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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Diário Político 216

d'oliveira, 30.04.19

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A inestimável ajuda do Poder ou

Arre que é preciso ser parvo

por d'Oliveira  que muito se divertiu (e bem se lixou) naqueles tempos tumultuosos

 

Que os leitores poupem durante alguns minutos a pedra que poderiam querer atirar-me.

Vou entrar no terreno minado de uma quase “contra-história” da crise de 69 em Coimbra e explicar porque acho que mais, ou tanto quanto, do que a acção dos estudantes, foi decisivo para o êxito da greve o delirante conjunto de decisões do governo, da Reitoria da Universidade e das autoridades policiais.

Comecemos pelo mais simples e, de certo modo o inicio de tudo: a atitude do Presidente da República. Confrontado com um pedido respeitoso (nunca é demais insistir) do Presidente da Associação Académica para intervir na cerimónia de inauguração do novo edifício das Matemáticas teve duas respostas contraditórias. Em primeiro lugar, era costume ouvir-se o Presidente da AAC neste género de cerimónias. Depois, havia indícios (fortes, fortíssimos) de que o milhar de estudantes presentes dentro e fora da sala não aceitariam que o seu representante (eleito meses anos por fortíssima – esmagadora! – maioria, após três anos de comissões administrativas integradas por estudantes ligados à Direita pura e dura ((mesmo residual naqueles tempos de mudança)) que nunca conseguiram ter apoio na massa associativa nem, aliás, fizeram por isso qualquer esforço) não tivesse uma palavra a dizer, sobretudo na inauguração de um edifício que já chegava com um atraso de dez anos.

Quem aconselhou o Almirante Américo Thomaz que, aliás, num primeiro momento, pareceu aceder ao pedido de intervenção, respondendo que “primeiro falaria um qualquer Ministro presente”? O Reitor? O Ministro da Educação, um certo Hermano Saraiva que, muitos anos depois se distinguiria com um programa popular sobre a História e as histórias de Portugal? A polícia política (e ao tempo em Coimbra era chefiada pelo inspector Sachetti que mais tarde ascenderia à direcção nacional da PIDE /DGS, e que era considerado “muito hábil” na detecção e prevenção de “zaragatas académicas”)? Alguns círculos da extrema Direita coimbrã inspirados, entre outros, pelo Professor de Letras Miranda Barbosa, considerado uma espécie de guru dos restos do “movimento Jovem Portugal” ainda presentes em Coimbra?

Na verdade, essa inauguração acabou num tumulto e numa gritaria inconcebíveis que saudavam a retirada intempestiva das autoridades logo que terminou a arenga do Ministro já citado.

Um segundo acto decorreu no mesmo local. A sala voltou a encher-se e Alberto Martins leu o discurso que trazia preparado. Cerca do meio dia, ou pouco depois, os manifestantes destroçaram a caminho do almoço e o dia pareceu acabar sem sobressaltos maiores.

O 2º acto desta jornada ocorre já à noite. A PIDE detém o presidente da AAC. A notícia espalha-se num ápice e provoca pequenas manifestações que a polícia dissolve como de costume: à bruta.

No dia seguinte, a Universidade está em polvorosa. A comoçãoo é geral e as assembleias sucedem-se até uma Assembleia Magna que exige a libertação de Alberto Martins e proclama um primeiro “luto académico” (batina fechada, insígnias académicas recolhidas e, o mais forte, greve às aulas). A adesão é enorme sem sem absoluta. Todavia isso já é uma vitória importante do movimento em crescendo desde a eleiçãoo da nova direcção da AAC depois de três tristes anos de comissões administrativas entregues à Direita estudantil mortiça e incapaz de mobilizara esmagadora maioria dos estudantes.

(De resto o resultado destes três anos de completa inabilidade política foram evidentes. As eleições para uma nova direcção foram ganhas com uma fortíssima percentagem pela Esquerda, melhor dizendo pela aliança de vários grupos que iam desde uma fracção do CADC até aos pequeníssimos grupúsculos que despontavam. Na sua grande maioria, os eleitores eram pouco politizados ou politicamente moderados. O que os unia era ainda uma certa ideologia de liberdades académicas e estudantis, uma ideia romântica da Academia (quisesse isto dizer o que quer que fosse). Tudo fundido no horizonte juvenil, na tradicional rebeldia de jovens gerações que já não respiravam o ar viciado do fim de regime que se vivia e, muito menos, a propaganda ultra-nacionalista do apelo à defesa da pátria ameaçada nos sertões africanos.

Junte-se-lhe um facto indiscutível: a universidade de Coimbra vira quase duplicado o número de estudantes (em 1960 eram 5.000, em 1969 passavam os 8.000. Mais, e mais significativo: a percentagem de raparigas crescera enormemente em todas as faculdades, Direito incluída)

Entre 18 de Abril e 28 de Maio, assiste-se em Coimbra a um estranho pas de deux: o Poder (seguramente dividido quanto à estratégia a adoptar para sufocar ou desarmar a “crise” alterna as ameaças com alguma passividade. Se é verdade que há processos disciplinares em curso, não menos verdade é que eles pouco passam do anúncio. A libertação de Alberto Martins ao fim de escassos dias de detenção parece mais um sinal de cedência que habilmente é aproveitado pelos que querem tirar consequências mais alargadas da greve que prossegue com interrupções.

