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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

A nova Comissão Europeia

José Carlos Pereira, 18.07.19

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A alemã Ursula von der Leyen foi sufragada esta semana no Parlamento Europeu como nova presidente da Comissão Europeia. Uma eleição à justa, mas que ultrapassou as naturais reservas de muitos parlamentares acerca de um nome que nunca tinha estado nas cogitações para ocupar o lugar.

A designação da ex-ministra alemã no longo e penoso processo de escolha dos principais lugares de nomeação pelos chefes de Estado e de Governo surgiu da necessidade de encontrar um mínimo denominador comum, após ficarem evidentes as divergências entre os principais grupos parlamentares e até entre deputados dos mesmos grupos políticos.

Foi o primeiro sinal que adveio da maior pulverização do voto nas eleições europeias e do surgimento em vários países de lideranças populistas contrárias ao avanço da integração europeia. Foi também o fim dos spitzenkandidaten, os indigitados candidatos à presidência do Parlamento Europeu apresentados pelos principais partidos concorrentes.

A vitória do PPE, apesar do recuo na votação, não deixava muita margem aos socialistas que queriam, como o apoio dos liberais, impor o nome de Frans Timmermans, o spitzenkandidat que tive oportunidade de ouvir na convenção "Portugal é Europa" que o PS organizou em Fevereiro, em Gaia. Pelo seu discurso e pelas suas ideias, Timmermans parecia ser alguém capaz de dar um novo impulso à liderança da Comissão Europeia.

Porém, as recusas do seu nome e do candidato apresentado pelo PPE acabaram por conduzir à solução Ursula von der Leyen, que se esforçou, no plano e nos compromissos assumidos, por ir de encontro aos anseios da maioria dos parlamentares europeus, fosse sobre a imigração, as alterações climáticas, o Brexit, os fundos comunitários, a política de defesa ou a governação da Europa.

As expectativas residem agora na composição da Comissão Europeia, da dimensão política dos nomes indicados à distribuição das pastas pelos diferentes países. No que nos diz respeito, espera-se que o novo comissário que vier a ser designado por Portugal possa vir a ocupar uma pasta alinhada com os nossos interesses específicos.

Estes dias que passam 329

d'oliveira, 18.07.19

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Também se morre no Verão

Ontem foi um dia nefasto. De uma só penada foram dois os desaparecimentos: Andrea Camilleri e Johnny Clegg.

Do primeiro já aqui falei várias vezes. Fundamentalmente, referi os seu romances policiis (série Montalbano, cerca de trinta títulos) mesmo se, para além desses e igualmente com grande mérito tenha publicado mais outras quarenta obras. Curiosamente, Camilleri foi um autor tardio, sobretudo no que se refere à novela policial, começada já depois dos setenta anos. E foram sobretudo esses romances os que o tornaram extremamente conhecido não só em Itália mas também no resto do mudo com particular incidência para a Europa onde está publicado quase na totalidade. Em Itália chegou a ter seis ou sete títulos na lista dos dez livros mais vendidos. Está traduzido em Portugal (uma meia dúzia de títulos, pelo menos) e toda a sua produção policial foi alvo de filmes produzidos pela RAI. Ainda há poucos meses, a RTP 2 passou durante semanas a grande maioria deles.

Camilleri faz decorrer a acção do “seu” Comissário Montalbano na pequena cidade de Vigata , na Sicília, sua ilha natal. Não é, todavia,a Máfia o alvo principal mesmo se esteja sempre presente. Na maior parte dos casos, os casos do comissário são os típicos de uma pequena cidade italiana a que não falta, aliás, a presença de “extra-comunitários” quer oriundos do Leste europeu quer do Magrebe. Como qualquer outro escritor siciliano (e eles são tantos e tão excelentes) Camilleri insiste –mesmo não carregando nas tintas – na singularidade insular, coisa aliás mais presente ainda nos romances não policiais. Terá sido essa exemplaridade que o tornou conhecido, respeitado e muito lido em toda a Itália. E no resto do mundo, pelos vistos tal a quantidade de edições em línguas estrangeiras.

De todo o modo, eis um autor a não perder. E para os mais afortunados vale a pena recomendar os filmes (conheço duas edições: a italiana e a espanhola. Autenticas pequenas pérolas de cerca de hora e meia. Ao que sei há pelo menos 18 já realizados.

 

O zulu branco.

Com 66 anos, eis que se despede Johnny Clegg, músico importantíssimo da África do Sul cuja história recente – desde os tempos do apartheid – ilustrou como poucos.

Clegg, branco foi um profundo conhecedor da cultura e sociedade zulus, aliás concluiu mesmo uma licenciatura em Antropologia sobre esses grande grupo (o maior na maioria negra) sul africano. Falava a língua com desenvoltura e os seus amigos consideravam-no um autentico mestre da dança tradicional zulu. Contra todas as proibições, desde muito jovem, começou a interessar-se pelo povo zulu de onde era originária a grande maioria dos trabalhadores negros emigrados em Joanesburgo. Foi com eles que primeiro aprendeu os conceitos básicos da grande tradição zulu e com eles começou a fazer música, misturando o rock e o pop à música tradicional africana. Cedo constituiu uma (proibidíssima) banda e cedo começou a publicar (algumas vezes em co-autoria) canções onde perpassavam a temível realidade sul africana, os medos e as esperanças da comunidade negra e de alguns brancos não conformes com o regime. Tal actividade não lhe poupou a prisão, obviamente. E o exílio, aliás. Começou por isso uma carreira internacional, sempre com uma banda mista e é autor de um dos grandes hinos anti- apartheid, “Asimbonanga” dedicado a Nelson Mandela. Curiosamente, durante um concerto já na “nova” África do Sul , o Presidente Mandela apareceu de improviso no palco de um dos seus concertos a dançar aquele hino. E a abraçar o músico branco que desafiara tudo e todos, dentro do próprio país ao criar uma banda (Juluka) bi-racial e ao cantar para todos os sul africanos sem excepção.

Músico talentoso, grande dançarino, o zulu branco provou, quase só, que a resistência dos brancos era possível como era possível uma nação arco-íris. Só isso já faz um grande homem.

Au bonheur des dames 490

d'oliveira, 17.07.19

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Notas à margem

mcr 17.07.2019

 

Emídio, Raio, Edgar, Jesus Correia e Correia dos Santos!

