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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Estes dias que correm 331

d'oliveira, 31.01.20

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Sentimentos diversos

mcr, 31 Jan 2020

 

Lá se vai a Grã Bretanha e por cá ficamos nós, os “mais antigos aliados”, título um tanto ou quanto ridículo e nem sempre conforme à realidade histórica. A mais velha aliada serviu-se bem de Portugal, basta lembrar o desigual tratado de Methwen. É bem verdade que o duque de Wellington andou por cá a ajudar no combate aos franceses mas é bom lembrar que isso não se deveu aos nossos lindos olhos. A Inglaterra (simplifiquemos o nome) tinha uma guerra antiga com Napoleão e Portugal foi um ocasional campo de batalha. Raras vezes os interesses nacionais coincidiram com os da poderosa aliada, basta lembrar as condições (ou a ausência delas) no acordo de retirada de Junot que levou tudo quanto quis, um saque que ainda hoje é visível no “Cabinet de Lisbonne”. Isto sem contar as riquezas imensas roubadas a palácios e conventos portugueses.

Depois, Beresford governou esta “quase colónia” com mão de ferro e foi com dificuldade que se resolveu a regressar a penates.

Não vou citar o “Ultimato” porquanto aí, é bom que se diga, o nosso famigerado “mapa cor de rosa” era uma aberração. Não exercíamos qualquer espécie de ocupação efectiva naqueles territórios do hinterland africano, sequer em muitas das partes de Angola e Moçambique. A indignação nacional contra o governo inglês, e todo o folclore ridículo que a acompanhou, apenas serviu ao Partido Republicano que, de pequeno grupo de cavalheiros, passou a uma organização de massas por ter cavalgado a histeria nacional e o patrioteirismo consequente.

Mais tarde, há a nebulosa negociação secreta sobre as colónias portuguesas, no início do século XX. Ainda hoje se discute o alcance da alegada divisão entre britânicos e alemães e qual o conhecimento que o Governo Português teria dessa negociata. É verdade que, a certa altura, se afirmou que, para abortar essa espoliação, se entrou na !ª Grande Guerra. Pode ter sido um dos motivos mas tudo leva a crer que os “guerristas” queriam sobretudo legitimar a jovem República.

Todavia, entrou-se no conflito, e passámos a vergonha de ver o famoso CEP (o nosso Corpo Expedicionário) ser transportado para a Flandres em barcos ingleses, nas condições impostas por estes, ser fardado por ingleses e, vergonha última, ser treinado por estes provando-se assim que o famoso “milagre de Tancos” (o primeiro claro, não esta ridícula revista à portuguesa que agora corre seus termos na justiça) era sobretudo um embuste. A participação nacional no conflito, seja na Flandres seja nas duas frentes africanas, não abona especialmente a glória pátria mesmo se, se possam citar alguns notáveis actos de heroísmo individual. Frente a eles, temos a passeata do general von Lettow por uma extensa e profunda área do Norte de Moçambique sem que as forças portugueses em muito maior número tenham conseguido impedi-la e muito menos vencê-la. É bem verdade que esse mítico general alemão bateu todos os generais (17) e um marechal que comandavam forças absolutamente superiores e que só se rendeu depois do armistício. Leiam-se as suas “memórias” (há uma velha tradução portuguesa eventualmente disponível em alfarrabistas) e os recentes estudos publicados por cá.

Tudo visto, a “aliança luso-britânica” é mais um nariz de cera do que uma realidade interessante e útil. Digamos que isso, a aliança, é um pouco a ilustração da história dos dois potes, o de ferro e o de barro (nós).

No entanto, o Reino Unido tem sido, nos últimos tempos, um dos principais destinos da nossa emigração e contam-se por centenas de milhares os portugueses que lá encontraram trabalho e condições de vida. E reside aí a maior preocupação imediata para Portugal. É que, a partir do final do período de transição, os portugueses com menos de cinco anos de estadia serão estrangeiros num país estrangeiro.

Curiosamente, os jornais de hoje noticiam o facto mas comentam-no parcamente. Em boa verdade, comentários e profecias de toda a espécie não faltaram durante estes anos que se seguiram ao desastrado referendo que iria acabar de vez com as veleidades anti europeias. Depois dessa primeira decepção que pr muito rural que fosse permitia o “Brexit” contra as elites cultas e jovens, o governo conservador (com uma preciosa ajuda dos trabalhistas eles mesmos pouco entusiastas quanto `pertença à União) conseguiu sabotar-se a si próprio e transformar uma eventual maioria anti-saída numa minoria. É aqui que entra em cena Boris Johnson que, puro produto de Eton e de Oxford, com um passado de vida extremamente cosmopolita, entendeu cavalgar a onda da saída. Houve muitos que o quiseram comparar a Trump que, esse sim, não passa de um ignaro milionário da construção civil incapaz de articular três frases seguidas com algum sentido e elegância. Tenho até alguma fundada dúvida de que Johnson seja um homem dos americanos pelo no sentido que um que outro encartado comentador deu dele.

A verdade é que ninguém, neste momento, sabe como é que tudo isto vai evoluir. Pareceu-me perceber uma vingativa esperança de que a Escócia e a Irlanda do Norte batessem com a porta e regressassem ao seio da “Europa”.

