Estes dias que correm 331
Sentimentos diversos
mcr, 31 Jan 2020
Lá se vai a Grã Bretanha e por cá ficamos nós, os “mais antigos aliados”, título um tanto ou quanto ridículo e nem sempre conforme à realidade histórica. A mais velha aliada serviu-se bem de Portugal, basta lembrar o desigual tratado de Methwen. É bem verdade que o duque de Wellington andou por cá a ajudar no combate aos franceses mas é bom lembrar que isso não se deveu aos nossos lindos olhos. A Inglaterra (simplifiquemos o nome) tinha uma guerra antiga com Napoleão e Portugal foi um ocasional campo de batalha. Raras vezes os interesses nacionais coincidiram com os da poderosa aliada, basta lembrar as condições (ou a ausência delas) no acordo de retirada de Junot que levou tudo quanto quis, um saque que ainda hoje é visível no “Cabinet de Lisbonne”. Isto sem contar as riquezas imensas roubadas a palácios e conventos portugueses.
Depois, Beresford governou esta “quase colónia” com mão de ferro e foi com dificuldade que se resolveu a regressar a penates.
Não vou citar o “Ultimato” porquanto aí, é bom que se diga, o nosso famigerado “mapa cor de rosa” era uma aberração. Não exercíamos qualquer espécie de ocupação efectiva naqueles territórios do hinterland africano, sequer em muitas das partes de Angola e Moçambique. A indignação nacional contra o governo inglês, e todo o folclore ridículo que a acompanhou, apenas serviu ao Partido Republicano que, de pequeno grupo de cavalheiros, passou a uma organização de massas por ter cavalgado a histeria nacional e o patrioteirismo consequente.
Mais tarde, há a nebulosa negociação secreta sobre as colónias portuguesas, no início do século XX. Ainda hoje se discute o alcance da alegada divisão entre britânicos e alemães e qual o conhecimento que o Governo Português teria dessa negociata. É verdade que, a certa altura, se afirmou que, para abortar essa espoliação, se entrou na !ª Grande Guerra. Pode ter sido um dos motivos mas tudo leva a crer que os “guerristas” queriam sobretudo legitimar a jovem República.
Todavia, entrou-se no conflito, e passámos a vergonha de ver o famoso CEP (o nosso Corpo Expedicionário) ser transportado para a Flandres em barcos ingleses, nas condições impostas por estes, ser fardado por ingleses e, vergonha última, ser treinado por estes provando-se assim que o famoso “milagre de Tancos” (o primeiro claro, não esta ridícula revista à portuguesa que agora corre seus termos na justiça) era sobretudo um embuste. A participação nacional no conflito, seja na Flandres seja nas duas frentes africanas, não abona especialmente a glória pátria mesmo se, se possam citar alguns notáveis actos de heroísmo individual. Frente a eles, temos a passeata do general von Lettow por uma extensa e profunda área do Norte de Moçambique sem que as forças portugueses em muito maior número tenham conseguido impedi-la e muito menos vencê-la. É bem verdade que esse mítico general alemão bateu todos os generais (17) e um marechal que comandavam forças absolutamente superiores e que só se rendeu depois do armistício. Leiam-se as suas “memórias” (há uma velha tradução portuguesa eventualmente disponível em alfarrabistas) e os recentes estudos publicados por cá.
Tudo visto, a “aliança luso-britânica” é mais um nariz de cera do que uma realidade interessante e útil. Digamos que isso, a aliança, é um pouco a ilustração da história dos dois potes, o de ferro e o de barro (nós).
No entanto, o Reino Unido tem sido, nos últimos tempos, um dos principais destinos da nossa emigração e contam-se por centenas de milhares os portugueses que lá encontraram trabalho e condições de vida. E reside aí a maior preocupação imediata para Portugal. É que, a partir do final do período de transição, os portugueses com menos de cinco anos de estadia serão estrangeiros num país estrangeiro.