No meio disto tudo, há um actor essencial: o Ministro da Educação, José Hermano Saraiva, que, por vontade própria ou mal aconselhado pelas “autoridades académicas” (Reitor, Senado e Directores de Faculdade), entende, no meio da estranha passividade policial, ameaçar os estudantes. Num memorável e ouvidíssimo discurso televisivo, comina os estudantes (ele fala numa “minoria de arruaceiros”) a voltar às aulas. Lá voltar voltaram mas o tom ministerial e tentativa ingénua ou estúpida de dividir a “Academia” tiveram o resultado oposto: as chamas reavivaram-se e a fogueira tornou-se mais intensa. A crise estaria em banho maria mas este ia progressivamente tornando-se mais quente. Não só as ameaças de processos e castigos se repetiam e precisavam como também, paralelamente, a resistência estudantil se afirmava e fortalecia. O exemplo mais evidente (e que devia ter alertado os responsáveis ministeriais que desconheciam ou não levavam a sério os humores da “Academia”) foi a decisão de anular a “Queima das Fitas”, festa maior e mais consensual dos estudantes. A decisão partiu das diferentes comissões eleitas pelos quartanistas das faculdades (isto é de comissões totalmente independentes da Associação Académica e profundamente ligadas ao núcleo duro da “tradição” coimbrã). Isto mobilizou ainda mais os estudantes que queimariam fitas, ou os que iriam buscar o “grelo” ou as fitas largas. Estamos a falar de alunos dos terceiros, quartos e quintos anos das faculdades, e, indirectamente dos “caloiros” que tradicionalmente terminavam o seu ano horribilis na altura dos festejos. Muita gente, portanto. E as famílias orgulhosas que por nada perdiam a oportunidade de ver os “seus meninos e meninas” quase doutores/as. E, finalmente a cidade    que tinha nesta semana grande fartas oportunidades de negócio e de lucro. A aceitação generalizada deste “sacrifício” deveria ter feito tocar as campainhas de alerta. O poder, esse, permanecia surdo depois de já ter provado estar cego. A gigantesca Assembleia Magna de 28 de Maio que decide por mais de 90% dos votos a greve aos exames leva as autoridades policiais a activar um plano de emergência para proteger os estudantes que queiram furar a greve. Entretanto, é mobilizada para Coimbra a brigada da Polícia Judiciária que desmantelara a LUAR. Medida, finalmente, inteligente dado que deixava a PIDE na sombra. Assim, tentava-se “despolitizar” a crise e a greve que o Poder travestia em “crime de assuada”.

“A latere”, seguiram para a cidade forças da polícia de choque e a “Guarda Republicana” começou a mostrar-se fazendo sair tropa montada para as ruas. As fotografias deste estendal de forças repressivas foram excelentemente aproveitadas pela SIPE (Secção de Informação, Propaganda e Estatística) da AAC que as distribuía (vendendo-as) por todo o lado. A essa campanha juntou-se outra igualmente imaginativa: eram editadas dezenas de desenhos satíricos ridicularizando a polícia, o ministro, as forças repressivas e os fura greves. A determinação estudantil era assim acompanhada pela tradicional gargalhada académica. A isto o Poder só conseguia responder (canhestramente ) com notas oficiosas recebidas com tradicional desconfiança por quase toda a gente. Convenhamos que é pouco, muito pouco.

A última (mas também fortíssima) arma estudantil residiu no uso inteligente da “praxe” e na mobilização do “Conselho de Veteranos”, intérprete último e decisivo daquela. Em dois ou três “Decretus”, o CV formalizou o “luto académico”, aboliu as praxes violentas e de rua excepto para os “fura-greves” e deu a bênção tradicionalista a uma luta de contornos praticamente inéditos.

É verdade que a polícia “ocupou” a cidade, que os jipes da polícia de choque se mostraram por todo o lado e que algumas cargas da Guarda a cavalo ocorreram. Mas já era tarde de mais. As famílias tinham retirado muitos estudantes da cidade (o que aumentou as percentagens de grevistas), a vergonha impediu alguns estudantes de pedir ajuda para ir aos exames, as ameaças tiveram efeito idêntico e as prisões de membros dos piquetes de greve aumentaram a indignação e a determinação grevista. Em oito dez dias de falta generalizada aos exames, já nada havia a fazer por parte das autoridades. A repressão já não produzia efeitos dissuasores e o longo período de agitação verificado entre Meados de Abril e fins de Maio tinha desmobilizado qualquer vontade de estudar e preparar exames. A greve, para muitos, uma multidão, de estudantes era, afinal, o meio de justificar perante as famílias um chumbo quase certo.

O passo final da escalada repressiva ocorrido entre Junho e Outubro, consistiu na prisão de mais estudantes, remetidos para os cárceres da PJ por períodos relativamente breves (exceptuando as prisões de Outubro que atingiram meia dúzia de activistas que andaram fugidos todo aquele tempo) e na mobilização para Mafra de meia centena de dirigentes da AAC, dos Organismos Autónomos e de outras estruturas estudantis.

Nada disto, afectou substancialmente a situação de crise e, na verdade, a única solução que o Poder tardiamente tomou foi a de fazer voltar tudo à estaca zero. Assim, até ao fim desse ano, meados do seguinte, regressaram os enviados para Mafra, foram libertados os últimos presos, foram arquivados os processos disciplinares e aberta uma época extraordinária de exames. Paralelamente caiu o Ministro da Educação, o Reitor e os Directores de Faculdade foram substituídos por elementos mais ou menos simpatizantes da causa estudantil ou, pelo menos, aceitáveis pela “Academia”, as ameaças contra a AAC (encerramento, comissão administrativa) foram retiradas.

