estes dias que passam 329
“É preciso dar força à razão para que o acaso não governe nossas vidas”
(Cavaleiro de Oliveira)
mcr 31.12.2019
Leitoras e leitores que me aturam mais do que mereço. Desejo-vos um bom ano de 2020 que, por mais bissexto que seja, vem carregado de esperanças e avisos.
Se as primeiras são sempre bem-vindas, os segundos devem ser tomados a sério.
Nos últimos dia, os jornais encheram-se de previsões. Conviria olhá-las de soslaio e não levar demasiado a sério o que, muitas vezes, não passa de apressada futurologia.
Se ´verdade que do correr dos dias há situações previsíveis, quase inevitáveis, também não é menos verdade que há muitas coisas que podem ocorrer mercê de acontecimentos que estão para lá da normal previsão. Ninguém esperava que o vale do Mondego, agora tão castigado e sempre tão abandonado dos poderes centrais se convertesse naquele imenso mar de água a cobrir quase vinte mil hectares de terra boa e fértil. É verdade que alguém, um ministro não ouviu quem pedia uma barragem. Parece que achou aquilo um gasto inútil (sempre veremos se o que poupou d´para compensar o imenso prejuízo destes primeiros dias de invernia...) e que com um simples riscar de aldeias do mapa actual tudo se resolverá. O senhor ministro tem uns tiques estalinistas e um modo autoritário de olhar o mundo que nos fazem temer um qualquer novo plano quinquenal a juntar ao deslocamento forçado de populações. Para um recém chegado ao partido socialista a criatura tem assomos soviéticos dos anos trinta que nunca passariam pela cabeça de qualquer social-democrata. Enfim, a cada um a realidade segundo o olhar enviesado que terá.
Promete-se para o ano que entra daqui a uma dúzia de horas um orçamento com superavit. Eu, velho, cansado e cínico, já me contentava com um deficit ligeiro sobretudo quando se verifica que os saldos orçamentais sempre se fizeram à custa de menos e piores serviços públicos essenciais. É verdade que, neste capítulo, e sobretudo na saúde, anda a promessa de despejar mais 900 milhões. E com isso pagar as dívidas em atraso, contratar muitos médicos, muitos enfermeiros e mais, muito mais pessoal. É bom lembrar que talvez seja preciso saber se há candidatos em número suficiente (e não tem havido...). Seria também bom saber se a gestão do parque público de hospitais vai mudar, se o ministério das Finanças vai entregar a tempo as verbas necessárias. É sempre bonito saber que as taxas moderadoras vão ser eliminadas. Já agora também seria bom reconhecer que estas taxas tinham mais o objectivo de dissuadir a corrida às urgências do que arranjar mais uns dinheirinhos. A corrida às urgências vai manter-se e o travão das taxas não estará lá para a controlar. É bom saber que os serviços locais de atendimento vão ter maior amplitude horária (e maior custo). Será que os longos entupimentos destes serviços desaparecerão e isso encorajará as pessoas a renunciar à corrida aos hospitais?
A imprensa e a televisão fizeram-se eco das conclusões do Tribunal de Contas sobre os resultados das parcerias público-privadas no caso de alguns hospitais. Tudo visto, o Estado economizou, no mínimo, trinta milhões de euros num só hospital. A má notícia é que essa parceria vai acabar. Outras duas já acabaram por os privados entenderem que não tem condições para continuar. Em boa verdade, os actuais responsáveis (se é que a actual senhora que faz de ministra pode ser considerada responsável...) na ânsia de controlarem tudo ainda não perceberam que, sem os sectores privado e social, o caos actual e o desastre a que se assiste seriam ainda maiores e mais graves. E contra os menos protegidos de quem eles se arrogam a representação.
Um orçamento com superavit só deveria ser alcançado se isso não representasse, como tem representado nestes anos de Centeno, um feroz ataque ao investimento público (inferior inclusive ao dos anos Passos Coelho) e em sectores críticos desde a saúde à educação, uma falecida ambição de Guterres.
Não perceber ou fingir não perceber o país que somos e temos, sobretudo desde a perda do Brasil, não é só ignorar a História, e também dispensar qualquer noção de Economia.
O “milagre das rosas” da diminuição do deficit tem sido alcançado com captivações e não com uma racional diminuição da despesa.E bom será que se recorde aos mais optimistas que o mesmo resultado tem como base uma carga fiscal sem precedentes que engrossando a receita não tem efeito no investimento público ou na maior/melhor racionalização dos gastos do Estado.
Há quem encha a boquinha mimosa com uma aproximação à Europa só porque percentualmente estaríamos uma décima melhor do que p.ex. a França. É bom lembrar que 0,3%de 10 não é igual (nem aproxima) quem tenha apenas 0,1de 30 ou de 40. Recorram à aritmética da antiga 4ª classe, hoje tão fora de moda e de memória.
Também seria bom não tentarmos ver nos nossos êxitos, por vezes passageiros, algo melhor do que realmente é. Estamos à inteira mercê das tempestades políticas, económicas e financeiras que eventualmente se possam abater sobre o mundo ou apenas sobre a Europa. E com menos meios (que não sejam a inércia e a pobreza) do que muitos outros países nossos directos concorrentes.
Até o oásis turístico em que, por força de situações dramáticas na bacia mediterrânica, nos convertemos trouxe como consequência uma tenaz, acentuada e obstinada subida de preços na habitação nas grandes cidades e no litoral algarvio. E daí também uma falta de médicos e professores que não podendo pagar os arrendamentos nessas terras deixam vagos postos em hospitais e escolas. “Estamos na moda”, diz-se. É provável mas a moda muda constantemente e passa tão depressa como a “linha saco” nos vestidos das mulheres ou as “calças em boca de sino” mos cavalheiros. Se é que alguém se lembra disso...
O ano que entra pode não ser uma absoluta incógnita mas nem o Orçamento, nem as previsões, nem os votos pios são favas contadas.
De todo o modo, Bom Ano para todos ou, pelo menos, que não seja pior do que este que hoje termina.
E gozem os fogos de artifício que são a mais cabal demonstração do modo estúpido de queimar dinheiro.
*republica-se a fotografia das cheias do Mondego pois as águas ainda não foram embora. E teme-se que não o façam tão cedo.