Au bonheur des dames 409
Coincidências, demasiadas coincidências....
mcr 29.Ago.19
O Ministério Público terá anunciado que iria requerer a dissolução do Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas por, na sua Assembleia Constituinte, ter participado uma pessoa que “não é trabalhador por conta de outrem”.
Vale a pena relembrar que o Sindicato está prestes a fazer um ano, que os seus Estatutos foram aprovados por todas as entidades competentes e que, até hoje, tem funcionado sem que a sua legitimidade tenha sido minimamente posta em causa.
Duas greves depois, várias violações governamentais e patronais da lei da greve depois, muito barulho, pouca razão e a brutal constatação de que de facto o salário real (o que conta para efeitos de subsídio de doença e de reforma) é uma vergonha e uma afronta, eis que agora, frente à ameaça de uma nova greve (desta feita ao trabalho extraordinário) marcada para daqui a um par de semanas, é tirada da cartola anti-sindical mais outra repolhuda lebre: o sindicato é ilegal, não está conforme às leis em vigor e padece de vício absoluto pelo que só a sua dissolução pode trazer ao país, ao patronato e ao Governo a tranquilidade necessária e a paz social.
(vá lá que ainda não foi desta que se cercaram os grevistas e se ameaçou liquidar essaescumalha a tiro de canhão ou se prendeu toda essa multidão indisciplinada e se conduziu o bando para os porões dos navios de guerra estacionados no Tejo como em tempos d saudosa e democrática 1ª República ocorreu. O dr Salazar e a sua gente levavam a coisa com mais cuidado: iam prendendo pela madrugada, à hora do leiteiro, os mal pensantes, arreavam-lhes forte e feio, extorquiam as normais condfissões de pertencerem ao partido bolchevista e punham-nos a bom recato numa cadeia por uns anos. Outros tempos, pelos vistos saudosos...)
Desconheço quantas pessoas estariam na Assembleia Constituinte do Sindicato mas, pelos relatos e pelos documentos fotográficos existentes, havia ali gente que chegasse para criar um, dois talvez mesmo três sindicatos. Estar lá ou não alguém exterior ao universo de trabalhadores por conta de outrem só tiraria sentido à reunião se esse ET ou o seu voto, ou a sua assinatura. fossem essenciais para o acto constitutivo.
Questão mais complexa será a de saber se na Direcção do sindicato cabem membros que não pertençam à profissão protegida. Que isto não é líquido basta o facto de ninguém (Ministério Público incluído – que, aliás, já se tinha pronunciado sobre outras questões legais mormente as relacionadas com a absurda requisição civil preventiva) ter questionado durante todo este empo a presença subversiva e perturbante de um agente do anti sindicalismo e da Constituição da República Portuguesa. Todavia, a presença tão tardiamente constatada dessa alma penada saída do 9º círculo do Inferno de Dante adquire agora o estatuto de ameaça que se atribuía – em vida – ao senhor Bin Laden.
(nota à margem: o mesmo Ministério Público ou o seu Conselho Consultivo demorou um dia para decidir da bondade da aplicação da requisição civil preventiva e já leva um larguíssimo par de semanas para saber se os os negócios de familiares de ministros com o Estado estão ou não dentro da lei... Por este caminho se parecer houver ele só aparecerá depois das eleições. E, mesmo nesse caso, das duas uma: ou é homologado e produz algum efeito ou nem isso. A homologação depende do 1º Ministro de um Governo que, pela voz de vários dos ministros e apoiantes tem qualificado a lei de absurda...)
Sobre a momentosa questão de saber se na Direcção de um sindicato, ou de qualquer outra estrutura sindical, regional ou nacional, pode estar alguém que na prática esteja por completo desligado da actividade, lembraria que são às dúzias, aos quarteirões, os sindicatos representados por sindicalistas cujo único emprego conhecido nos últimos, cinco, dez, vinte anos é o de dirigente sindical. A burocracia sindical das duas grandes confederações existentes está cheia deles e nunca vi alguém questionar estes, de facto, ex-trabalhadores que algumas vezes tem mais anos de actividade sindical do que de trabalho por conta de outrem.
Mas este é um território minado. Quero com isto dizer que, nos tristes tempos que correm, há operários bons e sindicatos bons e operários perversos e sindicatos malignos que só querem o mal de Portugal e dos Portugueses. As organizações patronais acarinham os primeiros, celebram acordos com eles (magros acordos, está bem de ver, mas acordos) e arrepelam-se à simples ideia de se sentarem à mesa com os díscolos, sejam eles enfermeiros, estivadores ou camionistas que transportam matérias perigosas.
Claro que isto não ocorre só no “torrãozinho de açúcar” pastoreado por Costa. Em França a história sindical está pejada de “sindicats-maison” e, muito recentemente nos Estados Unidos, uma empresa de capitais chineses que reergueu das ruínas uma fábrica de componentes auto numa das antigas capitais do automóvel já avisou os seus trabalhadores americanos que não permitirá a “entrada do sindicato”. O senhor Trump, tão defensor da America great again e tão crítico da Chin, está, neste capítulo, mais calado que uma ostra melancólica...
Não me vou atrever a afirmar que no cerne disto tudo está a figura baça do dr. Pardal Henriques que se tornou o espantalho de toda a boa consciência nacional. A criatura não me suscita qualquer espécie de simpatia mas incomoda-me pouco. Todavia, para certos tenores pífios da comunicação social e do “Comentariado” político, o homem é o diabo reencarnado em advogado gordo e óculos. Até o dr. Marques Mendes o elegeu como o “pior da semana” num dos seus melífluos sermões dominicais. Eu bem sei que a opinião de Marques Mendes vale o que vale e influencia quem influencia e pesa o que pesa. (Não é “professor Marcelo” quem quer mas apenas quem pode e Mendes pode muito pouco. Nunca se deve comparar um açor com uma galinha pedrês com vontade de voar).
Eu, quando vejo tantos assanharem-se contra um simples mortal, mesmo gordinho, mesmo de óculos grossos, mesmo atrevidote, desconfio. Quando a sanha parece atingir as instituições que nos deviam proteger e defender, relembro a celebre frase “qui custodiet ipsos custodies?”, que, no caso, se poderia traduzir “quem nos guarda dos nossos guardas?” Estou à vontade neste capítulo porquanto, quando tudo e todos se atiravam ao Ministério Público, eu, por aqui, várias vezes, tomei a sua defesa. Lamento muito, mas agora, a coisa parece-me demasiado política, demasiado inquisitorial para aceitar sem mais este aviso de acção contra um sindicato. Como se isso pretendesse dizer que é na praça pública que estas questões se julgam e que deste princípio de acção já saiu, pelo menos para a opinião pública, a condenação de perverso sindicato e do seu advogado. Convenhamos que para calar 1800 motoristas num universo que engloba mais de 30.000 anda por aqui muito fogo à peça, muito obus, muita metralhadora e muita, mas muita, raiva...
Arre!
*a ilustração: o Inferno de Dante