O leitor (im)penitente 213
Prendas para amigos leitores
(recordando uma leitura que dura há cinquenta anos, quase dia por dia)
mcr 7-11-19
Deveria dizer: prendas para leitores comprovados. Poderão avisar-me que já não há disso. Retorquirei que, se bem que raros e em vias de extinção, ainda andam por aí como aquele cavalheiro que ameaça continuamente retirar-se da política mas que não resiste e volta a chatear o indígena, uma e outra vez.
Os leitores persistentes não mereceriam esta comparação mas, na verdade, tirante a personagem, as coisas passam-se mesmo assim. O verdadeiro leitor nunca desiste. Agarra num livro, lê três linhas, brilha-lhe o olho e, zás!, aí vão duas páginas sem parar. E sai com o livro, mais leve de algibeira mas com o coração alanceado desejando estar já em casa, quentinho, num cadeirão pronto a ler e, por isso, a escrever uma nova história que não exactamente a do autor. Se o não consegue, das duas uma: persiste, teimoso e arrasta-se pela leitura até ao último ponto final; ou então irrita-se, agarra no livro, e mete-o na estante dos desistidos (é o meu caso: à página 20 cai a sentença. Sim e vamos até à última página desejando que outras tantas a continuem ou deixamos aquilo no sítio em que ficamos enfartados. Até já me aconteceu acabar um livro e, sem intervalo, recomeça-lo. Não foram muitas as vezes, é verdade mas ainda recordo a primeira vez que li Camilo José Cela, um galego apanhado pelo Nobel. O romance chamava-se “mazurca para dos muertos”. Comecei-o pouco depois do jantar e, no dia seguinte pelas seis da manhã acabei-o. Cinco minutos depois, constatando que já não valia a pena dormir, reabri-o na página e e aí vai disto...
Cela tinha mau feitio mas escrevia muito bem e devem-se-lhe duas boas dúzias de excelentes obras entre romances e livros de viagens (a viagem a Alcarria está aí para o mostrar). Foi também o director de uma belíssima revista “Papeles de son armadans” que deu guarida a muitos jovens escritores furando o bloqueio franquista, coisa que, depois do prémio, a inveja de alguns zelotas, quiseram esquecer, obliterar ou negar.
Isto vem a propósito de uma antiquíssima descoberta. Corriam os anos cinquenta, aliás, estvamos em 59 e eu, ainda liceal, fazia anos dali a dias, e uma namoradinha ofereceu-me (melhor dizendo: permitiu-me escolher) “A retirada dos 10.000” de Xenofonte na saborosíssima tradução de Aquilino Ribeiro. Depois da primeira leitura, achei que devia gastar uma dinheirama valente e mandei encadernar o livro. E em boa hora o fiz que pois foram muitas as vezes em que voltei a essa alucinante aventura de uns milhares de mercenários gregos, contratados por um pretendente ao trono, vivida numa retirada de milhares de quilómetros, entre povos desconhecidos e pouco amistosos. Tudo isto na desordem das assembleias a cada passo, por alguma coisa a democracia fora inventada na Grécia, pelos truques, pelos discursos, pelas manifestações de heroísmo, pela descrição de paisagens e geografias diversas até ao momento entre todos desejado do avistamento do mar (Thalassa, thalassa!, eis a expressão que se tornou imorredoira).
Entretanto, já neste século, encontrei num alfarrabista, um exemplar da Retirada. Resolvi oferecê-lo a um amigo. Encadernado em meia francesa, salvo do ar cansado, graças a uma aparadela ligeira, entreguei-o ao destinatário. Dias depois, este, telefonou-me maravilhado. Estava a terminar o livro e já tinha saudades dele. Assim começou um hábito que tenho mantido. Sempre que encontro um exemplar da obras, compro-o, mando-o encadernar e escolho o “freguês”. Já lá vão 11 e até ao fim do ano serão treze os escolhidos. Não sei o que me dá mais prazer: se os agradecimentos se o acto simples de dar.
Hoje, visitei um velho amigo hospitalizado. Já estava na lista há tempos mas a ocasião ainda não se proporcionara. De uma vezada matei dois coelhos com a mesma cajadada. Cumpri um mandamento da Igreja (visitar os enfermos) e oferecer a “Retirada...”
Pensando bem: foram três coelhos. Já me tinha esquecido do meu prazer em oferecer...
* A Retirada tem por verdadeiro nome Anabase termo grego que, segundo Aquilino, no prefácio, significa “marcha para o interior”.
** Creio que a ilustração é da autoria de Júlio Gil que é o responsável pela minha edição e datada de 1957 na tiragem especial de 300 ex em papel especial Alfa, exemplar nº 298 assinado pelo tradutor .