Gordon Brown, um escocês com enorme experiência política afirmou durante a campanha do referendo independentista escocês que , para além do laço fortíssimo da língua comum, havia por todo o lado, no mundo, cemitérios em que estavam irmãmente inumados soldados ingleses, escoceses, galeses e irlandeses. E isso pesava e pesa muito.

Tudo irá depender do comportamento da economia, por um lado e da Inglaterra (em sentido estricto) por outro. Que as coisas, num primeiro tempo, irão ser mais difíceis e complicadas é uma evidência. Depois, logo se verá como correrão as negociações até ao fim de 2020. Se é ou não alcançável um acordo que seja aceitável por ambas as partes. Tal não parece, pelo menos à partida, uma impossibilidade. Há demasiados laços não só económicos e culturais que terão o seu peso. A Europa (geográfica) é demasiado pequena para alegre e tolamente se auto-suicidar frente à China, ao Japão e aos Estados Unidos.

E seria bom que, mesmo reconhecendo alguma arrogância (que aliás sempre existiu) nos britânicos se olhasse para o umbigo europeu e se tentasse fazer um exame de consciência sério e capaz de preparar o futuro. A União poderá ter crescido demasiadamente depressa e sem olhar aos desequilíbrios regionais que hoje parecem tão evidentes. Pessoalmente, mesmo sem simpatizar com os ingleses, sinto-me mais próximo deles do que de húngaros ou polacos. Ou eslovacos e romenos. A começar pela reacção destes aos emigrantes sejam eles quais forem e a acabar no nacionalismo populista e serôdio que ostentam.

Há, cá por casa, uma discussão muito doméstica e quase irracional sobre o “racismo” português. Bom seria que o comparássemos com aquilo que se extrai dos comportamentos desses europeus outros que tendo emigrado para todo o mundo não suportam um estrangeiro dentro da sua fronteira.

Mesmo sendo realidades distintas, e são-no, conviria analisá-las à luz mais geral das relações da Europa com os outros. E, já agora, dos outros com os europeus. Com isto não pretendo relativizar ou desculpar seja o que for mas apenas colocar o problema onde ele deve ser colocado e aí ninguém fica bem na fotografia. Eu bem sei que está na moda desatender ou mesmo ignorar ostensivamente a História mas sempre que isso ocorre o resultado é o regresso à barbárie ou a algo que se lhe pode assemelhar.

A Grã Bretanha com o seu passado imperial, o Raj, a segregação racial nas colónias levada a extremos impensáveis para nós portugueses, é, hoje em dia, um país mais pluri-racial do que qualquer outro europeu, onde multidões vindas da Ásia, das Caraíbas e de África vivem um dia a dia bastante tranquilo e próspero. E isso também vai fazer falta a alguma, quase toda a “Europa”. Muita falta...

*na gravura Kensington Gardens  . Oh que inveja! ...

 

O leitor (im)penitente 215

d'oliveira, 30.01.20

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A morte está a passar por aqui

 

mcr, 30/JAN/2020

 

Lá se foi o Manuel Rezende poeta que descobri num livrinho editado há quase quarenta anos, “Natureza morta com desodorizante”, em que já era patente uma enorme esperança poética, um agudo sentido literário e uma séria erudição.

Cruzei-me fugazmente com ele, pouco depois de chegar ao Porto mas nunca fomos amigos, sequer conhecidos de longa data. Para lá das inevitáveis divergências políticas que marcaram a segunda metade dos anos setenta, havia ainda o facto ele ter desaparecido, abalado para Bruxelas onde terá feito parte, a maior parte, da sua vida. E, no regresso, ter-se-á fixado em Lisboa.

Retomei o contacto, como leitor, quando ele publicou a “Poesia Reunida”, há cerca de um/dois anos.

Tudo aquilo que eu esperara dele, nos anos 80 estava ali presente, soberbamente presente. Rezende aparecia como uma bela voz marcando com grande dignidade os anos que medeiam os dois séculos.

E mais uma vez, verifiquei que o simples facto de estar ausente da pequena cena nacional bastava para ser um desconhecido mesmo se, entretanto, um outro livro tivesse sido publicado. E, a par disso, algumas excelentes traduções de grande poetas (entre eles Elitis e Kavafis, esses dois enormes gregos separados por quase cem anos de grande poesia). Mas, coo diz o ditado, “olhos que não veem, coração que não sente”, isto de estar semi-exilado é já uma condenação, mesmo se, como dizia outro esquecido, Daniel Filipe a “Pátria (é) lugar de exílio”.

E também este acabou esquecido mesmo se a sua poesia iluminou os nossos primeiros anos sessenta (A Invenção do amor, Pátria, lugar de Exílio). É verdade que, morto em 1964, a sua obra, sobretudo estes dois livros acima citados, continuou a ser reeditada mas, a falta de referencia crítica atirou-o para o limbo. Recordo que, quando foi conhecida a sua morte, António Pedro, na altura encenador no CITAC (Coimbra) lhe fez um belo elogio. Vinham ambos de Cabo Verde e, mesmo se divergissem poeticamente, em boa verdade estimavam-se r reconheciam os respectivos (grandes) talentos.