Eu não sei se alguma das leitoras (e leitores) reconhece estes nomes. Provavelmente não! E, porém, eles foram celebres nos finais de 40 e nos 50 do século passado. Fizeram a grande equipa de hóquei em patins de Portugal durante anos e anos. Ganhavam tudo ou quase. Oe relatos radiofónicos eram seguidos por multidões em casa, nos cafés, por todo o lado. Nós miúdos, na escola e depois no liceu, durante quinze bons dias abandonávamos o futebol e disputávamos animadissímas partidas de hóquei (sem patins). Aliás sem nenhum artefacto da modalidade. Não havia, ou se acaso havia algum stick este era caro para uma grande maioria. Que os tempos eram outros, pobres, muito pobres, hoje ninguém se lembra ou, pior, ninguém sabe. Nem sequer a Escola o lembra. Portugal no post-guerra era pobre e maltrapilho. Os ricos escasseavam e muitos deles cuidavam de levar uma vida recatada e sem esbanjamentos. Deixavam isso para os “novos ricos”, para os arrivistas, para os que tinham feito fortunas, nas negociatas da guerra, sobretudo nas conservas e no volfrâmio, no contrabando de café para Espanha (que estava ainda pior do que nós). Uma jornalista chamou ao pais o “paraíso triste” e nunca um nome foi tão bem aplicado. No meio disto tudo, de uma quase geral resignação, o hóquei foi um bálsamo, um foguete luminoso, um arco íris. E os cinco acima citados, foram bafejados pela glória e pela admiração e carinho populares. De todo o modo não enriqueceram nem foram recebidos (que me lembre) pelo Presidente da República. Terão voltado para os seus mesteres habituais e porá lá continuaram. A grande excepção era Jesus Correia que além de exímio no hóquei foi um grande jogador de futebol, do Sporting, onde fez parte dos “cinco violinos”. Terá marcado cerca de mil golos (!!!) e ganhou pelo menos seis ou sete campeonatos. Tantos quantos os de hóquei.

Vale a pena lembrarmo-nos dessa equipa agora que voltámos, depois de um longo jejum, a ser campeões mundiais.

2 Tão pública que ela é (para o anedotário nacional) a CGD, o famigerado banco público, devotado ao alto interesse da pátria e à protecção dos cidadãos, entendeu, depois de outras tropelias tais como fechar balcões a esmo, deixar de pagar juros inferiores a um euro.

Parece uma ninharia mas na verdade, para além de ser um confisco (ou uma ladroeira, escolham o termo) aqueles muitos milhares de importâncias abaixo do euro ainda faziam jeito a muito boa gente. Vá lá que, desta vez, o Banco de Portugal rosnou. E a CGD recuou, pelo menos para já.

Do passado nem falemos: a CGD, o tal banco nosso, público, já nos custou muitos, muitíssimos milhões. E ainda não se sabe o que mais se irá encontrar. Por enquanto só há um ex-gestor na cadeia e não por via da CGD mas por um pequeno e merdoso delito. Por aí, à solta, vagueiam, felizes e contentes, vários cavalheiros. Inocentes, inocentíssimos, claro. E virtuosos... muito virtuosos.

 

3 mamarrachos

(ou eu hei de ir a Viana...)

 

O que se passa em Viana com o prédio Coutinho não é sequer um dramalhão de faca e alguidar. É apenas uma vergonha. E conviria deixar de chamar nomes aos moradores que ainda lá sobrevivem, melhor dizendo subvivem que mesmo que a razão estivesse toda do lado camarário (e não está) ou dessa caríssima vianapolis que já vai em duas décadas de pouco serviço.

Relembremos: o prédio foi construído com todas as licenças necessárias. Não houve atropelos à legalidade que se saiba e de nada serve arguir que a coisa começou ainda no antigo regime. Começou mas continuou pacificamente no actual. E se é verdade que o prédio não prima pela beleza, também não é menos verdade que, dentro de Viana com casas baixas há muito pior. Isto sem falar no mostrengo ao alto de Santa Luzia, imitação horrenda do horrendo Sacré Coeur monumento construído em pagamento de uma promessa : se a França se salvasse na guerra franco prussiana (que aliás perdeu sem apelo nem agravo) ergueriam “aquilo”.

Eu percebo que, em Viana, alguém desejoso de passar à imortalidade local começasse uma campanha contra o prédio. De todo o modo, os critérios estéticos são de per si sempre contestáveis, mesmo se numa cidade baixa um edifício com 13 andares parecesse (e fosse) excessivo.

Seria bom e útil, saber quanto custou até agora futura demolição e o realojamento dos quase trezentos habitantes. Mais os honorários da rapaziada da vianapolis, os custos com advogados e tudo o resto. A ideia é que a coisa deve dar uma maquia gorda, obesa, elefântica!

Do ponto de vista moral, simplesmente moral, a guerra desencadeada contra os habitantes, a pressão exercida durante estes vinte anos deve ter sido tremenda. Sobretudo numa pequena cidade como Viana. E foi tal a pressão que muitos, quase todos (mais de 90%) foram desistindo, foram-se rendendo, acossados pela tal sociedade, pela Câmara, pelos media, pelos poderes públicos e pelas boas consciências da cidade. E os habitantes que saíram foram ou realojados ou receberam as indemnizações mais ou menos impostas.

 

Nestas últimas semanas o zelo medonho dos anti-Coutinho atingiu o auge. Cortaram a água, a luz, o gás, proibiram a entrada de familiares e, preparavam-se para proibir o regresso a casa dos imprudentes que saíssem. Foi vergonhoso e digno do 4º mundo ver os desgraçados velhos que resistem a içar a comida e a água por cordas. É inacreditável que se corte a luz a quem a paga. Por muitas sentenças que se tenham na mão. Aliás não chegam como se viu com este último recurso dos moradores com a providência cautelar.

Agora uma pomposa criatura vagamente amparada pela Administração pública ameaça os moradores resistentes com acções de perdas e danos. Essa pessoa de maus fígados e pior moral deveria, por um breve momento, pensar na angústia de quem vive numa casa a que chama sua, que é sua, que foi legitimamente comprada e vivida durante dezenas de anos.

Isto a que se assiste é o Estado, ou este triste estado de coisas, a usar da sua força contra fracos. Melhor andariam os arautos da estética se começassem a olhar para as inumeráveis criaturas que defraudaram e continuam a defraudar o Estado, o Tesouro público e a rir-se dos cidadãos portugueses. A única diferença é que estes bandoleiros que fazem do país um imenso pinhal da Azambuja, tem poder e tem força.

Claro que isto vai acabar mal para as nove pessoas (todas idosas) que ainda aguentam todo este desacato. Mas a vitória dos vianapolistas é, será sempre, uma triste vitória.

(ainda mais à margem: tudo isto se passa enquanto no parlamento se vota uma lei da habitaçãoo!...

 

4

o sr. Carlos César abandona o parlamento. Boa viajem e que uma estrelinha o guie. Segundo ele, é “um incorrigível açoriano” e por isso vai à vida. Para os Açores?