Curiosamente, os jornais de hoje noticiam o facto mas comentam-no parcamente. Em boa verdade, comentários e profecias de toda a espécie não faltaram durante estes anos que se seguiram ao desastrado referendo que iria acabar de vez com as veleidades anti europeias. Depois dessa primeira decepção que pr muito rural que fosse permitia o “Brexit” contra as elites cultas e jovens, o governo conservador (com uma preciosa ajuda dos trabalhistas eles mesmos pouco entusiastas quanto `pertença à União) conseguiu sabotar-se a si próprio e transformar uma eventual maioria anti-saída numa minoria. É aqui que entra em cena Boris Johnson que, puro produto de Eton e de Oxford, com um passado de vida extremamente cosmopolita, entendeu cavalgar a onda da saída. Houve muitos que o quiseram comparar a Trump que, esse sim, não passa de um ignaro milionário da construção civil incapaz de articular três frases seguidas com algum sentido e elegância. Tenho até alguma fundada dúvida de que Johnson seja um homem dos americanos pelo no sentido que um que outro encartado comentador deu dele.
A verdade é que ninguém, neste momento, sabe como é que tudo isto vai evoluir. Pareceu-me perceber uma vingativa esperança de que a Escócia e a Irlanda do Norte batessem com a porta e regressassem ao seio da “Europa”.
Gordon Brown, um escocês com enorme experiência política afirmou durante a campanha do referendo independentista escocês que , para além do laço fortíssimo da língua comum, havia por todo o lado, no mundo, cemitérios em que estavam irmãmente inumados soldados ingleses, escoceses, galeses e irlandeses. E isso pesava e pesa muito.
Tudo irá depender do comportamento da economia, por um lado e da Inglaterra (em sentido estricto) por outro. Que as coisas, num primeiro tempo, irão ser mais difíceis e complicadas é uma evidência. Depois, logo se verá como correrão as negociações até ao fim de 2020. Se é ou não alcançável um acordo que seja aceitável por ambas as partes. Tal não parece, pelo menos à partida, uma impossibilidade. Há demasiados laços não só económicos e culturais que terão o seu peso. A Europa (geográfica) é demasiado pequena para alegre e tolamente se auto-suicidar frente à China, ao Japão e aos Estados Unidos.
E seria bom que, mesmo reconhecendo alguma arrogância (que aliás sempre existiu) nos britânicos se olhasse para o umbigo europeu e se tentasse fazer um exame de consciência sério e capaz de preparar o futuro. A União poderá ter crescido demasiadamente depressa e sem olhar aos desequilíbrios regionais que hoje parecem tão evidentes. Pessoalmente, mesmo sem simpatizar com os ingleses, sinto-me mais próximo deles do que de húngaros ou polacos. Ou eslovacos e romenos. A começar pela reacção destes aos emigrantes sejam eles quais forem e a acabar no nacionalismo populista e serôdio que ostentam.
Há, cá por casa, uma discussão muito doméstica e quase irracional sobre o “racismo” português. Bom seria que o comparássemos com aquilo que se extrai dos comportamentos desses europeus outros que tendo emigrado para todo o mundo não suportam um estrangeiro dentro da sua fronteira.
Mesmo sendo realidades distintas, e são-no, conviria analisá-las à luz mais geral das relações da Europa com os outros. E, já agora, dos outros com os europeus. Com isto não pretendo relativizar ou desculpar seja o que for mas apenas colocar o problema onde ele deve ser colocado e aí ninguém fica bem na fotografia. Eu bem sei que está na moda desatender ou mesmo ignorar ostensivamente a História mas sempre que isso ocorre o resultado é o regresso à barbárie ou a algo que se lhe pode assemelhar.
A Grã Bretanha com o seu passado imperial, o Raj, a segregação racial nas colónias levada a extremos impensáveis para nós portugueses, é, hoje em dia, um país mais pluri-racial do que qualquer outro europeu, onde multidões vindas da Ásia, das Caraíbas e de África vivem um dia a dia bastante tranquilo e próspero. E isso também vai fazer falta a alguma, quase toda a “Europa”. Muita falta...
*na gravura Kensington Gardens . Oh que inveja! ...