A pequena história cultural nacional, doméstica e mesquinha é feita destes desencontros, destes desconhecimentos, da geral incultura (também política e ideológica, o que não é exactamente a mesma coisa).

Mesmo editado pela “Cotovia” (cuja qualidade é inversamente proporcional ao reconhecimento público) Manuel Rezende permanece um desconhecido e de nada serve afirmar que um pequeno grupo de leitores ávidos e curiosos o lê e aprecia.

Já Eduardo Guerra Carneiro, outro que tal, dizia “É assim que se faz a história”. Tanta razão tinha! E que desconsolo!...

 

 

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* Definitivamente o meu jeito para estas coisas é, no mínimo e piedosamente, medíocre. As fotografias deveriam ficar todas em cima mas o Daniel Filipe, talvez por ser o mais velho caiu para o fundo. De todo o modo, em primeiro lugar está o Eduardo e depois o Rezende

 

estes dias que correm 330

d'oliveira, 28.01.20

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A ponta do iceberg

 

mcr 28-01.2020

 

O recente (?) caso da sr.ª eng.ª Isabel dos Santos que tanta tinta metafórica faz correr pede um par de pequenas reflexões.

E comecemos pela mais simples: é isto uma novidade ou antes ancora-se numa longa tradição de “estórias” angolanas que vem desde o reinado omnipotente de um partido e de uma espessa clique de militantes e dirigentes do mesmo?

Propendo a aceitar a segunda hipótese e, para o efeito, socorro-me de uma antiga história sucedida ainda bem antes de 1980. No meio da balbúrdia da guerra civil larvar que arruinava ainda mais o recente país, fui visitado por um cavalheiro angolano que, a conselho de outrem, vinha pedir ajuda. Na prática, e resumindo, o angolano queria fazer um by-pass a uns “amigos” de angola, lisboetas e comprar uns milhões de tee-shirts em algodão a preços menos especulativos do que os que ofereciam os amigalhaços já citados. “É que, dizia-me, a população está esfarrapada e essas peças poderiam, com um slogan do MPLA – a vitória é certa- vestir-se um pouco melhor e apoiar o frágil poder do frágil governo angolano”. E continuava: “De cada vez que enviamos alguém para negociar compras urgentes começamos por receber sucessivos relatórios a informar de tentativas de corrupção por parte de vendedores. Quando acabam essas mensagens, ficamos quase sempre com a certeza de que o nosso agente aceitou um preço e que, quer ele quer os “amigos do povo e do partido angolanos vão uma vez mais encher os bolsos. Desta feita, a conselho de antigos amigos seus do tempo da universidade e de apoiantes nossos em Lisboa, esperamos que nos ajude”.

Reuni um pequeno grupo de amigos e conhecidos, expus-lhes a situação e uns dias depois, convoquei o emissário angolano para uma reunião com todos.

Os leitores desculparão se só cito um nome (o do eng. Carlos Bravo, velho amigo de Coimbra) na altura gestor de uma grande empresa algodoeira do Norte. Em substância, o que o Carlos disse ao angolano foi o seguinte. Propunha-se fornecer aquela imensidão de peças a um certo preço, explicando que tinha deveres para com a empresa e que ter um lucro honesto era essencial.

Ao ouvir o preço proposto, o angolano empalideceu, corou, levantou-se duas vezes e duas vezes se sentou. Depois, um pouco mais calmo, explicou-se: aquele preço era (pelo menos) 30% (trinta por cento) mais baixo do que o melhor proposto pelos “incondicionais” apoiantes portugueses do povo e partido angolanos!

O negocio fez-se e nunca mais ouvi falar do assunto e também nunca mais alguém me demandou.

De alguns contactos com antigos conhecidos dos tempos de luta anti-colonial em Coimbra fui verificando, triste mas não surpreendido, de como as coisas “lá” iam correndo. Um dos meus melhores amigos, António Garcia Neto, foi entretanto misteriosamente morto durante o bizarro levantamento nitista. Foi um entre 20 ou 30.000 e ainda hoje se desconhece quem, e às ordens de quem, o eliminou.

Em boa verdade, eu, sobre o MPLA (e dos outros nem sequer me dou ao trabalho de falar) tive sempre um pé atrás. Dois, até não fora desequilibrar-me e dar com as ventas no chão. Desde muito cedo, desde o princípio quase, tive contactos com os movimentos africanos, graças à Casa dos Estudantes do Império, à República dos !000-y-onarius, constituída por angolanos todos independentistas (e quase todos desaparecidos de Coimbra na grande fuga de 1961e, sobretudo devido à convivência com Carlos Mac-Mahon que, na prisão de Caxias nos explicou com detalhe e longamente, o que se passava. Em Abril e Maio de 1962, fui um dos 44 estudantes (de Coimbra) enviados para os calabouços devido à nossa participação na greve académica de 62 e à ocupação da sede encerrada da Associação Académica.

Mais tarde, conheci vários nacionalistas exilados em Paris, entre eles Mário Pinto de Andrade que chegou a ser o primeiro presidente do MPLA.