As más línguas, que as há sempre, relacionam esta saída com o facto de se ter gorado a ideia de o alcandorar à presidência da Assembleia da República! César jura que não, que nunca pensou nessa possibilidade. Que jamais correria Ferro Rodrigues do lugar. Credo! Logo eles tão amigos! Eu não sei o que é ser incorrigivelmente açoriano. Será que um açoriano pode deixar de ser açoriano? Ou sê-lo temporada sim, temporada não? Que diabo, uma pessoa é da terra onde nasceu. Pode evidentemente, mudar de terra, ser expulso dela, adoptar outra por vários motivos, incluindo o facto de encontrar trabalho e futuro noutro lugar que não o natal. Mas nada lhe tira a naturalidade.

No caso do sr. César (Carlos, de seu nome) o facto de ser deputado pelos Açores já justificava a sua incorrigibilidade. Estava no Parlamento para lembrar ao mundo, a Portugal ou aos restantes companheiros de tribuna, que, no meio do Atlântico Norte, há um arquipélago mais ou menos vulcânico que merece atenção. Nada disto implica com o ser-se incorrigivelmente indígena da Terceira ou da Graciosa ou de qualquer outra ilha açoriana incluindo o ilhéu dos Capelinhos.

Claro que o sr César pode estar farto do parlamento. Até seria uma prova de bom gosto. Mas não. A criatura garante que continuará (para mal dos nossos pecados que, pelos vistos hão de ser muitos e medonhos) a fazer política. A, como outro fantasma, a “andar por aí”.

A menos que, à falta da presidência do parlamento, volte a pensar na da região dos Açores mas isso é com os eleitores de lá...

 

5 anda por aí muito machismo disfarçado Reza a lenda que Santa Úrsula prometida a um pagão foi morta por Átila (outro pagão) por se recusar a casar com ele. As suas onze (ou onze mil)companheiras todas virgens como ela foram igualmente mortas pelos hunos ou por outros bárbaros do mesmo género e espécie. Tanta mortandade faz pensar que naqueles ásperos tempos não era bom ser mulher. E nos de hoje?

A senhora Úrsula von der Leyen teve contra ela vários cavalheiros que insistiam em acusações antigas que se verificaram infundadas ou em apreciações pouco lisonjeiras sobre o seu último e difícil cargo ministerial (Ministra da Defesa! na Alemanha!!!) mesmo que geralmente se lhe reconheçam excelentes serviços nas anteriores pastas com especial destaque para o Trabalho,

Dentre os críticos, assume especial relevo, o SPD, partido social democrata alemão em acelerada queda junto dos eleitores. Melhor dizendo, e digo-o com profundo desgosto, está a caminho de se tornar uma insignificância na Alemanha. Um pouco como o que se passa em França onde o PS está nos cuidados intensivos. Ou na Grécia onde o PASOK já só é uma triste memória.

Nada tenho contra o anterior candidato, o sr Timmermans, mesmo se também o não achasse nenhum Hércules político. Aliás, a regra não escrita do PE é eleger para este cargo um representante do partido mais votado. E esse partido é, goste-se ou não, o PPE. Claro que das últimas eleições o PPE saiu menos robusto. Mas essa falta de força não se traduziu em ganho para os socialistas antes permitiu a entrada de mais pequenos grupos políticos no PE e algum crescimento dos ecologistas. Isto para não falar dos anti-europeístas que, ontem pela gritaria dos adeptos do sr Farage se mostraram tão educados quanto as antigas claques futebolísticas britânicas

Tenho por mim que a eleição agora assegurada de Von der Leyen tem para já uma imensa virtude: Finalmente uma mulher à frente da Europa. Já não era sem tempo. Do que fui lendo sobre ela e sobre as suas propostas não vi motivo de escândalo. Cumpre os mínimos à vontade e parece-me, por exemplo, bem mais interessante do que Durão Barroso. Aliás, o facto de ter uma sólida formação académica, ser médica e doutorada, aliada ao quase inacreditável facto de, numa Europa que envelhece sem natalidade que se veja, ter sete filhos, é um bom sinal. E ter sido ministra de áreas sensíveis (Trabalho, Segurança Social e Defesa) dá-lhe um bom background. E o discurso foi bom, francamente bom.

Mas, há sempre um mas, von der Leyen é mulher. Mulher num mundo de homens de barba rija. E, pelos vistos, não cedeu nem precisou de certos votos dúbios. Aliás, dúbia foi a inesperada aliança dos anti-europeístas, com a tropa inglesa e alguns ilustres deputados sans peur et sans reproche que votaram baseados unicamente no preconceito ideológico que disfarçava também, e talvez principalmente, muito marialvismo. Parece que, contra a srª Von der Leyen há a acusação de não ter sido eleita deputada ao PE.

Finalmente, aqui, muito entre nós, o cabeça de lista do PS local foi eleito não pelo seu mérito próprio que é inexistente mas porque sim. E à frente de uma mulher competente, Mª Manuel Leitão Marques, que provavelmente faria (fará?) boa figura na lista que a nova Presidente da Comissão vai apresentar numa composição enfim paritária.

Estes dias que passam 328

d'oliveira, 11.07.19

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O cronista desconfiado

mcr 11.7.19

 

 

Nem sempre fui desconfiado, bem pelo contrário. Na minha meninice tardia (já lia livros se bem que em voz alta) a avó Aldina (a “Velha Senhora”, visitante antiga desta página) explicou-me o Natal. Não, o menino Jesus não vinha ver a árvore (naquele tempo o Pai Natal todo de vermelho via Coca-cola, ainda não era o intruso tremendo de hoje), era a família que presenteava a criançada que mal conseguia dormir de 24 para 25 (lá em casa era no próprio dia que estremunhados e ansiosos íamos, o meu irmão e eu, quase de madrugada, enfim pelo raiar das 8 da manhã, ver o que se passava junto dos nossos sapatinhos, à sombra da árvore.

Mais tarde, depois de acreditar ferreamente no que contavam Júlio Verne, Emílio Salgari e Edgar Rice Burroughs (o cavalheiro do Tarzan que li integralmente na colecção “Terramarear “ de origem brasileira e presente na Biblioteca Pública Fernandes Tomaz, na Figueira da Foz, tive que me render à evidência. Tudo aquilo provinha da imaginação formidável dos autores e, no caso de Burroughs, a África é bastante fantasiosa pois o autor nunca lá pôs o pé.

Já Verne é um estudioso, um leitor de mapas e revistas científicas e um formidável explorador de futuros prováveis a que, entretanto, consegue juntar num cenário de viagens pelos mais recônditos cantos do mundo, aventuras e heróis que as vivem vitoriosamente graças ao seu conhecimento científico. Salgari, marinheiro e viajante parte de princípios semelhantes e sobretudo de um apertado conhecimento de geografia para, também ele levar os seus heróis por mundos ainda mal descobertos, A Asia, as Américas o Extremo Oriente que os seus leitores iam conhecendo através de jornais e revistas de notável qualidade e extensamente ilustradas.

