos, só para exemplo Gomes da Costa).
As comemorações do centenário do fim da guerra (entre as quais a “maior parada militar post 25 de Abril”) não deixaram espaço para, ao menos, se fazer um balanço deste desastre. Se não erro, o Sr. Presidente da República terá mesmo falado em “100 anos de paz”! se efectivamente o disse, Sª Ex.ª sofre de desmemória. Mesmo depois do fim da guerra, continuaram as “campanhas de pacificação” coloniais, em Angola, Moçambique e Guiné. Deixando de lado as inúmeras intentonas antes e depois do 28 de Maio, temos que, durante a 2ª guerra mundial, em que Portugal se declarou neutral, houve, a partir de 1943, a necessidade de mobilizar mais de 20.000 homens para “defender” os Açores. Aliás, e no mesmo período Timor, colónia portuguesa, foi ocupado pelo exército japonês registando-se ásperos combates entre os poucos portugueses ali residentes (ajudados por deportados políticos) e os invasores. Não há um número exacto de vítimas portuguesas (e aí incluem-se milhares de nativos). Chegou a constituir-se um corpo expedicionário a Timor que, se lá chegou, só entrou na colónia após o fim das hostilidades. Em finais de 50 a União Indiana ocupou o Estado Português da Índia tendo havido baixas portuguesas e muitos prisioneiros. Desde 61 até 74 travou-se uma (ou três) guerra colonial com avultado número de baixas para não falar nas do campo adversário e mais ainda as registadas na população residente (branca e negra). Portanto, quanto a paz estamos falados...
(escrito por mcr cujo avô Manuel da Graça Patrício Curado, oficial do “Exército Colonial”, participou na 1ª Guerra e em muitas as campanhas anteriores e posteriores em Angola, cujo pai Marcelo Heinzelmann Corrêa Ribeiro foi expedicionário nos Açores (S Miguel) na qualidade de alferes médico no Batalhão de Metralhadoras nº 2, cujo tio José da Cruz Curado foi expedicionário para Timor na mesma época. Esta é uma singela homenagem ao esforço, ao sacrifício e ao patriotismo destes homens cuja simpatia pelo Estado Novo era, se existiu, extremamente reduzida ou praticamente nula).
* o título relembra a mais famosa canção adoptada pelas tropas britânicas. A citação de Guillaume Appollinaire (morto na consequência de grave ferimento sofrido nas trincheiras) é do poema “Zone” (de 1912) e publicado em “Alcools”, um dos grandes livros da 1ª metade do século XX (e de sempre, aliás).