A relação com o independentismo africano continuou e disso há constância num dos 14 processos que a prestimosa PIDE constituiu sobre a minha fraca figura. Foi talvez, por isso, que a historieta acima contada, me tenha sucedido. Devo, porém dizer que, em 1974, já olhava muito criticamente a direcção do movimento que expurgara já muitos e destacados militantes (por todos o admirável Viriato da Cruz) e que, no terreno, no capítulo exclusivamente militar, estava claramente contido. Além do mais já se divisam as fracções cada vez mais evidentes, desde a “Revolta Activa” dos irmãos Pinto de Andrade, ate à Frente de Leste, dirigida por Daniel Chipenda.

A história é o que é e foi Agostinho Neto quem finalmente apareceu como vencedor. Ou foi ele o escolhido por apoiantes do bloco socialista ( e sobretudo Cuba, absolutamente essencial na luta contra a UNITA e contra a FNLA, sem falar no facto de ter sido o exército cubano quem conteve as forças sul-africanas). Do reinado de Neto, mesmo para os seus mais piedosos hagiógrafos, pouco de bom há a dizer. Isto se o esmagamento dos alegados nitistas não o condenar absolutamente. A Neto, poeta medíocre e político habilidoso, sucedeu o sr. eng.º Eduardo dos Santos que se manteve no poder durante 38 (trinta e oito) gloriosos anos. O termo glorioso nada tem a ver com o índice de felicidade do povo angolano que a 95% vive na mais desamparada miséria mas apenas reflete como os arranha céus de Luanda (arranha céus cercados de muceques miseráveis e infames) e os trezentos (300) multimilionários angolanos se refastelaram no poder e nos sue doces frutos.

Nesse grupo de gente desenfreada, sobressai - com os queridos irmãos – a sr.ª eng.ª Isabel dos Santos, a “mulher mais rica de África” (e não sei se haverá algum homem, pelo menos negro, mais rico do que ela), filha bem amada do agora ex-presidente Eduardo dos Santos. Da senhora apenas sei o que a imprensa ia relatando. Dos seus investimentos, das compras sumptuosas na Av. Da Liberdade, do luxo impar que presidia às suas moradias, uma das quais no valor de 50 (cinquenta) milhões de euros (50? Arre que aquilo há de ser quase do tamanho do Palácio de Buckingham! Ou, vá lá, do estilo do apartamento dessa criatura de bom gosto que dá pelo nome de Trump...

Não conhecendo a referida senhora, sequer o esposo amantíssimo ou quaisquer membros das comitivas angolana e portuguesa, sempre me resignei a vê-la como grande malabarista do empresariado moderno. Das origens da sua exuberante fortuna nunca duvidei. Não me foi preciso ler a sr.ª dr.ª Ana Gomes, nem ela, aliás, inventou a pólvora. Fortunas deste calibre nem nos contos de fadas. Se ocorrem neste mundo, fora da Europa, da Ásia ou dos Estados Unidos, nem sequer é preciso qualquer dose de instinto para perceber que ali há um milagre das rosas que deixa o da nossa franciscana Rainha Santa, reduzido a mera anedota.

Também não deixo de me espantar (eu sou ingénuo até dizer basta...) que, subitamente, apareçam quase centenas de milhares de documentos oferecidos de bandeja a um consórcio de jornais dos mais prestigiados que óbvia e euforicamente os desataram a publicar.

Diz-se, por aí que a coisa teria origem naquele pobre diabo que está preso e que meteu a mão nos segredos do Benfica, da Procuradoria Geral, de umas sociedades de advogados e não sei que mais. Será? Eu percebo que o rapazola de Gaia, movido por um entranhado amor ao Futebol Clube do Porto, tenha invadido os segredos do rival lisboeta. Que tenha, eventualmente, entrado noutros como consta da acusação. Que tenha tentado extorquir uns euros não sei quem, mesmo se isso tenha sido tão mal feito que até se virou contra ele. Agora, a multimilionária, a empresária que deveria ter a sua segurança mais que reforçada? Cá por mim, é muita areia para a camioneta do rapaz de Gaia. A menos que tudo tenha começado por uma intrusão, sempre ilícita, num escritório de advogados que teria sido a porta de entrada para esta enxurrada angolana.

Propenderia, mais, a ir procurar onde a coisa dói. Em Luanda, por exemplo. Na consolidação do poder do actual grupo dirigente do MPLA onde avultam cavalheiros também fortemente endinheirados e que, com o sacrifício da sr.ª eng.ª podem passar despercebidos. Não ponho em dúvida que o actual Presidente de Angola queira mudar alguma coisa por lá. Como dizia o Príncipe Salina, “é preciso que algo mude para que tudo continue na mesma”. Desculpem a citação do admirável Giuseppe Tomasi di Lampedusa que, provavelmente, ninguém em Luanda lê mas, se há ocasião para o citar, esta é, de certeza, a mais adequada.

Luanda está nas vascas da falência. Precisa de dinheiro, de muito dinheiro. De investidores, muitos também. Para isso há que lavar a cara e mostrar que há um claro intuito de acabar com a corrupção endémica nos meios dirigentes do MPLA, naquela roda de generais e e ministros e ex-ministros que são apontados a dedo.