Tudo isto, toda esta digressão sobre os livros que povoaram a minha infância e primeira juventude, para explicar que sempre tentei perceber o mundo desconhecido pela leitura. Quando cheguei a África, à África verdadeira e não apenas às grandes cidades mas muito ao “mato” onde um branco era quase uma (nem sempre recomendável) novidade o choque foi notável. Aos quinze anos, mesmo sem o saber, já tinha uma obscura consciência dos males do colonialismo, mesmo se não fosse ainda capaz de objectivar claramente o sistema. Mas já sentia como injusto o “contrato”, as culturas obrigatórias (sobretudo o algodão) a injustiça do imposto em moeda no caso de populações onde ela não existia e onde a economia era de subsistência, a brutalidade boçal de muito colono e a inexplicável ausência de negros no sistema de ensino secundário. E não gostava de missionários. E achava lindíssimos os “manipansos” ou seja alguns objectos de arte africana que, sei lá porquê me pareciam extremamente expressivos. Ao invés, a maioria dos nossos conhecidos, mesmo dos interessados em “arte indígena” (!!!) adorava encomendar aos escultores makonde Nossas Senhoras, caravelas e peças para jogos de xadrez, tudo muito “africano” como se vê. Também havia encomendas de máscaras que, de modo algum, correspondiam às máscaras correntes nas culturas locais! Porém, isto era apesar de tudo um vago sinal de interesse – não vou ao exagero de falar em respeito- pelo outro, pelo negro (em português colonial pelo “indígena”). Desse curto período da minha irrequieta mocidade ( acrescentado a três outros - longos, longos- períodos de férias grandes quando já estava na universidade. Nasceu aí e continua em crescendo uma paixão por África, pelas civilizações ditas “primeiras”. Na minha caótica biblioteca jazem milhares de livros sobre África (história, arte, geografia, etnologia, dicionários e línguas além de, obviamente, tudo o que tenho apanhado sobre a “expansão colonial portuguesa” , termo propositadamente ambíguo como é sabido mas que dá imenso jeito nesta época de anti-colonialistas ignorantes e de saudosos do império igualmente néscios.

Neste capítulo incluo aquele vereador patarata que descobriu o mal absoluto no Jardim   da Praça do Império frente aos Jerónimos. Havia por lá uns canteiros representando os brasões das colónias. O pobre diabo nem hesitou: acabem-se os canteiros e assim purifica-se a história pátria! Queira ou não esta criatura, a História fica para além dele e o seu gesto tolo só a torna mais ininteligível. E mais boçalmente ideológica...

Vem tudo isto a propósito de um texto da srª doutora Fátima Bonifácio a quem a passagem acelerada dos anos terá toldado a agudeza. O texto, pobre dele, é ml amanhado, confuso, parte de pressupostos racistas , esquece que em Portugal foram assimilados e se perderam na voragem dos séculos muitas dezenas de milhares de negros trazidos como escravos. Esquece igualmente o que devemos a inúmeros “mestiços” (e só vou citar Almada Negreiros) sem falar na pujante presença de negros na cultura americana mormente na música e nas letras ou em França (também só cito Alexandre Dumas) para não falar de países onde a presença de intelectuais de “cor” (incluindo prémios Nobel) é corriqueira. Tudo sem “quotas”, notem bem.

Li hoje que um professor universitário de origem moçambicana mas residente em Portugal onde, aliás, exerce, entende a obrigatoriedade de quotas como um último e perigoso sinal de paternalismo racista branco. Não direi tanto mas temo bem que não esteja totalmente longe de alguma verdade.

O texto da senhora Bonifácio merece ter o mesmo destino que Camilo augurava a uma carta recebida: passar ao ventre da mãe terra pelo esófago da latrina!

Porem, a notícia, também de hoje, de um grupo de personalidades entendeu apresentar queixa crime contra a referida senhora. A notícia curta não explicita com clareza a base jurídica da queixa e sobretudo mesmo que seja aceite, não destrói a argumentaçãoo da autora. Apenas a transporta para o eventual paraíso dos acusados de delito de opinião. A opinião da historiadora deve ser combatida pelas opiniões dos queixosos. E espera-se que escrevam com mais clareza o que querem. E também apareceram no mesmo jornal onde o artigo saiu apelos a que se proibisse qualquer outra publicação de textos da referida autora. Há até uma senhora que o faz em nome da sua “assinatura” do jornal. Eu, que leio e pago o Publico desde o primeiro dia não me sinto defraudado. Como não me sinto atacado por tantos outros textos em que algum “ódio de classe” de duvidosa origem e de mais que duvidosos antecedentes, lá publicados. Bastaram-me os anos de leitor de jornais entre 1958 e 1974 onde a verdade era só uma e a censura se cevava à vontade nos textos vagamente discordantes. Fui alvo desse lápis azul muitas vezes (na Vértice, no Comércio do Funchal entre outras publicações) para concordar agora com qualquer espécie de censura.

O meu amigo Joaquim Namorado, que viveu e morreu comunista puro e duro, afiançava que estava disposto a colaborar num pasquim dos anos sessenta (o “Agora”) desde que o deixassem dizer o que queria. E remetia para os leitores o julgamento crítico do que defendia. Vivemos numa repelente época do politicamente correcto. Ainda há poucos meses, um grande e excelente jornal americano pedia desculpas por ter publicado uma caricatura do excelente António em que Trump e Netaniahu apareciam um de kipá e o outro à trela. E acabava com a publicação de caricaturas, cedendo assim aos lobbys mais assanhados de Israel e dos EUA.

Somos nós, o público, os leitores, os inconformados, quem perde. E a vitória dos fanáticos torna-se perigosamente mais viável. À falta de contraditório... À falta de opinião....

 

 

 

Diário político 220

d'oliveira, 10.07.19

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Surpresas?

Nem por isso.

d'Oliveira, desenganado, viaja pela pátria em 10 de Julho do ano da graça de 2019

(Costa, amigos da Grécia, a saude periclitante, os monumento e Fátima Bonifácio) Espíritos sensíveis; não leiam!

 

1 Em fim de legislatura o dr. António Costa teve (tem e terá?) contra ele o dobro das greves que atormentaram o dr. Passos Coelho. O dobro! Algo como, cito de memória, 70.000 contra 32.000 (não garanto estes números e não tive oportunidade de os confirmar).

Trocando por miúdos, o dr. Costa, que chefia um governo progressista num momento de grande distensão económica e de recuperação do emprego, consegue apagar o dr. Coelho que era o “inimigo dos trabalhadores e do povo, o “serventuário da troika e dos interesses mais infamemente capitalistas”...