O regime mostrou-se incapaz de evitar as suas cada vez mais evidentes contradições internas e, por isso, de reagir atempadamente contra algo que poderia ter evitado ou sufocado no ovo. De certo modo, prenunciava a incapacidade de que daria provas quatro ano depois. Exausto, dividido, incapaz de traçar uma estratégia coerente conseguiu contribuir para a politização de algumas centenas de estudantes e para a desafeição de muitos mais. Estes, em poucos meses, foram obrigados a repensar uma táctica de enfrentamento e souberam aproveitar cada indecisão do adversário para criar um movimento cada vez mais unitário de resposta sem comprometer a Associação Académica descentralizando para as Faculdades e para organizações ad-hoc (Juntas de Faculdade) ou outras privativas dos Cursos (delegados de curso, comissões de curso etc...) o agendamento de assembleias, a tomada de decisões parcelares relativas ao boicote a aulas e/ ou jornadas de discussão a substitui-las com ou sem (quase sempre) a presença de professores. Finalmente, e já durante o período de greve aos exames, optou-se por diversificar totalmente os piquetes de greve não os submetendo a nenhum controlo centralizado o que impediu as polícias de, com algumas prisões, desmontarem uma estrutura que, de facto, não existia. Paralelamente este esquema conseguiu outro objectivo: os piquetes nunca foram instrumentalizados pelos proto-grupos políticos que se iam formando ou estavam já formados.

A este propósito, é bom lembrar que estes escassos meses de luta acesa pelas liberdades académicas politizaram de uma forma inimaginável muitas centenas de jovens mas isso é ainda história quase recente.

 

(a vinheta: Maria Fernanda da Bernarda e Osvaldo Sarmento e Castro dois dirigentes de 69 desaparecidos. Esta fotografia que me parece já ter por aqui aparecido, serve para retratar muitos outros que a lei da morte vai ceifando. Dois amigos muito queridos e duas pessoas de bem. Foram corajosos em 69 e assim ficaram pelo resto das suas vidas. )

(este texto andou perdido no computador por razões misteriosas ou, simplesmente devido aà notória incapacidade do escrevente que o teve pronto a 17 de Abril. Sai agora, semi-recuperado depois de ter sofrido um apagão de origem desconhecida mas certamente malévola, renovando os agradcimentos às mais que incompetentes autoridades académicas que facilitaram a vida à malta de 69- É máxima antiga (Sun Tsu) afirmar que o bom estratega aproveita tudo e sobretudo os erros do adversário.)

          

Au bonheur des dames 481

d'oliveira, 16.04.19

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50 anos depois

mcr 16-Abril-2019

 

Cinquenta anos é muito, muito,  tempo. Noutras épocas implicava, quase de certeza, um longo cortejo de mortos piedosamente recordados ou nem isso.

Agora, que a esperança de vida aumentou, com o seu cortejo de ameaças (o ahlzeimer e tudo o resto, o trágico resto) cinquenta anos foi ontem, há sobreviventes em quantidade apreciável o que não diminui ausências dolorosas e injustas (o António Mendes de Abreu, o Fred Fernandes Martins, o João Bilhau, a Fernanda da Bernarda, o “Vává” Sarmento e Castro, o Alfredo Soveral Martins entre muitos mais, por exemplo o Zé Gomes Bandeira...).

Amanhã, no edifício das Matemáticas, acorrerão alguns e num mágico par de horas serão de novo jovens, ardentes, com um feroz e animoso sentido de justiça e uma intensa vontade de ser livres.

Já, aqui, o disse, e repito: a crise académica de 1969 foi a única grande movimentação estudantil que teve no imediato (ou quase) ganho de causa: o ministro da Educação caiu, caiu o Reitor da Universidade, foram arquivados mais de cem processos abertos contra estudantes detidos entre Junho e Novembro de 1969, foram arquivados todos os processos disciplinares contra estudantes grevistas, regressaram de Mafra todos quantos pela sua participação tinham sido sumariamente incorporados na tropa, a AAC não foi encerrada e houve épocas speciais de exames para quem tinha cumprido a greve.

O regime político não caiu, antes arrastou-se penosamente durante mais quase cinco anos. Também não era esse o objectivo dos estudantes de Coimbra que enfrentaram, praticamente sozinhos, durante meses, a repressão académica, política, militar e policial. Também é verdade que a “agitação” estudantil não desapareceu, bem pelo contrário: As prisões de dezenas de estudantes, em Janeiro de 1971 são prova vidente da existência de “réplicas” ao grande terramoto de 1969.

 (sou disso, sem alegria mas sem arrependimento, testemunha: fui preso em Fins de Setembro de 69, penei um par de meses nos cárceres privativos da Polícia Judiciária – creio que bati o recorde de tempo de prisão  aplicada aos que foram detidos, partilhando com o João Bilhau e o Orlando Leonardo a duvidosa glória de sermos os últimos presos. De facto andámos fugidos durante dois ou três meses. Em 71, voltei a ser caçado desta feita pela PIDE que me hospedou em Caxias por uns meses numa cela com vista para o rio e para um trecho de auto-estrada ou algo semelhante onde me divertia a contar os carros fazendo um campeonato ente os que desciam e os que subiam. Na cadeia vale tudo!)

Todavia, amanhã, não estarei com os meus antigos amigos, colegas e companheiros e devo-lhes, por isso, uma explicação. Ei-la:

Depois de formado, rumei à terra onde vivo, estabelecendo-me como advogado. Nesses anos de brasa, pré 25 A ganhei uma clientela extensa de rapaziada que “mijava fora do penico” e que, por isso, estava sempre com o coração aos saltos que a polícia (política) não fazia greve sequer de zelo.