Se se juntar isso ao combate político dentro do partido no poder, cuja erosão é manifesta, então a filha conhecida do ex-presidente é o melhor e mais apetecido alvo. Sobretudo se ela, uma “parvenue” absoluta, tiver alimentado as páginas rosa” da crónica social e financeira. De uma pazada matam-se vários coelhos: a ricaça, o ex-presidente que ainda tem adeptos e cúmplices e mais um par de colonialistas e racistas (e fascistas) portugueses que ajudaram a dar abrigo aos milhões aqui despejados em empresas e bancos. Que ajudaram a passar muita dinheirama aos direitos, directamente para o Dubai e outros locais que agora todos querem visitar.

Depois, há o espectáculo sempre incómodo de ver a rataria a saltar do titanic em perigo. Que de virtudes! que de gestos nobres! “En esta casa no passa nada” como dizia a mãe da Bernarda Alba mesmo quando os espectadores viam todo um mundo a ruir. De todo o modo, Lorca também não deve dizer nada em Luanda e muito pouco em Lisboa nesses meios pouco dados ao teatro propriamente dito.

Eu, mesmo tendo um diploma passado pela Universidade de Coimbra, já nada sei (e não quero saber) de Direito. De todo o modo, seria interessante saber como é que se aparece o Luanda Leak e se isso não se deve a intromissão ilegal em casa (arquivo) alheia sem consentimento do seu proprietário e habitante. Provas obtidas ilegalmente costumam ser nulas mas quando isso envolve milhões, escândalo, actividades surpreendentes (e não uso adjectivo mais expressivo) tudo pode acontecer.

Para já, temos que o senhor Procurador Geral da República angolana se deu ao trabalho de viajar até Lisboa e deixar bem claro que gostaria de ver uns cidadãos portugueses que exercem as suas profissões em Portugal, em Luanda para serem julgados lá.

Isto seria irónico não fosse estar bem presente na lembrança de todos, o afinco com que Angola negou a Portugal o julgamento de um certo senhor Vicente, político eminente e ainda hoje figura importante em Luanda, acusado de ter corrompido um procurador português por crime ocorrido em Portugal. Era o famoso “irritante” que os senhores drs. Rebelo de Sousa e Costa tanto referiram. A verdade é que o processo acabou por ir para Angola e, desde esse abençoado momento, o cidadão Vicente passeia alegremente a sua alegada inocência enquanto a justiça dorme a sono solto.

Uma palavrinha final sobre a “vitória” da sr.ª dr.ª Ana Gomes uma espécie de inquisidora geral por conta própria. Confesso que, se é verdade que, no caso em apreço, as suas acusações parecem ter eco, não menos verdade é que a consabida estridência da criatura, o seu zelo persecutório mostram bem que o velho espírito mrpp se mantem vivo. Naqueles longínquos tempos era costume dizer-se que “Estaline está vivo nos nossos corações” mesmo se o slogan fosse mais usado pelos rapazes do “Grito do Povo”. A simples menção ao carniceiro soviético é, de per si, uma aberração e uma vileza. Prefiro, como de costume, a esse excesso revolucionário e vingativo, a pachorrenta caminhada de uma justiça eventualmente “burguesa e liberal” mas respeitadora dos Direitos do Homem, mesmo do mais detestável criminoso.

A gritaria à volta da “princesa” de Angola parece muito um ajuste de contas temperado pela inveja de uns quantos e pela vontade de outros tantos em fingirem que nunca tiveram nada a ver com a criatura. E, no meio da barulheira, pressente-se o escape fugidio e sorrateiro de muitos que, à custa do desgraçado povo angolano, tentam passar por entre as gotas da chuva.  

*na  gravura: máscara tchokué (Lunda, angola)

 

au bonheur des dames 409

d'oliveira, 27.01.20

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Gauche”, definitivamente “gauche”

(“vai Carlos ser gauche na vida

Carlos Drummond de Andrade)

mcr 26.01.2020

A bela palavra francesa “gauche” não significa apenas esquerda mas também desajeitado/a.

No meu caso sou, para pesar de uma amiga que suspeita das minhas tendências direitistas, gauche por vários lados.

Primeiro, sou canhoto. Canhoto de toda a vida, faço tudo à esquerda excepto escrever pois na escola primária do excelente professor Mourinho puseram-me escrever com a dextra não percebendo o meu estigma de canhoto e eu nem pensei sequer em queixar-me à família. Durante anos tive uma escrita mais próxima do linear b do que de qualquer outra coisa. Depois aprendi a desenhar a letra e lá se compôs a coisa. Mas não tenho uma escrita dessas que se dizem pessoais e que mostram o escrevente por dentro e por fora. E, sempre que vejo alguém a escrever com a esquerda, invade-me uma irada e antiga inveja que quase me sufoca.

Depois, porque é natural e tradicional a minha falta de jeito para quase tudo. Sempre dancei mal, sou péssimo no futebol (melhor: era péssimo no futebol de tal forma que nos intermináveis jogos de futebol que disputávamos na praia eu era o último a ser escolhido mesmo se a palavra escolha não tenha aqui qualquer peso. Eu era o “contrapeso” que calhava ao mais azarado capitão de equipa, a quem cabia escolher em segundo lugar) e em muitas tarefas domésticas, como, por exemplo pregar um prego na parede.