Dá para pensar. Então Costa apanha com greves obviamente comandadas pela Esquerda (PC e PS – aqui o Bloco não pinta para nada, ou muito pouco) mesmo governando com o apoio da ”geringonça”? ) E Passos, o reaccionário vê-se agora absolvido, senão beatificado, dada a “indulgência” de que terá sido alvo por parte das forças sindicais?

Será que a nova frente sindical tem como objectivo derrubar ou, no mínimo, desacreditar um governo “de esquerda”?

Ou, hipótese fascinante mas perversa, os sindicalistas disparam sobre Costa para forçar o regresso de Passos e, aí sim, reafirmarem a vontade popular e proletária de uma “verdadeira” revolução?

 

2 Mafra, o Bom Jesus e o Museu Machado de Castro, já fazem parte do património da humanidade. Nada mais justo nem mais inesperado. A propósito, uma das televisões entendeu entrevistar a senhora que faz de Ministra da Cultura. Sem propriamente se apoderar descaradamente do sucesso, e também sem o negar, a senhora em questão teceu um par de considerações irrelevantes esquecendo o enorme trabalho dos proponentes deste reconhecimento. Esqueceu, igualmente, o descaso que o ministério da alegada Cultura tem demonstrado no capítulo do Património Construído.

A propósito de Mafra esperava-se que, de uma vez por todas, alguém do Governo viesse anunciar que se punha fim ao “imbroglio” deste palácio (e dependências) ter uma administração (?) repartida por pelo menos três ministérios (Cultura, Defesa e Agricultura) e uma Câmara Municipal (que deve ter um papel idêntico ao de Durão Barroso no famoso encontro dos Açores onde se decidiu atacar o Iraque por este ter armas de extermínio maciço...) Não houve fumo branco. Nem preto! Nem fumo! Nem sequer “só fumaça”...

Sobre o candente problema da autonomia de museus e restantes sítios patrimoniais a senhora em questão fez vista grossa às objecções levantadas pelo ex-director do Museu de Arte Antiga e jurou que estamos no melhor dos mundos.

Finalmente sobre o “não aparecimento” de obras de arte pertencentes ao Estado (e há uma boa centena delas “não aparecidas”) a criatura entendeu explicar que a culpa –como de costume – começou no século passado. Desta vez, nem sequer aproveitou para cascar no governo anterior. Antes referiu os “tempos longos” tão caros a uma certa historiografia: tudo começou nos anos 90. Ou 80. Ou quarenta. Ou com as invasões francesas...

(mesmo sem retirar a carga ideológica e publicitária que, naturalmente, teve, seria interessante recordar a campanha do Estado Novo na reabilitação, preservação ou restauro dos monumentos nacionais, levada a cabo pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais e facilmente consultável por ainda estarem à venda – em alfarrabistas, claro – oa 132 +3 boletins da referida instituição)

3 O dr. Centeno (que, como o finado dr. Salazar, quando ministro das Finanças, manda nisto tudo) veio esclarecer o povo ignaro da excelência da sua acção quanto ao Serviço Nacional de Saúde. Afinal está tudo bem, houve um gigantesco reforço em meios técnicos e humanos e um invejável investimento. Qualquer notícia sobre o estado catatónico do SNS é uma fake new.

A dr. Temido, ministra da mesma pasta, abundou no mesmo sentido: “Tout va bien, madame la marquise...”

Entretanto um estudo académico, coordenado por Pais Mamede e Adão Silva, vem propor um seguro de saúde universal que daria ao SNS pés (e mãos) para andar. É um pouco o ovo de Colombo: uma espécie de ADSE geral e universal que, com pequeno dispêndio para os cidadãos, tornaria o SNS financeiramente forte a ponto de evitar as dramáticas rupturas actuais e de, no momento do pagamento de serviços médicos, reduzir este a valores mais ou menos simbólicos, É evidente que a teoria absurda e não funcional de um SNS absolutamente gratuito cairia por terra. Como, aliás, já caiu. Entre atrasos evidentes e escandalosos e falta de assistência em muitos pontos do país, o SNS é já uma miragem que só serve para dar votos ao seus defensores que, entretanto, levam a sua miopia política e social a extremos inacreditáveis e são incapazes de explicar de onde hão de vir as cada vez mais crescentes necessidades de financiamento.

De todo o modo, ninguém, muito menos eu, acredita que isto seja levado a sério. Os esforçados defensores da “albanização” do país acham que “fazer do passado tábua rasa” é a única solução. Não é, já não é, nunca foi e os exemplos medonhos do passado século deixam cruelmente à vista o que foi o reinado da utopia (soviética & similares).

 

4 Na Grécia, o sr. Tsipras foi estrondosamente derrotado. O fim do populismo de esquerda do Siriza estava há muito anunciado. E tudo começou no exacto momento em que, para governar, se aliou a um partido de extrema direita. Depois foi o qu e viu, entradas de leão e saídas de sendeiro no conflito com a Europa, a história de um referendo que vencedor foi imediatamente desrespeitado pela ansia de continuar no poder. O reforço da austeridade por incapacidade de criar reformas que viabilizassem a economia nacional, que quebrassem o poder imenso da Igreja ortodoxa e dos principais armadores (cuja fortuna continuou intocada) e outros elementos da elite económica e financeira grega.

Ironicamente, a cereja neste bolo desastrado tem origem no único gesto inteligente e ousado de Tsipras: o acordo com a República da Macedónia do Norte.

A este propósito, recordo que a Macedónia de Filipe e Alexandre não era exactamente a mesma Grécia de Atenas, Tebas ou Esparta. E Demóstenes, ateniense e orador ímpar, bem que tentou afastar os macedónios da “verdadeira” Grécia.

Todavia, o nome “macedónia” e o emblema solar tornaram-se matéria sagrada para a maioria dos gregos e isso, como a condenação do nº 666 (o número da “besta” ou do Anti Cristo).

Por cá, os antigos amigos de Tsipras (e sobretudo, as antigas amigas) calaram-se como ratos. Para elas e eles, a Grécia já não estava na moda. Tinha-se rendido ao monstro europeu que, “cínica e miseravelmente” recusava dar mais dinheiro para um 4º resgate... Durante umas semanas, eufóricas e exaltadas, a Grécia preencheu os sucessivos vazios deixados pelos naufrágios da URSS, da China, da Albânia ou do Vietnam. Agora tudo se reduz, melancolicamente à admiração resignada dos senhores Melenchon e Iglésias, meras caricaturas dos heróis progressistas. Ou, pior ainda, do sr. Jeremy Corbin...

 

5 Uma senhora que já não é propriamente nova, professora universitária, historiadora e autora de alguns livros meritórios sobre o século XIX português, entendeu parir um texto sobre negros e ciganos e sua congénita inadaptação ao mundo ocidental. A coisa nem sequer é imbecil. Vai bem além disso .E é ridícula, mesquinha, baseia-se em preconceitos sem qualquer fundamento, toma algumas mínimas partes pelo todo e está tão disparatadamente longe da realidade que, só me apetece pensar que há idades perigosas para a razão!

