au bonheur des dames 418
Aventuras da Desrazão
mcr 29-XI-19
Depois da surpreendente teoria do salário mínimo nacional dever ser definido à base do amor (e amor caro, amor a 900 euros mensais...) eis que a deputada Joacine Katar Moreira “contrariando uma das marcas genéticas do LIVRE” se absteve num voto sobre Israel. Notem que a criatura até estava de acordo em condenar. Mas não o fez por ter havido um problema “de comunicação” entre ela e o famigerado grupo de contacto (parece ser este o nome da direcção do partido). Ou seja, além da gaguez física há estoutra gaguez intelectual. Vejamos: se o LIVRE dá (como afirma Rui Tavares) uma grande liberdade aos seus eleitos, se os eleitos são a favor da condenação de Israel (e neste caso da ocupação de territórios árabes exteriores às fronteiras definidas e reconhecidas internacionalmente) por que bulas a conhecida senhora se abstém?
Eu, desde o primeiro dia, entendi que JKM funcionava em roda livre e que se considerava uma diva e pensava ser (mal, mas já lá iremos) a única responsável pelo seu lugar no Parlamento. E da cenografia que marca cada passo que dá nos “passos perdidos”, incluindo os de polícia ao lado para afastar os maldosos jornalistas. Nos meus tempos de menino e moço, falava-se muito da “sociedade do espectáculo” numa adaptação demasiado livre das teses “situacionistas”. “Mal comparado” eis-nos na dita situaçãoo! Credo!
Conviria lembrar à Sr.ª Moreira que ela só senta o dito cujo na AR porque um partido chamado LIVRE a candidatou. Sem ele, ela continuaria feliz e desconhecida do povo português. Passo por alto o curioso sistema interno que alavancou a sua ida para deputada mas, tendo em conta a pequena e divertida história do LIVRE, tudo ali parece possível incluindo até o fazer política.
Também recordaria, se é que a coisa tem alguma importância que, ao contrário do que Joacine afirma, a sua eleição teve os seus pontos mais fortes nos bairros ricos de Lisboa (Belém, por exemplo) e não naqueles onde as minorias “perseguidas” pelo racismo existem e, eventualmente, votam. Os bairros “pobres e problemáticos” deram o lugar ao Sr. Ventura, esse representante (segundo o falecido camarada Dimitrov) da “ditadura terrorista do capital”. (os leitores mais avessos à história do comunismo em geral e do Komintern em particular perdoarão esta minha mania de referir uma história que até o PCP - et pour cause - já esqueceu convenientemente).
Perguntarão as leitoras e leitores (se posso usar imodestamente este plural) que interesse terão a média e alta burguesias lisboetas em catapultar uma “esquerdista” em vez de darem o seu aval às tradicionais forças que as representam (PS, PPD ou CDS). Em poucas palavras diria que para uns o PS se esquerdizou demasiadamente graças à “geringonça”, que o PPD já não sabe a quantas anda com um dirigente vinda da província nortenha e com sotaque tripeiro (oh que horrorrrr!!!) e que o CDS se perdeu num optimismo “crístico” depois de ter obtido um bom resultado nas autárquicas. Num palavra, o CDS parece querer imitar o sapo que inchou demasiadamente sem perceber que lá dentro só havia ar e vento. O LIVRE era pois uma escapatória simpática depois desse lugar já ter sido ocupado pelo BE que, também ele, vai buscar os seus votos à “gente educada” e bem posicionada na vida, na Academia, nas artes e nos costumes.