Finalmente, gauche porque acredito que é possível melhorar o mundo e a vida desde que não se ceda, burramente, ao preconceito ideológico, ao tribalismo opinativo, à falta de estudo e de “análise concreta da situação concreta” (uma proposta inteligente de um cavalheiro que se chamava Ulianov e que hoje ninguém lê porque lhe preferem os tristes epígonos que enxamearam o inexistente marxismo dos progressismos actuais). Vivemos numa época em que o clubismo político cada vez mais se assemelha ao clubismo acéfalo e futebolístico, mais às aparências que à realidade, mais ao vozear do que ao raciocinar. E, sobretudo, gauche porque, mesmo a nível individual, faço por agir de acordo com a ética e não com o recurso aos esquemas em que o ganho parece ser o único norte.

 

Depois deste longo proémio, convém explicar ao que venho. Pois ao uso (e eventual abuso) do computador, aparelho sacaninha que me apareceu tarde na minha (já) longa vida. A minha teoria no uso destes maquinismos é simples: aprender apenas o necessário e quando necessário.

Ora, e precisamente, ligado à escrita tive sempre o cuidado de, uma vez escritos, gravar os meus textos. Punha-lhes um título e guardava-os na “secretária”. E durante anos vivi assim, feliz e descansado. Volta e meia, um texto ficava a meio, pois escrevo na minha esplanada favorita entre um par de cafés. De quando em quando, aparece um amigo, senta-se e o prazer da conversa não se compadece com o ligeiro fardo da escrita. Por isso habituei-me ao “file”, save as”, dar o título e “save” para a “secretária”. Isto, ao longo dos anos, tornou-se maquinal.

Todavia de há uns tempos a esta parte, começaram a desaparecer-me textos prontos ou incompletos. Eu bem que ia ao “ficheiro”, marcava “procurar” apanhava a caixa dos “documentos” inseria, quando o recordava, o título do texto mas nada.

Gauche, tout a fait gauche, disse para os meus botões: o estúpido do mac avariou. E há dias resolvi fazer a experiencia de escrever meia dúzia de letras e gravar. De seguida, segui fielmente o protocolo de pesquisa e... nada! Raspas de nada!

Nestas alturas, comecei a desconfiar de mim próprio e nem hesitei. “Rapidamente e em força” para a “Colossus / Oficina dos Neurónios”, a minha loja salvadora e simpática dos computadores.

Expus o problema e mostrei uma vez mais o que fazia. À gentilíssima D Mónica Silva que me atende e atura com evangélica paciência, bastou um olhar para ver que na caixa de gravação em vez de estar “desktop” no destino estava “my templates”. Ou seja em mandava a pobre prosa que produzo para um misterioso labirinto onde nem o fio de Ariadne dá resultado.

Em três toques, para mim mágicos, apareceu uma boa dúzia de textos que, porventura, mereceriam continuar a monte, escafedidos do autor, para salvação dos leitores que misericordiosamente teimam em ler-me.

Estão, agora numa “pasta de recuperados para o que der e vier” onde eventualmente morrerão sem nunca chegarem ver a duvidosa luz do dia. Lá jazem entre outros um texto sobre a República “Democrática” Alemã em 1970, melhor dizendo sobre Berlin, um Berlin com muro, “vopos” à fartazana para evitar que as sanguessugas ocidentais e capitalistas viessem roídas de inveja abarbatar-se com o progresso inaudito do Leste e roubar os inexistentes bens á venda nas lojas. Voltando à conversa de há pouco, durante anos, a versão do muro foi esta. O muro estava ali, com campos de minas, arma de tiro automático, arame farpado e um exército de homens armados até aos dentes para proteger a pacífica DDR, farol do socialismo real e autêntico. O facto de se terem abatido umas centenas de fugitivos do paraíso quando pretendiam cruzar o muro apenas significava que os abatidos eram criminosos viciosos obcecados pelo capitalismo e pela desenfreada corrida aos bens de consumo. Esta lenda urbana e criminosa terminou com gigantescos cortejos ao grito de “Wir sind das Volk” caindo o muro e o regime sem um tiro, sem uma pedrada, sem um lamento. Aquilo estava podre, era podre e ninguém apareceu para o defender. Todavia, durante trinta anos o Muro era uma sagrada evidência do mito leste-alemão e os amigos, os camaradas, os simpatizantes por cá gabavam-no e defendiam-no mesmo sem nunca lá ter ido, sem nunca terem penosamente cruzado o “checkpoint Charlie” sem nunca terem visto aquela desolada e cinzenta paisagem da fictícia capital este-alemã. Bom proveito lhes faça!

* a gravura: no dia da construção do muro, um "vopo" foge no último momento possível saltando sobre o arame farpado. 

 

 

 

"Football Leaks" vs. "Luanda Leaks"

José Carlos Pereira, 27.01.20

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Todos temos visto a catadupa de acontecimentos que se sucederam à revelação dos "Luanda Leaks", seja em Portugal ou em Angola. Pois bem, sabe-se agora que foi Rui Pinto que disponibilizou à plataforma internacional de jornalistas os 715.000 documentos que estiveram na origem das investigações tão seguidas e aplaudidas.

O mesmo Rui Pinto que está preso em Portugal por causa dos "Football Leaks", que já provocaram consequências em alguns países, sobretudo por razões de natureza fiscal, mas que em Portugal continuam a ver muito limitadas as consequências desportivas e judiciais das suas revelações. Em Portugal, o foco é sobretudo sobre o mensageiro e não tanto sobre a mensagem. Percebe-se...

