diário político 214
Uma morte ao retardador
D’Oliveira, fecit 26 Fev 2019
Morreu o Arnaldo de Matos.
Quem?
O grande educador da classe operaria.
Ah, esse...
Arnaldo de Matos, 80 anos, militante e, na sombra, dirigente do MRPP morreu há dias. No entanto, a sua morte, pelo menos política, fora há já muito tempo. E em etapas sucessivas. A primeira data dos tempos post-PREC , finais dos anos 70. O MRPP, depois do 25 de Novembro e, sobretudo, depois dos governos militares, foi-se finando tranquilamente pesem embora os murais e toda a iconografia vermelha e amarela com que pintaram Lisboa e arredores. Sem lugar na Assembleia da República (ao invés da UDP que conseguiu manter um deputado tão inútil quanto representativo de uma certa extrema esquerda), batido em sucessivas eleições que cada vez mais o confinavam a Lisboa (mas não à sua cintura industrial), perdida gradualmente a influência nas escolas superiores seus veros bastiões. O MRPP (a quem alguma irónica má língua apelidava de “eme erre pum pum”) diluía-se na paisagem política, entretido em cisões internas (a famosa “linha vermelha contra a linha negra”) e sem ligações internacionais significativas (A China não lhe ligava especial importância, preferindo outros e mais modestos, discípulos lusitanos, igualmente irrelevantes no jardim da Celeste, e, obviamente a Albânia também não).
O fim da China da grande revolução cultural e proletária, o mesmo é dizer, o desaparecimento de Mao Zedong e a lenta, dificultosa mas tenaz caminhada para um capitalismo de Estado controlado pelo partido único, o fim da União Soviética (que, mesmo se criticada pelos ideólogos do MRPP, estabelecia um padrão e uma linha de conduta para a Esquerda de todos os matizes desde os “revisionistas modernos” e/ou “social-fascistas” até aos “verdadeiros marxistas-leninistas” (maoístas), passando pelas diferentes tendências trotskistas, e alentava a ideia de uma outra margem ideológica) tudo se conjugou para criar no público a ideia da irrelevância do também fantasmático Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses nome oficial do mrpp a partir de 76ou 77.
Entretanto, Arnaldo, crismado “o grande educador da classe operária” pelos seus entusiásticos camaradas deixou os cargos dirigentes (pelo menos oficialmente) passando o cargo ao advogado Garcia Pereira que aguentou anos e anos a fio uma organização onde, segundo ele, se conspirava permanentemente contra si. O desaparecido Arnaldo, pelos vistos, advogava para ganhar a vidinha, coisa que de nenhum modo pode ser criticável. Não é impunemente que sedeixa o palco a outro por longos anos. Esta foi a 2ª ou 3ª morte do personagem de que ninguém ou muito poucos sabiam. Nos últimos dois, três anos Arnaldo reemerge, ele-próprio e ele-outro sob o pomposo pseudónimo de Espártaco, e vai distribuindo, para um público tão indiferente quanto restrito, elogios –raros-, excomunhões –muitas, e ataques cerrados, quase sempre. E Pereira abandona o barco, como já antes outros conhecidos dirigentes (a começar por Durão Barroso, enquanto menino, ou Saldanha Sanches – o da linha negra – ou Fernando Rosas, um dos pais do Bloco).