Quando o novo poder democrático se instalou, foi-me pedido que desempenhasse por tempo limitado o cargo de Presidente de uma Instituição Pública. Aquilo que deveria durar alguns meses, arrastou-se por sete (muito felizes) anos. Como sou canhoto de pata, de coração e torto de teimosia. Rapidamente tive alguns poucos conflitos com a gentinha ministerial. Durante o primeiro desses “encontrões” uma dúzia de altos funcionários meus subordinados, entendeu solidarizar-se e aproveitaram o dia do meu aniversário para me convidarem. Desde essa altura que, todos os anos (e já lá vão quarenta e cinco) há um almoço pago por eles e u queijo da Serra como prenda.

Há já uns anos, resolvi corresponder a tal gentileza, e comecei a convidar o grupo para uma sessão de lampreia. Com o decurso dos anos o grupo de bons, excelentes amigos, tem começado a encolher significativamente. Há umas semanas lá se foi mais um justamente nas vésperas da lampreia que foi adiada. Adiada para (são os meus convidados que escolhem a data) para justamente amanhã. Entre dois deveres de amizade não poderia deixar de dar prioridade aos mais velhos que tanto me ajudaram com a sua competência, saber e diligência.

Partilhei com os meus amigos de juventude valores únicos de liberdade e solidariedade de que me orgulho e não esqueço. Com estes mais recentes, (enfim com estes, encontrados nos anos setenta e cinco e seguintes, descobri o prazer de fazer bem as coisas, de trabalhar para a comunidade, de chegar ao fim do dia com a sensação de ter ganho um ordenado e o respeito dos utentes dos serviços que dirigia.

Acho que isto define, razoavelmente, uma longa carreira cívica e política. A todos eles estou grato. De todos recordo o empenhamento e a amizade.

Eis pois a razão de, mesmo ausente, me sentir presente amanhã quando a malta se começar a juntar nas Matemáticas, ao alto das “escadas monumentais”

Ao Rui Namorado e ao Luís Januário, amigos certos e antigos que me convocaram, um abraço. Está justificada a falta?

E a uma leitora e amiga desde o princípio dos anos sessenta que esteve presente e corajosa na crise de 62, um beijo: há um Xenofonte à tua espera Maria A...   

*a gravura: correndo o risco de parecer imodesto, entendi publicar esta fotografia datada de 28 de Maio de 1969, dia em que uma gigantesca Assembleia Magna votou por incalculável maioria a greve aos exames. Fui dos primeiros oradores dessa assembleiae, eventualmente, terei sido o primeiro a defender a ideia de greve. Repito: eventualmente. Na mesa, algo caótica, estão o Gil, eu, o Décio de Sousa e o Silva Pinto. Saravah, companheiros! 

Aproveito este momento para recordar mais dois grandes amigos, entretanto, mortos: o João Amaral e o Zé Barros Moura.  Como não podia deixar de ser, estavam lá, activos, corajosos e entusiastas.

Creio que esta fotografia esteve durante estes 50 anos inédita. Acho que o seu autor se chamava Fraga, estudante de Direito e mais tarde juiz que se envolveu em conflitos vários com o CSM. Onde quer que esteja, um abraço e a minha total solidariedade. 

 

 

estes dias que passam 392

d'oliveira, 16.04.19

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Esmeralda e Quasimodo choram a sua catedral coberta de cinzas.

E eu, leitor de Hugo (e de tantos outros), parisiense de Buarcos choro com eles.

Esta igreja já ardeu uma vez. Foi alvo de tratos de polé durante as revoluções. Foi reconstruída com acrescentos (a flecha) e assiste desde há oitocentos anos ao grande teatro do mundo.

Se todos quisermos, regressará outra vez mais tão bela e tão nossa como sempre.

Diário Político 215

d'oliveira, 13.04.19

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O gato escondido com o rabo de fora

d'Oliveira fecit (12/13 de Abril)

 

O dr Centeno, excelso Ministro das Finanças, resolveu dizer ao Financial Times o que não diz aos jornais portugueses. Presumo que ele é mais fluente em inglês do que na pátria língua, coisa que, aliás, já me tinha ocorrido pois, sempre que o ouvia. Notava-lhe alguma dificuldade de expressão.

Em poucas palavras, afirmou que entre a política económica e financeira do anterior Governo e a do actual não houve mudanças dramáticas. Deu-se com uma mão o que se retirou com outra (impostos indirectos, por exemplo).

A riqueza líquida do indigenato local apenas aumentou na medida (e nem sequer na exacta medida) em que aumentou a do resto da Europa.

Nem podia ser de outra maneira, mesmo se o país contou com um Banco Europeu complacente e generoso, com o incremento (importante) das exportações e com o maná turístico.

(e não se refere a baixa do investimento público e a pouca atractividade denotada pelo investimento estrangeiro e, muito menos, a política de cativações que redundou num espinhoso problema no capítulo da saúde, por exemplo).

As razões desta súbita “autocrítica” de Centeno prendem-se com algum “arrefecimento” generalizado da economia europeia e nacional, com a impossibilidade de resolver os problemas salariais de certos, bastantes, corpos da função pública (professores, militares, médicos e enfermeiros etc.) como parecia deduzir-se do programa de governo e, sobretudo, do que a “geringonça” poderia pressupor. Por isso, num último momento, viu-se o pobre diabo do Planeamento e Infra-estruturas avançar com salvas de pólvora seca sobre faraónicos projectos públicos que tinham a vantagem de ser sempre futuros, muito futuros. De todo o modo, as promessas estavam feitas e o Governo que depois viesse teria de se entender com os portugueses. Isto se não se apostasse na proverbial memória curta dos eleitores cuja utilidade (escassa) é servirem de carne para canhão em épocas eleiçoeiras. Quando as coisas acalmarem, na hipótese provável de um novo Governo capitaneado pelo PS, o sr. Pedro Marques estará longe, em Bruxelas.

