au bonheur des dames 413
Retrato a sépia de um país à beira da resignação
mcr 24.10.19
Estas eleições recentes e os dias que se lhe seguiram deixam em quem vive diariamente o país por cuja dignidade (e dignificação) lutou em tempos sombrios um laivo de amargura que não se desvanece mesmo se, por vezes, haja pormenores que não podem ser levados a sério.
Comecemos por aquela senhora candidata do PAN que numa entrevista parecia incapaz de explicar o programa do partido. Não pela eventual complexidade do mesmo mas porque, pura e simplesmente, dava a ideia de não o ter lido.
Os espectadores viam-na rir-se tontamente e não acreditavam no deprimente espectáculo a que assistiam. O povo generoso e ignorante tê-la-á premiado elegendo-a.
A senhora “coordenadora” do Bloco de Esquerda afirmou sem se rir que o BE não tinha sido derrotado. À uma porque conservava o mesmo número de deputados. Depois, porque, segundo ela, em vários círculos a percentagem de votos na sua formação teria aumentado.
Ou seja, cinquenta mil votos a menos significam nada!
Haja quem explique à boa senhora que aumentar a percentagem quando o quadro é de aumento da abstenção pode nada significar. Basta saber alguma matemática, ter uma pequeníssima noção de estatística e, sobretudo –sobretudo- não querer atirar areia para os olhos dos portugueses.
O BE e o PCP, outro perdedor claro (100.000 votos!) parece quererem transmitir ao público a ideia de que foram eles que impediram a maioria absoluta do PS. Obviamente não impediram nada tanto mais que os votos a mais do PS vieram provavelmente das perdas que eles registaram.
O PPD/PSD disparou em todas as direcções para justificar uma claríssima derrota. Se é verdade que os quezílias internas ajudaram à festa, não menos verdade é que o percurso errático de Rio não suscitou qualquer espécie de entusiasmo nos eleitores potenciais que, eventualmente transferiram votos certos no partido para a vitoriosa Iniciativa Liberal e para a calamitosa Aliança do dr. Santana Lopes, um homem sem norte que já merecia uma tranquila velhice na reforma. Ao que parece, a criatura nunca mais se candidatará ao Parlamento. Em boa verdade, eleições só haverá eventualmente daqui a quatro anos pelo que todos os cenários são possíveis, desde o da Aliança já não existir (se é que actualmente existe...) ou de uma morte indesejada mas misericordiosa acompanhar a morte política do cavalheiro.
O PCP é de certo modo o retrato de um país envelhecido. Cada idoso que desaparece é, eventualmente, um eleitor a menos. Como a natalidade é o que se sabe, o “partido” enfraquece. E vê, aterrado, como os seus homólogos por esse mundo fora, desapareceram sem que se verificassem grandes prantos ou algumas saudades.
É verdade que a China, a Coreia do Norte e Cuba andam por aí. A primeira leva a cabo uma política de expansionismo capitalista que choca com os EUA. Qualquer milionário chinês que se preze é membro do PCC e até no comité central há muitos exemplos disso. Convenhamos que, mesmo se a ditadura permanece, o proletariado já foi.
Na Coreia é o que se sabe: uma dinastia instalou-se no poder de pai para filho, deste para o neto e não se vê nesta curiosa história de terror instalado e bombas atómicas em fabrico nada que nos recorde Marx, sequer Lenine ou mesmo Mao. (só o “nosso” “partidão” não o vê mas isso é pura cegueira devida ao autismo e à idade avançada)
Aliás um bom retrato deste PCP foi-nos indiscretamente dado pela televisão a propósito de uma reunião de quadros no Porto. Uma sala não demasiado grande cheia de cabeças brancas!
O PS apresentou um Governo a que só por cortesia se pode chamar “novo”. Desapareceram os laços familiares. Por um lado, Vieira da Silva deve ter achado que os seus 66 anos lhe dão direito à reforma enquanto Cabrita, um ministro tão discreto que as pessoas perguntam para que serve, vê com evidente desgosto e redobrado azedume despedirem-lhe a esposa amada.
Em boa verdade, Ana Paula Vitorino era dez vezes melhor do que o cônjuge e deixa, mesmo que algumas críticas se lhe possam ser dirigidas, obra importante.
Porque é que a defenestraram? Ou o simples facto de o marido ser um velho e próximo compincha do Primeiro Ministro pesou na escolha desta espécie de sentença salomónica e, aliás, muito tradicional por cá. (à mulher a casa, ao homem a praça).
É verdade que Cabrita debitou nas redes sociais um comentário furibundo. Não se demitiu claro. E, mais surpreendente ainda, ninguém o demite! Mesmo quando a criatura põe em causa a formação do Governo!...
Ninguém consegue explicar a manutenção da Ministra da Saúde. Marta Temido parece imune ao desastre do SNS. Ainda por cima, tem uma péssima presença na comunicação social e uma confrangedora falta de argumentos.
Também ninguém consegue entender a permanência da dr.ª Graça Fonseca ao volante da Cultura. Ou entende-se demasiado bem porque lá está, mesmo sem se recorrer à absoluta fidelidade ao Primeiro Ministro. Também nunca se entendeu como é que a senhora chegou ao poderoso coração do partido. O PS é useiro e vezeiro em mistérios destes quando toca ao Ministério da Cultura. João Soares, Manuel Maria Carrilho ou Luís Filipe Castro Mendes para só falar nestes (e esquecendo a srª Canavilhas outra miragem) tem aqui uma digna sucessora. Só que mais ignorante...
A cereja no topo do bolo é o número desconforme de ministros e secretários de Estado. 19+50, eis algo que desafia a imaginação sobretudo se pensarmos que todas estas luminárias teráo assessores nos seus gabinetes. Depois, perdoem se me engano, ainda ninguém conseguiu explicar onde começam e onde acabam as competências reais e a possibilidade de agir, de uma boa dezena de Secretários de Estado que gerem áreas próximas, as mais das vezes secantes. Os conflitos surgirão. Ou então nada se passará porque nada se poderá coordenar com tempo, eficácia e baixo custo.
(uma amiga minha, demasiado à esquerda para meu gosto mas inteligente e sardónica q.b., jura que havia que premiar um ror de pessoas. Um cargo no Governo pode não ser muito gratificante do ponto de vita financeiro mas dá currículo hipóteses de futuro no privado, no semi-privado e no semi-público.
Não vale a pena referir dois senhores juízes no Governo. Os denunciantes da judicialização da política bem que se podiam entreter na doméstica politização da judicatura... E os sindicatos & restante comandita dos magistrados nada dizem! É obra!
Convicto de que nasceu para salvador do mundo, o dr. Rio vai à luta. E promete gerir a bancada parlamentar até ao congresso do partido. Mesmo para quem, como eu, que nunca passou nenhuma certidão de óbito ao ex-presidente da Câmara do Porto e sempre o considerou resiliente (abominável palavra!) ou meramente teimoso, há que considerar que Rio é presunçoso (“aprés moi le deluge) até dizer basta. Não admira que tenha criado anticorpos em quantidade (já em qualidade é mais duvidoso...).
No CDS em vez de dilúvio temos o deserto a perder de vista. Ninguém se chega à frente! Ainda acabaremos de ver o senhor Manuel Monteiro (coveiro dos centristas noutros tempos) a candidatar-se.
Convenhamos que seria divertido se não fosse também um retrato a sépia de um país exausto.