Anda por aí um alarido, nem sempre inteligente, nem sempre responsável, nem sempre sensato sobre o “racismo” (que existe) e que obviamente (basta ver o presente exemplo) é cretino e afrontoso. Depois, e a par, correm uma série de propostas porventura generosas mas de resultado improvável. A ideia de quotas deeria ser temperada antes e a montante por um claro, exigente esforço desde os bancos da pré primária, desde as condições de habitaçãoo. Desde o respeito pelas minorias, desde a educação da polícia e de outros agentes do Estado.

E desde uma outra e fundamental ideia. Portugal (e o Ocidente para onde foge gente de todo o mundo)deverá exigir aos que o procuram um claro respeito pelas leis e costumes. E um rápido conhecimento da língua e da cultura nacionais. Sem isso, as sociedades ghetizadas, não saem do seu casulo e da sua estranheza. Por exemplo: é inaceitável que a certos romenos se permita mendigar ou usar a mendicidade como único meio de ida. É inaceitável o uso de burkas, nikabs e outras formas de esconder o corpo e o rosto. É intolerável a ablação d o clítoris. E por aí fora.

Isto dito, convém relembrar estoutra verdade: somos um povo emigrante. Fomos, “depressa e em força” para o Oriente, para o Brasil ou para África. E depois para o resto do mundo desde a Venezuela até à França, dos Estados Unidos à Alemanha ou à Inglaterra. Só não emigrámos para o leste europeu onde os poucos portugueses que lá passaram nunca se fixaram: o frio e o primado da ideologia sustentado na contínua vigilância policial eram mais repulsivos que “os brandos costumes do regime reaccionário e clerical em vigor no jardim à beira mar plantado. E integrámo-nos com grande facilidade. Em Malaca a raiz portuguesa quase desapareceu, o mesmo se passou na Índia e em África criou-se o termo “cafrealizado” para designar colonos que viviam sem constrangimento como os povos da região. Nada disto nos iliba dos desastres da colonização que levámos a cabo e que nunca foi especialmente humanitária ou portadora das luzes da civilização. A senhora Bonifácio, que terá tido uma juventude vagamente esquerdista e é historiadora, deveria saber isto mas pelos vistos o avanço da senectude fê-la olvidar estes maus passos desta “cristandade” pouco observadora dos Evangelhos.

Desconheço se contra chineses, indianos (e outra gente de cor) também alimenta argumentos idênticos ao seu desinspirado artigo. E, no entanto, há claríssima diversidade cultural, espiritual e social entre a Índia milenar, (com as temíveis diferenças de casta) a China ou o Japão onde ainda reina uma espécie de Deus vivo. E já que se fala de “Cristandade”, relembraria o Islão e as suas versões mais radicais, o judaísmo que continuadamente se perseguiu (e se persegue) e que na sua versão estatal mais dura trata os seus palestinianos abaixo de cão. E continuando neste mimoso caminho, será que a senhora Bonifácio também tem sobre, por exemplo, as minorias sexuais e as seitas religiosas mais extravagantes, opinião?

Aqui para nós, se a tem, ha de ser fresca, fresquíssima...

Parece que alguns ofendidos entendem que ela devia ser privada de espaço nos jornais, mormente no “Público” onde vomitou o pobre texto de que se fala. Não alinho nessa cruzada: as opiniões mesmo as mais obviamente estúpidas (e é o caso) devem ser conhecidas. Para poderem ser combatidas por armas menos perigosas do que as que foram usadas nos séculos que nos precederam (desde os campos hitlerianos aos da Sibéria e ao Congo sem esquecer os primeiros de todos miseravelmente inventados pelos britânicos na África do Sul e contra os boers.

A história recente está cheia de exemplos de intelectuais que ao lado de verdadeiras obras primas (Céline: voyage au bout de la nuit; Ezra Pound “Cantos”) foram cúmplices políticos da abjecção fascista. Mas há, entre eles e Bonifácio, uma diferença abissal: eles eram geniais e as suas obras permanecem como autênticos faróis do século XX. A senhora Fátima não ultrapassa (antes fica aquém) o padre José Agostinho de Macedo, que aliás escreve bem melhor.

 

 

(As vinhetas representam ciganos em campos de concentração nazis e negros congoleses administrados pelo rei dos belgas. À compadecida atenção da senhora Bonifácio, arauto da Cristandade e da e dos valores ocidentais. Para que saiba, se é que, coisa de que seriamente duvido, esta chamada de atenção vale a pena.)

estes dias que passam 327

d'oliveira, 02.07.19

 

as injustiças do ensino 

mcr (Junho 2019)

Uma comissão, mais uma, descobriu (oh pasmo tremendo! Oh surpresa inenarrável!!. Oh, Oh, oh, oh três vezes oh!!!) que os filhos dos mais instruídos tem mais possibilidades de frequentar cursos de prestígio do que os filhos das classes menos afortunadas do ponto de vista da instrucção!...

Ai, pobre de mim, que profeta em terra própria, descobri essa amarga verdade quando acabada a escola primária vi que apenas mais dois colegas iam comigo para o liceu e outros tantas para a Escola Comercial e Industrial. Os restante trinta e tal iriam engrossar as tripulações das bateiras, lanchas, traineiras, e arrastões que aquela praça armava. Isto significava que nós os três (2 filhos de médico, e 1 de industrial) nos destinávamos a uma profissão nobre (e mais bem paga) enquanto os da Escola teriam a sorte de ser empregados e comércio ou electricistas, carpinteiros ou marceneiros, de todo o modo um eventual progresso naquela população quase só feita de pesadores e mineiros.

Durante os quatro anos de primária já tinha descoberto que só na nossa casa havia livros, coisa tão natural como sapatos (também só na nossa casa) e uma empregada doméstica que na altura se chamava criada de servir. (a propósito, as criadas de servir da minha infância, eram quase da família e nós mantivemos com todas – já não resta nenhuma – laços de amizade e de certa familiaridade. Para várias, eu e o meu irmão fomos sempre “os meninos” tratados por tu como Deus manda sendo que uma, a saudosa Deolinda, ao visitar-me muitos, muitos, anos depois me disse Ai Marcelito como tu cresceste. Pudera não que a coisa ocorreu quando eu tinha já quarenta anos!).

Parece que a dita comissão descobriu que 68% dos filhos de médicos, advogados e engenheiros frequentavam cursos prestigiados na Universidade. Em contraponto outros tantos 60 ou 70% de filhos de cidadãos com instrução não universitária andariam no politécnicos e em cursos menos ribombantes!