Não se nega a Centeno as qualidades que tem e não serão poucas. E são elas, justamente, o que fundamenta a sua cautelosa navegação sempre à vista da costa. Pessoalmente, acho que teve uma cedência infeliz: permitiu que o IVA sobre a restauração fosse revertido. Conviria lembrar duas coisas (e ambas previsíveis no momento em que a medida foi levada a cabo): as empresas não baixaram os preços mesmo quando o IVA baixou (recorde-se que quando ele foi instaurado, praticamente todos os restauradores aumentaram consequentemente os preços); depois, é bom lembrar que num país onde o turismo externo crescia exponencialmente a medida foi apenas (ou sobretudo) boa para os visitantes estrangeiros. É duvidoso que a plebe nacional tenha sofrido especialmente com o agravamento e mais duvidoso ainda que do alegado e inexistente desagravamento, tivesse obtido algum benefício.

Sei que o sr. professor doutor Cavaco Silva se referiu a este ponto mas isso não me impede de o usar. De resto, não sei se o dinheiro que se perdeu absorveria parte do desastre na Saúde. De todo o modo, quem ganhou com esta medida foram de certeza os turistas e todos os que sempre puderam dar-se ao luxo de frequentar restaurantes. A minha diligente empregada doméstica (que aliás ganha bem mais do que o salário mínimo) seguramente que não foi a correr empanturrar-se nalgum mesmo pequeno restaurante.

A Oposição bem que bramia, do poço fundo para onde foi atirada, que a austeridade continuava. Mas, em Portugal, já o disse repetidas vezes, as oposições nunca são ouvidas seja qual for o Governo em funções. Por cá as oposições são sempre más, malignas, moscovitas ou serventuárias do mais infrene capitalismo, fascistas até. Ser da oposição não é uma sina mas tão só um traço de carácter. Eu ainda sou do tempo da “Outra Senhora”, dita a “oposicrática”, e recordo com desprazer não só as bastonadas que recebi nos magros e juvenis ombros mas sobretudo o desprezo a que eram votadas todas as opiniões que não respeitavam o Estado Novo.

O 25 de Abril não mudou uma vírgula neste capítulo, basta ver e ouvir o que os partidos dizem dos adversários, o uso imoderado de expressões como ética republicana, povo, democracia e reacção. A reacção é como a Hidra de Lerna, mas como já não aparece nenhum Hércules, continua a pavonear-se por aí como sustenta o PC que mantem, sem originalidade mas convictamente, que existe na pátria uma conspiração sem fim contra as políticas “patrióticas e de esquerda” e contra o povo que o PC entende representar sozinho (mesmo se esse povo, eventualmente ingrato, só lhe conceda 10% dos votos). A Direita (bicho de que todos fogem e ninguém assume) acaba nas franjas pouco edificantes de um par de grupúsculos que detestam imigrantes, sobretudo os mais escuros, homossexuais (de todos os tipos) e democratas. Além disso, juntamente com alguma alegada Esquerda, não gostam da Europa, do euro e são férreos defensores da “soberania nacional”, esdrúxula ideia que o PC (esquecido da célebre “soberania limitada” propagandeada por Brejnev e respeitada pelo dr Cunhal, que reduzia os países “socialistas” e os seus partidos únicos e dirigentes a uma extensão desinteressante da URSS).  

O dr. Centeno fez que sim com uma mão enquanto com a outra ia cortando eito e forte e feio. Agora, perto da hora da verdade, incapaz de pagar todas as promessas de bacalhau a pataco, veio friamente lembrar que o dinheiro não é elástico e que a mais elementar prudência obriga a dizer não. A entrevista no jornal estrangeiro serviu para avisar os mercados internacionais que isto por cá não anda sem rei nem roque. E que podem, apesar de tudo, confiar no actual Governo que poderia parecer vermelho por fora mas que é verde, verdinho, por dentro. Os protestos dos aliados na Geringonça serão sempre tomados por mera campanha eleitoral. Aliás, diga Costa o que disser, se necessário fosse, havia sempre a hipótese de “geringonciar” à direita. O “centrão”, ou o que lhe quiserem chamar, está ali para as curvas, sobretudo depois de quatro anos de amargo jejum e abstinência.

O dr Centeno foi saudado por Schauble o temível ministro das finanças alemão que o apelidou de Cristiano Ronaldo. O elogio não era fingido, como se vê. Nem fingidos foram os votos para a presidência do Euro-Grupo, mesmo sabendo-se que a grande maioria dos eleitores vinha do campo conservador. Estes cavalheiros (como o dr Cavaco Silva em seu tempo) nunca se enganam. E promover um ministro de um pequeno e periférico país (como também já ocorrera com a eleição de Durão Barroso...) evita problemas entre os restantes. Centeno era, é, um excelente menor denominador comum e mínimo divisor também comum. Com a obrigatoriedade de ter, como Janus, duas caras: a europeia e a nacional, nossa.

As boas almas do costume rejubilaram com a eleição de Centeno. Que bom, que agora sim, que já nos respeitam por esse mundo fora que voltaram os heróis do mar e outras banalidades do mesmo teor .

Houve mesmo quem adivinhasse um futuro brilhante para a pátria tristonha e benefícios a granel para Portugal. A iliteracia política, entre nós, não tem limites ou, se os tem, alguém se encarrega cuidadosamente de os obliterar.