Tenho por mim, que ninguém esperava uma eleição do LIVRE que, na realidade é mais um epifenómeno a juntar a outros. Dir-me-ão que poderiam ter optado pelos liberais (e também isso ocorreu, aliás). É até provável que para a próxima vez estes aumentem o seu score (como inevitavelmente ocorrerá com a gentinha de Ventura). Basta apenas que mantenham uma posição clara, de bom senso na AR. São os eleitores que pagam os impostos (e que impostos!) que aderirão com mais facilidade às teses da Iniciativa Liberal, como serão os eleitores de menos posses que se sentem ameaçados por comunidades imigrantes e ciganas que aumentarão o espólio do CHEGA. A Direita Extrema (não vou ainda usar a fácil terminologia de “fascista”) existe, sempre existiu mas só agora, como em várias outras geografias europeias, sente um desejo de segurança e um medo, muitas vezes, irracional. O “mainstream” político europeu (social democrata e conservador) não tem sabido ou podido responder às angústias, inquietações ou medos de uma parte da população que começa a descrer da “Europa” e muito mais do multiculturalismo emergente que põe em causa uma herança cultural que não se resume à “igualdade, fraternidade e liberdade” herdadas da Revolução Francesa. O século XX, com o seu tremendo e trágico cortejo de regimes fascistas e comunistas, com o abrandamento económico actual com a decrescente natalidade, com a difícil reintegração das sociedades de leste, parece propício a este fenómeno de abandono de uma certa democracia ocidental, de algum liberalismo temperado por políticas sociais avançadas desenvolvidas pela social democracia (e por alguma democracia cristã com fortes preocupações sociais).
Com a queda da União Soviética minada pelo desastre económico e financeiro, pela escassez de bens de consumo, pelo descrédito em que a sua “nomenclatura” tinha caído, o comunismo deixou de ser uma força actuante na Europa Ocidental (particularmente na França e na Itália onde os pc locais tinham uma fortíssima posição no parlamento, nos sindicatos e nas elites intelectuais ).
Os últimos anos 60 e toda a década seguinte marcaram claramente o fim da influência de Moscovo mesmo se isso tivesse sido mascarado pela irrupção do Maio de 68, pela guerrilha ideológica “pró-chinesa” ou pelos movimentos “anti-autoritários”. A URSS foi substituída no imaginário intelectual de alguma juventude mais aguerrida por Cuba, pela China e pelo Vietnam. Infelizmente nenhum destes modelos durou mais do que um suspiro. Cuba ruiu depois de andar ao colo dos russos durante duas décadas, a China foi sepultada pelos milhões de vítimas da revolução cultural (que acresceu aos desastres das “cem flores” e do “grande salto em frente” e o Vietnam mostrou depois da vitória a sua face menos agradável na relação com o resto dos países da Indochina mas também pela tragédia inominável dos “boat people”.
É deste desabar ideológico que se foi agravando até ao fim do século XX que começam a despontar as variadas novas formulas esquerdistas que, aliás, foram paralelamente acompanhadas pelo renascer mesmo se diferenciado das direitas derrotadas durante a 2ª Grande Guerra.
Portugal não escapou (como escaparia?) a esta nova desordem política. Houve sempre um núcleo de Esquerda radical (inclusive no Parlamento não só com a UDP mas também com pequenas correntes dentro do PS que foram sendo pouco a pouco varridas para o exterior (os sequazes de Manuel Serra ou o POUS) e para a inoperância. A isso, conviria acrescentar as depurações dentro do PC (de onde saíram para o PS e para o BE grupos mais ou menos organizados que no caso do último foram mesmo fundamentais para o crescimento e êxito eleitorais registados nas últimas décadas. O PS devorou mais de meio MES, arregimentou toda uma série de ex-comunistas notórios deixando para o PPD e para o BE a pesca à linha de ex-maoístas, ex- trotskistas e antigos militantes católicos” em ruptura.
Não deixa, aliás, de ser curioso, e sobretudo irónico, que Joacine, imite (ou esteja perto de imitar), talvez sem querer, Rui Tavares que, eleito pelo BE, cedo se desprendeu mas manteve o seu lugar no Parlamento Europeu. Isto ao arrepio daquele mínimo ético que mandaria o eleito em ruptura a abandonar o grupo que o elegeu e o cargo que a ele deve.
Não admira pois que num artigo confuso (no Público) Tavares se embrulhe ao tentar explicar o que se passa entre a estrela que ele ajudou a criar e o partido em que ambos eventualmente militam. Todas as restantes e notórias notícias que vem do pequeno partido são espadeiradas na água e entram ousadamente no ridículo e na crónica bem humorada do “fait divers” Quando não é assim e recorrem a um agente da autoridade para proteger o sacro descanso político e a vacuidade ideológica da deputada fazem prever uns “amanhãs que cantam” demasiado sinistros. Enquanto o deputado Ventura fala aos polícias a senhora deputada já os vai usando para repelir jornalistas curiosos...
Les beaux esprits se rencontrent.
* na estampa:colonato invasor da terra palestiniana cercado por um muro que lembra outros não tão recentes.