A comoção que esta descoberta da pólvora seca provocou deu azo a discussão na televisão onde circunspectos cavalheiros e damas da nossa melhor inteligentsia progressista bramiram que faltava cumprir o 25 de Abril.

Por acaso, mero acaso, claro, foram estas mesmíssimas criaturas que aplaudiram com as duas mãos a baixa generalizada de propinas universitárias não cuidando de distinguir ricos de pobres. Com um pouco de imaginação poderiam antes ter criado mais e melhores bolsas para estudantes oriundos de meios menos favorecidos de modo a que estes pudessem enfrentar as despesas de uma universidade, sobretudo no domínio do alojamento. Com a mesma escassa imaginação poderiam pensar em seguir (desde os primeiros anos de escolaridade) os alunos que se distinguissem, fornecendo a estes meios especiais de vida para poderem competir com os meninos oriundos de famílias mais privilegiadas. Com mais uma pisca de imaginação poder-se-ia criar um sistema especial de bolsas para permitir que estudantes vindos de meios menos afortunados frequentassem os tais famosos colégios de elite que obviamente preparam os seus alunos para as melhores escolas nacionais e internacionais. Porque é no ensino dito secundário que a selecção ainda pode ter sucesso e permitir que o elevador funcione.

É evidente que, para se detectar com a maior rapidez e brevidade o talento, haverá que criar provas de aferição sérias que ultrapassem a trapaça do ensino actual onde o sucesso de todos, ou quase, esconde as diferenças e a ignorância e permite a injustiça que, depois, é alvo de queixume.

Também não deixa de ser evidente que entre uma casa onde há livros e outra sem eles o mais provável é que na segunda o nível da exigência familiar seja menor. E o da esperança num melhor destino, idem. Ou da ambição!

Enquanto houver ricos e pobres (ou ricos e menos ricos) haverá diferença no destino dos filhos. Provavelmente, porque são diferentes o meio cultural, a ambição, as relações familiares, a ideologia de classe, os preconceitos, os hábitos. Nada disto é redutível a qualquer espécie de igualdade natural ou forçada. Não o foi em nenhum regime pretensamente igualitário (nem vale a pena falar da utópica União Soviética onde a classe dirigente se governou e onde os aparatchiks guardaram ciosamente para si e para os seus todos os lugares valiosos. O elevador social nunca funcionou e nos casos raros em que pareceu ter importância, foi a ambição e o zelo partidário que deram a um escasso número de militantes fieis (e mais papistas do que o Papa) um lugar diferenciado do da maioria esmagadora da população e mesmo da maioria do Partido.

Nos EUA, as minorias só chegam às universidades mais prestigiadas graças fundamentalmente ao mérito desportivo e a quotas impostas. De longe a longe, alunos distintos do secundário conseguem o mesmo, obtendo bolsas de estudo dos próprios estabelecimentos universitários. Yale ou Harvard, para não citar uma vintena de outras grandes universidades, tem custos proibitivos e para um pobre mesmo com excelente preparação escolar a entrada é semelhante à da parábola bíblica do buraco da agulha. Aqui, entretanto, são os ricos que entram no “reino dos céus”.

As lacrimosas constatações da comissão e de um quarteirão de personalidades comentadoras e putativamente generosas esbarram num pequeno problema: soluções! Soluções simples, evidentes, democráticas. Soluções que garantam, após aferição séria, que os bons alunos conseguem, mesmo sem meios de fortuna, frequentar as melhores escolas (públicas ou privadas) e levar a cabo um percurso educativo valioso e libertador. Provavelmente, seria melhor criar condições para a existência de uma verdadeira classe média que extravase da que só é alimentada pela função pública (ela própria cada vez mais dependente do poder político e das simpatias partidárias) e que ultrapasse o funil das “jotas” partidárias que dividem os poderes fácticos e políticos todos.

Sem isso, tudo é conversa fiada, sentimentalismo bacoco e caridadezinha classista

au bonheur des dames 489

d'oliveira, 02.07.19

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Ai aguenta, aguenta...

(a culpa é sempre do povo ingrato)

Mcr (Junho, 2019)

Uma secretariante estadual criatura entendeu vir anunciar a um grupo parlamentar que as filas de cidadãos à porta das repartições que tratam do cartão de cidadão eram culpa única desses mesmos cidadãos, perdão súbditos.

De facto, sempre segundo a surpreendente senhora, são os cidadãos que, ao juntarem-se em magote à porta do serviço com horas de antecedência em relação ao horário de funcionamento, fazem com que o serviço entupa.

Parece que, quando se começam a distribuir as senhas para atendimento, estas se esgotam num ápice e fazem com que cidadãos mais retardatários que entendem só dever procurar a repartição quando esta oficialmente abre ao público batam com o nariz na porta.

Ou seja, os cidadãos que, por imperiosas razões julguem ser seu dever renovar o documento de identificação, são os responsáveis pelo naufrágio. Eu não posso estar mais de acordo com a governante personagem. Os cidadãos são uma chatice medonha para quem carrega aos ombros a pesada cruz do Estado. Se não houvesse estas criaturas madrugadoras e sofredoras tudo se passaria no melhor dos mundos. E sem bichas!

Provavelmente também não haveria necessidade de passar o cartãozinho. Aliás, países há, não dos menores, que não impõem qualquer cartão aos seus indígenas. Todavia, neste jardim ocidental, neste “torrãozinho de açúcar” o malfadado papelucho é preciso por tudo e por nada. E não há documento que o substitua, mesmo se vier munido da fotografia do resinado íncola interpelado por uma qualquer (e são múltiplas...) autoridade civil religiosa militar ou outra, por exemplo o marçano da loja onde se vai por dois quilos de batatas e um litro de azeite.

Há neste país prodigioso ( e não será um prodígio o facto de enquanto meia europa sufoca encalorada, por cá sopre uma doce brisa primaveril que nos permite passear de cabeça descoberta e sem recear uma insolação?) um extraordinário hábito e que é este: a culpa é sempre dos outros, nunca nossa Ou então é o destino cruel, o fado antigo, algum malefício ou praga encomendados contra nós.

A ideia de que a passagem das quarenta para trinta e cinco horas de trabalho (uma justa medida há muito reclamada pelo povo trabalhador), o facto de haver uma crónica falta de pessoal em muitas repartições públicas, a insuficiência de meios técnicos adequados, as famosas cativações que nos irão posicionar num lugar cimeiro do deficit público – os melhores entre os melhores - é coisa que não perpassa pela ment iluminada da senhora SecretáriaBem pelo contrário: é a populaça ignar e vil que no seu descontrolado afã de obter um documento se amontoa num caos sem precedentes à porta dos Serviços exigindo em medonho murmúrio o documento de que, com descaramento inaudito, diz ter necessidade.