 

Apêndice que não tem nada a ver com o antecedente: os líderes europeus deram à sr.ª May alguns meses para ele sair do beco sem saída em que se meteu. Ela e o parlamento inglês, diga-se... Há porém alguns pequenos escolhos. O primeiro diz respeito à data das eleições europeias. Nessa altura ou os britânicos vão a votos ou saem de todo. Se forem a votos, os deputados que elegerem poderão causar vasto sarilho no Parlamento Europeu. Por outro lado, os “brexiters” uivarão à simples menção de votar para um aboinávl parlamento que não querem. Finalmente, alguém credita que emOutubro (já com votos e tudo) alguma coisa diferente poderá suceder?

A pobre sr.ª May aguentou estoicamente e sozinha seis longas horas numa sala enquanto os 27 estatuíam sobre o seu pedido. Pior do que isto só o blitzkrieg!

Por cá há comentadores que enchem a boca com a “mais velha aliança europeia ou do mundo”. Temos pago essa aliança bem duramente e sempre al contado. E estamos a pagar, todos, este folhetim desde há meses. Estão em jogo a permanência e o empregos de 400.000 emigrantes portugueses lá e de 40.000 reformados ingleses cá e, por muitos planos de contingência que se desenhem ninguém garante quer para uns quer para outros uma solução razoável e digna.  

 

Nota: este texto está pronto desde ontem mas razões fúteis ealguma preguiça só o trazem à dvidosa luz destedia mais que cinzento hoje. Entretanto, um comentador do Público produz algo com algumas semelhanças neste sábado. Não me copiou, claro e muito menos eu o copiei. Coincidimos, apesar de claras divergências ideológicas, numa mesma conclusão. Centeno tem a língua bífida!

Au bonheur des dames 480

d'oliveira, 11.04.19

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As políticas familiares e as famílias políticas

mcr,  11-4-19

 

Alguém que, simpaticamente, me vai aturando e lendo, espantou-se com uma referencia ao dr. Mário Soares a propósito das ligações familiares no Governo.

Sem querer censurar tão excelente como exigente leitora, aclaro melhor a minha nota antiga.

O dr. Mário Soares teve, no seu 9º Governo constitucional, como Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, o dr Alfredo Barroso seu sobrinho (por parte de sua mulher, Maria(de Jesus) Barroso.

E não se ficou por aqui. Mais tarde já Presidente da República, nomeou o mesmíssimo dr. Barroso Chefe da Casa Civil da Presidência da República.

Não me dei ao trabalho de escrutinar mais os governos e as presidências soaristas. Para o meu ponto, bastavam estes dois flagrantes (pela importância dos cargos e pela proximidade) exemplos.

Conviria, porém, relembrar que os anos 70, 80 e 90 do século passado, não são exactamente os anos 10-20 deste.

Na época, era comum, cá e lá fora, nos parlamentos, nos governos e nas instituições europeias (sobretudo no parlamento) associar familiares quer como adjuntos, consultores ou chefes de gabinete. .

O mundo muda, as regras (felizmente) também mudam, precisam-se, tornam-se menos permissivas e o que era normal numa época passa a ser bizarro depois e acaba por se tornar inaceitável.

Não são precisos expedientes jurídicos, mesmo se, no caso francês, se tenha chegado, já com Macron, a uma lei que proíbe e pune (com multa e até prisão) as nomeações de familiares.

Lembraria, para os profanos, que as leis são, muitas vezes, a expressão das ideias tornadas comuns entre a opinião pública. Legisla-se, menos para prevenir, mas apenas para tornar firme uma prática já aceite pela maioria da sociedade.

Por outras palavras: o que nos tempos dos drs Soares e Cavaco não causava espanto nem especial condenação, passou, decorridos que foram vinte/trinta anos, em algo que perturba a opinião pública, desacredita as instituições e pode pôr em causa a actual noção de transparência.

Por exemplo: mesmo no caso dos Estados Unidos, a pouco recomendável figura de Donald Trump usou o expediente de nomear filha e genro mas “pro bono”, isto é, sem os remunerar. Subjacente a este truque está a ideia de que estes parentes próximos do Presidente não sobrecarregam os contribuintes.

É claro que na teoria isso é verdade, todavia o circulo de conhecimentos que qualquer deles ganha com a sua situação gerará, no futuro próximo, lucros políticos e, eventualmente económicos, dignos de nota.

Talvez já ninguém recorde o caso dos irmãos Kennedy, um Presidente e outro procurador geral (attorney general) na mesma Administração.

Na Europa tivemos o caso de dois gémeos polacos (Lech e Jroslav Kackzinsky, respectivamente Presidente da República e Primeiro Ministro) e em certos países da América Latina marido e mulher (caso da Nicarágua) desempenham cargos políticos próximos. Isto para não referir as situações em que um dos cônjuges sucede ao outro (A Argentina, por exemplo) ou há famílias que se perpetuam no poder (a Índia dos Nehru ou o Paquistão). O caso extremo é o da Coreia do Norte mas há antecedentes (na China Mao teve uma mulher, Jiang Ching com imenso poder político, na Roménia o casal Ceausescu partilhou o poder (e a morte) como também na Albânia com os esposos Hodja. (Enver e Nexmidje). Em Cuba, os irmãos Castro ocuparam os principais lugares de responsabilidade política tendo Raul sucedido a Fidel. (O que significa que a “esquerda” ou quem se pinta como tal não está de nenhum modo inocente nesta história. Com a agravante de enunciar constantemente exactamente o contrário do espírito dinástico e familiar que caracterizou uma boa parte das direcções políticas e dos comités centrais dos países “socialistas”.