QUESTÕES QUE O LUANDA LEAKS SUSCITA

JSC, 23.01.20

Já lá vão alguns anos que, pelo Ano Novo, discutíamos a “acumulação” de riqueza por uma dita élite angolana. Éramos todos oriundos da mesma escola, amigos, com a particularidade de um ser luso-angolano, com grande ligação ao poder e ao MPLA. Era o único a defender, calorosamente, com recurso à teoria económica, os investimentos da Isabel dos Santos e dos que lhe eram próximos.


Não sei que conversa teríamos hoje. Sei que continuo a pensar o mesmo. Era dinheiro a mais para uma pessoa só. E mesmo que dinheiro gere dinheiro, o primeiro dinheiro não podia ter sido gerado. O volume dos investimentos e a oportunidade de cada negócio tornavam isso evidente.


Hoje, atulhado pelo ruído das notícias, centradas em Isabel dos Santos, dou comigo a questionar:


1. Tudo o que tem sido revelado através dos meios da comunicação social deve ser qualificado como jornalismo de investigação ou como pirataria informática?


2. Quem foi o “único denunciante” que entregou os “715 mil ficheiros” à PPLAAF?


3. Como obteve esses milhões de registos?


4. Qual a motivação para disponibilizar essa informação?


5. Como entender que nos 715 mil ficheiros apenas apareça Isabel dos Santos como usurpadora dos recursos públicos?


6.  Se os ficheiros começaram a ser disponibilizados no final de 2018 e início de 2019 porque só agora tornaram pública essa informação?


7. Porque não assacam responsabilidades às auditoras, designadamente à PwC, (que terá recebido milhões e agora saltou fora)?


8. Se todos os negócios e Contas foram auditadas porque é que as autoridades angolanas e mesmo as portuguesas não acusam as empresas de auditoria em causa?


9. Porque é que o PGA foi agora tão lesto e disponível para vir a Portugal e foi tão ríspido e ausente no passado recente (caso Manuel Vicente)?


10. Se os “715 mil ficheiros” foram fornecidos por “um único delator”, como poderemos estar seguros da isenção política, económica ou outra deste delator?


Eis algumas questões a que, em meu parecer, o jornalismo democrático e isento deveria responder.  A corrupção deve ser combatida por meios lícitos e justos. O combate à corrupção não será bem um combate se na génese deste estiverem outros interesses, igualmente mesquinhos e iníquos. Neste combate não deve haver lugar para ambiguidades.

Luanda Leaks

José Carlos Pereira, 22.01.20

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Sucedem-se nos últimos dias as revelações sobre a acumulação de riqueza de Isabel dos Santos a partir da subtracção de avultadas quantias do erário público angolano. É caso para dizer que o jornalismo se prestigia quando investiga casos de grande relevo público e acaba a pressionar reguladores e elites empresariais e políticas, que agora se deparam com o que sempre esteve à vista de todos.

Muitos cooperaram com o regime angolano e com a nomenclatura Dos Santos, fechando os olhos ao que era evidente. Um dos casos paradigmáticos foi a prontidão e a lisonja com que a Câmara Municipal do Porto entregou a medalha de ouro da cidade a Sindika Dokolo, marido de Isabel dos Santos, em troca de uma exposição de arte contemporânea africana e da prometida instalação de uma fundação...de que agora se perdeu o rasto.

Incursões à mesa

José Carlos Pereira, 20.01.20

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Na passada quinta-feira ocorreu mais um encontro à mesa dos colaboradores do Incursões. No coração da Foz do Douro, o restaurante Treze % foi o lugar escolhido para pôr a conversa em dia, para se falar dos projectos pessoais e empresariais dos presentes e, claro está, para comentar a actualidade nacional e internacional.

A política, a economia, a cultura, mas também a gastronomia e os vinhos estiveram em foco. No final, dois dos incursionistas presentearam os demais com uma garrafa de Portinha, vinho verde branco DOC da sub-região de Baião, que resulta de um forte investimento pessoal e afectivo naquele concelho, numa propriedade situada na encosta do Douro. Tchim-tchim a todos os colaboradores e leitores!

Quem está a ser julgado no processo de Tancos?

JSC, 14.01.20

Tancos é o lugar onde foram assaltados os paióis militares. O processo judicial de Tancos é o exemplo de como a procura de aplicação da justiça se pode sobrepor à Justiça.


1. Em dado momento descobre-se que alguém assaltou os paióis e roubou armamento.


2. Segue-se a investigação, o apuramento de responsabilidades, as intervenções públicas das chefias militares e de políticos.


3. Desde o começo que o foco não foi propriamente chegar aos autores do roubo, mas o apontar para os políticos, que não terão disponibilizado os meios para guardar o paiol.


4. Parece absurdo. Contudo, foi assim.


5. Entretanto dá-se o achamento das armas.


6. Desde logo, a Justiça deixou cair, por inteiro, o roubo propriamente dito, para se centrar na questão do achamento. Quem soube? Quem não soube? Como soube? Como não soube, mas devia (podia) saber?