Isto, essa mole plebeia e mal educada que se levanta noite fechada para, ameaçadora, vir perturbar a paz pública, tem um único fito: perturbar a excelente governação da pátria que a pariu e levar a cabo uma campanha canalha contra o partido no poder, os seus amigos (ou amigalhaços? Ou ex-amigos?) com vista a fazer a nação valent e imortal voltar atrás, aos tempos da troika malvada, do dr Passos Coelho, agente do conservadorismo e relutante saudoso de tempos ainda mais antigos.

Não se percebe, porém, como é que uma outra Secretária de Estado, entendeu desmentir a primeira (caridosamente afirmando que as palavras desta tinham sido mal entendidas, fora do contexto, como de costume.

Em que é que ficamos?

 

Nem de propósito

Tina acabado a crónica acima quando a minha Mãe me pediu para ir levantar algum dinheiro a banco. A excelente senhora que está a muito poucos passos do 1º centenário não usa cartão e, de resto, por dificuldade de locomoção, prefere mandar os filhos levantar-lhe o dinheiro que precisa para pagar as empregadas e fazer as compras da casa.

Desta feita, quando cheguei à agência havia uma bicha de cinco ou seis pessoas diante da caixa. A pessoa que lá estava despachou um cliente e zarpou para outro local para entregar dinheiro a uns homens fardados de algum transporte blindado. E chegaram, entretanto, mais pessoas que resignadamente se dispuseram a esperar. Dez ou quinze minutos depois os seguranças lá partiram ajoujados, penso eu, ao peso das notas acondicionadas numas maletas de aspecto robusto. E a bicha começou a mover-se. Quando fui atendido e antes sequer de perguntar o que se passava, o caixa entendeu explicar-me que havia dois colegas de férias, que, de qualquer modo, a equipa da agência era reduzida, que o banco tencionava encerrar cem balcões (!!!) e que nós, os usuários e depositantes, tínhamos de “compreender”. Retorqui-lhe que o banco não é o Registo civil, nem nós os solicitantes de cartão de cidadão. Que se havia pouca gente que arranjassem mais. E que, à falta de podermos trocar duas amabilidades com o Presidente do banco ou sequer com o gerente que está sempre em lugar incógnito, era aos funcionários que exprimíamos a nossa indignação. E que se ele se achava inocente que informasse quem de direito, nem que fosse apenas o sindicato.

Tudo visto, despois do descaso dos poderes públicos, as instituições privadas , ou algumas, também acham que os utentes são os culpados do mau funcionamento e, sobretudo, uns chatos que só sabem resmungar e não apreciam como deviam o facto do banco generosamente lhes guardar o dinheiro que aí depositam.

* O título refere uma frase de um senhor banqueiro que interrogado sobre as dificuldades do povo e da sua (in)capacidade para as aguentar respondeu lapidarmente. E tinha razão...

Estes dias que passam 326

d'oliveira, 02.07.19

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Verão tímido, dias de preguiça

(e a morte ao longe)

mcr, Julho 2019

 

Já alguém deu pelo Verão? Estes dias de névoa matinal, temperaturas à volta dos vinte graus, sol raro desmentem o calendário. Quando era menino, nem um tempo destes me fazia perder a praia e o mar. Como se fosse (e era!) imune a estas temperaturas dúbias. Aliás o mar parecia mais quente (ou menos frio...) e a nós, os do grupo da “praia”, pouco se nos dava o mal humor do tempo. Férias eram férias, ponto final, parágrafo. E amanhã estará sol.

Será por ainda me lembrar desse “dolce far niente” que mesmo com vários textos escritos e prontos, nem um publiquei. Também é verdade que fui para Lisboa (este é um hábito mensal que consiste em visitar a minha excelente Mãe que, à beira de (per)fazer 97 anos está tão bem quanto lhe é possível. Perdeu (e isso é mais do que um desgosto, um autêntico drama) muita visão o que a impede de ler um dos seus prazeres e hábitos favoritos. Também ouve mal e anda com a ajuda de uma bengala. Mas a vivacidade está igual, mesmo quando se queixa, o humor e a auto-derisão continuam, vive sozinha (há uma empregada contratada para a acompanhar mesmo de noite mas, para já, a old lady mantem-na longe. ) e faz tudo. Só não sai de casa. Nós, os filhos, oferecemos-lhe uma cadeira de rodas com a vaga ideia de que assim poderia ir comer sardinhas assadas (e, no Inverno, cozido à portuguesa) onde isso se faz decentemente. Mas ela já não está para essas cavalarias. Vou tentar encontrar um restaurante perto onde em poucos minutos compre as sardinhas e as traga ainda quentes. Em casa ninguém consegue assar sardinhas na brasa. Nem os pimentos.

No resto, que ainda é muito, e para nós, filhos, netos e bisnetos, tudo, ela permanece. Como uma rocha!

 

E os textos no tinteiro, ou seja no computador, prontos a ser lidos por quem tiver paciência. Sairão hoje.

Mas antes, um pensamento, para o António Hespanha. Conheci-o em Coimbra, foi mesmo meu colega. Na altura não era exactamente, ou só, um militante católico. AH foi um dos rostos da Direita estudantil, fez parte das listas de Direita candidatas à direcção da AAC. Não foi o único a mudar de posição mas foi com certeza um dos que mudou com maior estrondo. Militou no PC uma boa dúzia de anos, o que, depois de Praga, do conflito sino-soviético, do gulag, de Maio de 68, é obra. Foi uma reviravolta de 180 graus.

Isso, todavia, não o impediu de criar uma obra histórica importante de exercer um mestrado de influência. O “Público” de hoje consagra-lhe duas inteiras páginas, com chamada e fotografia na primeira página e ele merece a homenagem. E não merece o apagamento biográfico e político discreto. Nós somos sempre tudo o que fizemos e pensámos. E isso nunca diminuiu ninguém.

Hespanha não foi o único intelectual de Esquerda vindo dessa Coimbra universitária de Direita dos anos sessenta. Bem pelo contrário, foram vários e relevantes os seus companheiros de percurso. Mesmo que lhes estranhemos a conversão tardia e depois de 69 (uns) ou de 74 (outros). Ou o recém-descoberto radicalismo que manifestaram. Também isso faz parte do mesmo processo de abandono de uma igreja por outra. Até se desvanecerem ambas. No meio do pântano onde tantos permaneceram, eles, pelo menos, tiveram a coragem das suas opiniões. E mais ainda, a coragem de as aabandonarem quando se deram conta da realidade.

*a gravura: casa de Curzio Malaparte, um escritor muito cá de casa, em Capri. CM é um exemplo do intelectual que mudou de opinião e disso deixou vivo e brilhante testemunho. A casa é um portento. pena não a poder mostrar melhor.