A lista acima citada não é exaustiva, longe disso e apenas se menciona par provar que a confusão entre família e poder político não acontece apenas nas democracias liberais e capitalistas. Aliás há uma diferença: no Ocidente a crítica ainda é possível. Nos regimes ditos “socialistas” isso pagava-se e paga-se ( no que resta) duramente.

Uma segunda questão que se prende com a actual é que deriva da esfarrapada tentativa de desculpar o que actualmente se passa com casos anteriores (no caso bastante anteriores). Os erros de hoje não se apagam com os de ontem ou anteontem sobretudo se ontem (ou anteontem) não havia uma consciência tão sensível como a que agora condena este conúbio de interesses familiares e políticos.

Todavia, nesta história das relações familiares, cheia de som e de fúria, convém observar que uma coisa é a nomeação discricionária de alguém e outra a eleição de familiares para cargos públicos. Mesmo num sistema tão imperfeito quanto o português em que os deputados são eleitos aos molhos, há algum escrutínio popular. Pouco, quase irrelevante, mas existe.

Daí não deverem ser considerados, por medíocres e tolos, alguns argumentos brandidos por segundas linhas do PS quando referem pessoas eleitas de outros partidos que teriam relações familiares com membros do Governo.

Outro argumento usado foi o da qualidade das pessoas nomeadas para gabinetes, instituições públicas dependentes do Governo e outras semelhantes. No limite, o que se pretendia dizer era que o escrutínio público severo afastaria gente competente e premiaria eventuais nulidades! Apenas porque as primeiras eram familiares!... Teoria estapafúrdia e intelectualmente desonesta sobretudo porque se baseia na eventual falta de gente qualificada fora do estreito círculo familiar e político. E, finalmente!, a cereja no bolo: o sr. Carlos César sustenta sem corar que “há famílias tradicionalmente vocacionadas para a política” onde o sentido de Estado está especialmente aguerrido e alerta! Depois das pobres elites aristocráticas temos as elite partidárias...

É para o que estamos...

 

 

Não há virgens na nomeação de familiares para o Governo

José Carlos Pereira, 05.04.19

O vírus da nomeação de familiares para cargos de nomeação nos governos e na administração pública é antigo e transversal a todos os partidos, naturalmente em maior número nos dois principais partidos. Cavaco Silva perdeu, por isso, uma boa oportunidade para estar calado.

Depois da incontornável demissão do secretário de Estado do Ambiente, António Costa levantou questões relevantes no debate quinzenal no parlamento que merecem um debate alargado.

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d'oliveira, 05.04.19

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Pequeno lembrete ao dr Costa

(e aos seus epígonos...)

mcr 5/4/19

 

O Sr. Primeiro Ministro entendeu criticar o ex- Presidente Cavaco por este sair do recato a que soem submeter-se os ex-presidentes da República. Desconfio que S.ª Ex.ª não recorda o dr Mário Soares que nunca deixou ( várias vezes com acerto e sempre com pleno direito) de intervir na “res publica”.

Mais: não o fez com punhos de renda ou pezinhos de lã. Alturas houve em que foi truculento, para não usar palavra mais forte.

É verdade que o sr. general Eanes ou o sr. dr. Jorge Sampaio foram mais discretos (poderia dizer-se que estavam nos antípodas do sr. doutor Marcelo Rebelo de Sousa que consegue ainda ser mais interventivo do que no seu longo e conturbado passado de jornalista, dirigente partidário e comentador.

A minha simpatia pelo sr. professor doutor Cavaco Silva é nula e isto desde sempre, melhor dizendo, desde que ele foi ministro das Finanças. Disso há neste blog farta constância numa boa dúzia de textos.

Todavia, não posso nem quero, nem devo impedir que qualquer português – e especialmente quem tem clara influência na opinião pública – de a todo o momento dizer alto e claramente o que pensa sobre a vida política. Diria, até, que os senadores da república tem o estricto dever de não se calarem.

....

Uma segunda questão se me permitem: parece que o sr. dr. Carlos Martins usou, quando era deputado, uma direcção algarvia para receber mais uns miseráveis euros do erário público. Foi apanhado e terá devolvido toda ou parte da soma assim obtida. Conviria dizer que isto, esta bizarra interpretação da “ética republicana” o impediria de chegar a Secretário de Estado. Pelos vistos, nem o Ministro da Pasta nem o Primeiro Ministro pensaram desta maneira. Arriscaram apostar nele e o resultado está à vista...

....

voltando aos recados ao sr. Primeiro Ministro.

Se é verdade que o expediente de pôr o Parlamento a legislar sobre a questão agora em aberto terá algum escasso mérito, não menos verdade é que o próprio Governo poderia estabelecer para si mesmo uma grelha de incompatibilidades familiares. Deixar a discussãoopara a AR significa, por outro lado, adiar para as calendas gregas a resolução do problema. E até lá, enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.

E finalmente

Da banda do acossado PS, houve a referencia ao caso das sete amantíssimas esposas de ministros ppd que, há quase trinta anos, infestaram os gabinetes dos colegas dos maridos (umas vezes como adjuntas, outras com chefes de gabinete). Na altura, o “Independente” pôs a boca no trombone e muito boa, ou má, gente (eu incluído) explorou o tema. Nessa época, até no Parlamento Europeu havia o arraigado hábito de levar familiares para os respectivos gabinetes de apoio. E não era apenas o caso português. Com o decurso do tempo foram-se afinando as regras (escritas ou meramente implícitas) e o festim foi acabando. A prática, aquela prática, não era saudável mas poucos, raros, a criticavam. Trazer à colação o caso, trinta anos depois, poderá fazer lembrar casos idênticos passados por exemplo com o Dr Mário Soares e alguma parentela. Ou será que ninguém se lembra?