Todavia, Arnaldo de Matos, a quem nunca se negou grande inteligência, excelentes dotes oratórios e cultura acima da média, conseguiu –talvez a par de Francisco Rodrigues Martins, o pai da FAP e do comité marxista leninista português e ex-membro do CC do PCP, ser a mais conhecida figura desta extrema esquerda que teve os seus dias de glória entre 1970 e 1976. Antes do 25 de Abril tornou-se conhecido pela campanha pro Vietnam e, menos pela luta anti-colonial. Também controlou algumas associações de estudantes lisboetas e, coroa de glória, a última dúzia de edições de “O tempo e o Modo” que, aliás liquidou pouco depois do 25 de Abril. Ler esse conturbado ano de “o TM” é, hoje, um penoso exercício. Os textos então publicados são de uma grande ferocidade e igual pobreza ideológica. Não foi caso único esta erupção editorial. Os mais curiosos poderão com igual espanto ler alguns dos derradeiros números dos “Cahiers Marxistes Leninistes” (Union des Jeunesses Comunistes Marxistes Leninistes) que eram bem mais rebarbativos. Todavia, neste caso, a maioria daquela malta acabou na “gauche proletarienne” e nos “mao-spontex”. De todo o modo, não se livram da vergonha de terem assumidamente perdido o comboio do Maio de 68 que, pelo menos era festivo e tentava com ingenuidade “changer la vie”
Foi por estes anos, mais precisamente em 68, provavelmente durante a “Tomada da Bastilha” de Coimbra que me cruzei episodicamente com Arnaldo de Matos. Este e mais umas dezenas de adeptos da ainda “Esquerda Democrática Estudantil” mãe putativa do mrpp. A Coimbra, nesse ano, com a AAC já reaberta depois de três anos de miseráveis comissões administrativas, afluíram para a festa uns centos de estudantes maioritariamente de Lisboa. No “plenário” que se realizou, ouvi pela primeira vez Arnaldo de Matos, senhor de um verbo vibrante mas com um discurso totalmente fora da realidade estudantil coimbrã. Curiosamente, nas vésperas da maior e mais bem sucedida greve estudantil portuguesa, alguns dos visitantes entendiam dever trazer a boa palavra aos bárbaros coimbrões que pacientemente e durante três anos de luta não só tinham conseguido manter uma forte unidade mas, nesse ano de 68, tinham infligido à Direita uma rotunda derrota nas eleições associativas. Não deixa de ser irónico que todos estes revolucionários não tenham conseguido sequer secundar a greve de Coimbra.
Depois dos discursos, encontramo-nos mais ou menos casualmente e ele, AM exigiu-me com sobranceria que lhe entregasse uns livros e documentos que me tinham sido oferecidos por um italiano com quem desde algum tempo eu mantinha relações políticas. Já só me recordo do título de dois livros dessa, aliás pequena, remessa: “L’anno degli studenti” de Rossana Rossanda e “Lettera a una professoressa” um texto colectivo alegadamente atribuído aos alunos de uma escola de Barbiana. Qualquer destes livros estava a milhas do discurso dos futuros eme-erres.
A coisa ficou por aqui e nunca mais nos cruzámos. Ou melhor, em inícios de 70 (Fevereiro ou Março) alguém me passou o primeiro número do recentíssimo “Luta popular”. Trazia-o comigo quando desconfiei de umas manobras de um conhecidíssimo agente da PIDE que ao passar pela “Brazileira” me fitou com ar de espanto. À cautela subi as escadas até ao andar dos bilhares e enfiei o jornalzinho muito bem dobrado num buraco da parede escondido pela porta, que estava sempre aberta (era aliás um local que eu e alguns outros conspirativos usáramos durante algum tempo para deixar papéis). Em boa hora o fiz porque pouco depois de ter regressado à minha mesa para tomar mais uma bica, fui ignominiosamente caçado por uma flotilha de pides e posteriormente enviado para Lisboa, primeiro por uns dias para a António Maria Cardozo e depois para Caxias onde estanciei uns meses numa cela com vistas para o mar. Quando regressei a casa, fui pelo jornalinho e lá estava ele bem escondido no buraco de sempre. Infelizmente, o mesmo não sucedeu com umas dezenas de livros que me foram levados e jamais restituídos.
Arnaldo de Matos, já o disse, era inteligente. Porém, era um estalinista convicto e ouvi-lo ou lê-lo era ainda mais chato do qu ler o artigo de fundo da Pekin Information. O seu estreito mundo ideológico era primitivo e parecia tirado a papel químico do “pequeno livro vermelho”. Nada tinha a ver com Portugal, com a Europa e, pelos vistos, nunca melhorou da miopia política de que enfermava. Nem é necessário relembrar as palavras de ordem do mrpp dos “bons velhos tempos”. Basta recordar a justificação infame e criminosa dos atentados jihadistas de Paris. Dignos de Pol Pot!
Dos mortos não deve dizer-se mal mas numa altura em que as boas consciências (que Matos sem rebuço desprezava) se multiplicam em elogios fúnebres, convém recordar estes pequenos factos, a cegueira e rudeza ideológicas. E imaginar por um único instante como seria o país se o mrpp alguma vez tivesse chegado ao poder. Diga-se de boa verdade que o mesmo se passou com o babado elogio fúnebre dos fundadores da ”rote Armée Fraktion” bem como de certos membros das “Brigate Rosse” ou de outros, e tão ou mais sinistros, grupos radicais. Uma vez mortos, são transfigurados em anjos anunciadores dos amanhãs que cantam.