Ou a prescrição só funciona em 50% dos casos?

...

 

Au bonheur des dames 478

d'oliveira, 04.04.19

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Quanto mais primo

Maior será o arrimo

mcr, 4.04.19

 

Não pensava voltar a este pouco inspirador tema do nepotismo, colheita de 2018. Todavia a triste história de um cavalheiro de seu nome Armindo Alves obrigado a pedir a demissão depois de ser conhecida o seu parentesco próximo com o sr. Carlos Martins, Secretário de Estado do Ambiente. O primeiro cavalheiro era, desde 2016, adjunto do seu importante primo.

Em tempos que já lá vão havia um provérbio meio acanalhado que dizia “quanto mais prima mais se lhe arrima”, referência a relações familiares quase incestuosas.

Agora, graças –eventualmente- ao “me too”, as primas são substituídos pelos primos e as relações passam a ser banalmente laborais.

Antes que algum(a) leitor(a) me saia ao caminho com a torpe acusação de inventar palavras, aviso que “arrimo” significa, entre outras coisas, peça ou lugar em que alguém se encosta” e, mais precisamente arrimo de família usa-se para significar pessoa que fornece a uma família os meios de subsistência (Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa) .

Parece que os dois primos já se tinham cruzado numa autarquia da grande Lisboa, onde o agora ex-adjunto era “técnico municipal”, lugar sem dúvida ideal para daí transitar para adjunto de qualquer Secretário de Estado. Segundo li, a criatura tinha obtido uma licenciatura em Geografia, coisa de extrema utilidade para qualquer política ambiental. De facto, os adjuntos servem, entre outras coisas, para fornecer aos governantes, algumas elementares noções sobre a geografia do local onde, desgraçadamente, ocorrem coisas desagradáveis. Assim a latitude, a longitude, a orografia dão preciosas indicações ao governante para poder afirmar que qualquer catástrofe ocorrida em qualquer ponto do território tem causas naturais que extravasam a competência do responsável ministerial. É a natureza a funcionar. Do mesmo modo, a natureza familiar propende a recrutar a parentela para cargos onde a nomeação não carece de CRESAP ou outras minúcias do mesmo teor. Sobretudo se não houver coincidência de nomes de família como parece ser o caso de Alves e Martins.

O que mais surpreende nesta historieta de faca e alguidar é isto só agora aparecer à crua luz do dia. Anda-se há semanas a discorrer sobre o labirinto de relações familiares de governantes e familiares e, só ontem se verificou esta demissão. E sobre demissões, importa lembrar que o adjunto foi-se mas o “adjuntador” ficou. Como se nada fosse com ele. Como se o desagradável da questão ficasse resolvido com a saída do primo querido mas agora, véspera de eleições, indesejado.

E o senhor Ministro da pasta de nada sabia! E o senhor Primeiro Ministro, idem. Abençoada ignorância que permite que algo mude para que tudo continue na mesma. Dir-me-ão que neste campo, não há ignorância da lei mas apenas da famosa “ética republicana” com que todos os dias algumas luminárias nos bombardeiam.

Eu, “um pobre homem” de Buarcos, sempre pensei que só há uma ética e que esta não se caracteriza por um entusiástico republicanismo ou um adocicado monarquismo. A nossa história pregressa regista casos de ética e, sobretudo de falta dela, em todos os regimes que Portugal teve ou sofreu.

 

APENDICE

O sr. Carlos Martins ter-se-á demitido hoje, segundo se anuncia. A questão que se põe é a seguinte: demitiu-se de livre vontade ou foi devidamente defenestrado.

É que a pergunta não é ociosa. Se a livre vontade imperasse já demorou tempo demais. Ao primeiro sinal, deveria tê-lo feito, porventura antes do primo. Tudo faz suspeitar que foi empurrado sem suavidade para a demissão.

Dir-se-á, no caso de demissão espontânea e voluntária que antes tarde do que nunca. Mas sempre tarde e a más horas.

Provvelmente, uma boa dúzia de crocodilos, impantes de ética e de receio pelo resultado do escândalo, virão bramir que a atitude (tardia, repete-se) do ex-Secretário de Estado revela um “grande sentido de Estado”, fórmula tão oca quanto usada. O sentido de Estado imporia que nunca, em tempo algum, nomeasse um parente. Mas nomeou. E manteve-o mais de dois anos, longe da vista do público. Se isto tem algum sentido não é seguramente de Estado. Convenhamos que a partida de Martins pouco ou nada mexe com a estrutura do Governo. Não definia políticas e, aqui muito entre nós, não é o ambiente que excita especialmente os portugueses na generalidade nem sequer a opinião pública mais activa, se é que a há. Todavia, esta demissão tem, eventualmente, consequências eleitorais. Aumenta a desconfiança dos eleitores mais voláteis do PS e dá oportunidade a uma série de filisteus que virão ao palco chorar baba e ranho e prometer que, com eles, nem primos em quinto grau, pisarão os degraus poluídos de qualquer ministério.

E, já agora: e os outros os nomeados que inçam em vários graus os ministérios? Ficam ou desandam para a toca de onde nunca deveriam ter saído? E os seus “padrinhos” e “madrinhas”? Assobiam para o ar e esperam que o mau tempo amaine?

Ai Portugal

se fosses só três sílabas...

...sul, sol e sal ...