7. A fulanização do processo acabou por transportar o primeiro-ministro para o centro do mesmo, o que, na prática, contribui para esconder e desculpabilizar os verdadeiros autores do roubo.


8. Entretanto, nós, contribuintes, assistimos impávidos e serenos ao arrastar de um processo que há muito parece ter perdido o norte porque se enleou nos meandros da política, percurso que deveria estar fechado à Justiça.


9. Assistimos e pagamos por isso!


10. Por fim, sobra a questão: Quem é que está a ser julgado pelo roubo das armas?

Au bonheur des dates 408

d'oliveira, 02.01.20

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De olhos no teto com a “nona” a entrar-nos na alma

 

mcr 2-01-20

 

Em que ano foi ? Seguramente quando os anos cinquenta já estavam perto do fim. Eu teria 16, 17 anos?

De todo o modo era um miúdo ignorante com um escasso horizonte musical, se é que posso falar de horizonte. O meu avô paterno, já entrado nos sessenta, exportador de vinho do Porto (como o pai e os irmãos), vivera na Alemanha um par de anos entre Hamburgo, Heidelberg e Wurzburg aprendendo enologia, química do vinho e sobretudo vida, muita vida (descobri nos seus papéis uma correspondência com três amigos que também tinham tido a sorte e os meios – avultados – para depois do liceu irem fazer o “grand tour” e algum curso – onde é referida insistentemente uma certa Fraulein Ilse a quem os amigos mandam cumprimentos respeitosos com algum comentário brejeiro pelo meio, o que me faz desconfiar que o velho senhor não fora sempre aquele pilar de virtudes que aparentava er e qu me moíam o juízo (escasso juízo e muita sede de aventura)).

Dessa estadia de alguns anos no estrangeiro o avô trouxe sólidos conhecimentos de alemão (e de holandês!) que se juntaram à sua extrema facilidade para línguas desde o latim e o grego até ao francês, espanhol e italiano, sem falar no inglês que ele utilizou muito nos anos em que viveu em Inglaterra. Depois das línguas, do conhecimento bíblico de Eva, no caso Ilse, adquiriru uma sólida cultura musical forjada em inúmeras salas de concerto e de ópera de que foi assíduo frequentador. Aliás foi na Ópera do Rio de Janeiro que conheceu a sua primeira mulher, a avó Dora Heinzelmann, leitora de Espronceda e dos clássicos espanhóis e ibero-americanos e amante da pintura em particular e das artes plásticas em geral. Nos curtos anos da sua breve vida em Portugal, a casa do “Torne” em Gaia era frequentada por Diogo de Macedo, Teixeira Lopes, os Carneiro, pai e filho e vários amigos destes. Desse grupo conservo um belíssimo guache que constava do álbum da avó.

Havia, pois, na casa deste esclarecido homem dos vinhos do Porto, um ambiente cultural muito habitual, aliás, noutras casas da alta burguesia portuense.

Não admira, portanto, que, quando começaram a aparecer gira-discos mais ou menos portáteis de qualidade, o velho senhor encomendasse um na Alemanha que apareceu na companhia de uma edição completa das Sinfonias de Beethoven (uma edição em 33 rotações recheada de nomes de maestros conhecidos.

O dia da chegada dessa encomenda volumosa foi uma festa. Desembrulhar aquela maravilhosas novidades, admirar as capas dos discos e escolher o local para colocar o gira-discos foi uma tarefa árdua que nos ocupou a manhã inteira. Depois do almoço, partimos, o avô e eu, para a sala e sob as instrucções dele deitei-me a seu lado no chão daquela bonita sala forrada a tapeçarias antigos com um belo teto trabalhado e um lustre que aliás herdei.

E começamos, não pela 1ª sinfonia mas pela 6ª. O meu avô explicava cada andamento enquanto ia mudar o disco (eu não tinha permissão para tal, coisa que muito me vexava), referia a época da estreia, os comentários e traduzia com uma facilidade que ainda hoje lhe invejo (mesmo sabendo algum alemão adquirido em duas incursões pelos Goethe Institut de Berlin e de Murnau). As notas que acompanhavam os discos e, sobretudo um longuíssimo artigo retirado do “der Spiegel” (suponho) que motivara aquela sumptuosa compra. Tudo isto, deitado a meu lado no chão protegidos apenas pela espessura do tapete que nos protegia do soalho. E todos os dias repetíamos o mesmo ritual, uma sinfonia por dia em ordem dispersa, acho que a 5ª foi a penúltima, até ao grande dia em que me foi apresentada, depois de traduzida a ode de Schiller de um velho e bonito livro com marcas de muita e constante leitura e pétalas secas sinal de que também a avó Dora o explorara.

Mais de sessenta anos depois, eu gostaria de vos descrever os sentimentos de um rapazola ignorante ao ouvir aquela peça que, continua a comover-me até às lágrimas cada vez (e são muitas pois além dos discos consta em todas as “pen” que trago no carro e que estão sempre em actividade.

A única coisa que recordo bem é que tomei a resolução de me inscrever na “Juventude Musical” e passar a assistir a todos os concertos que, nessa época, ocorriam no cinema Trindade pela tarde. E era da minha mesada que eu pagava a quota. Com os livros que começava a comprar sobrava-me o dinheiro certo para, aos domingos, ir ao cinema. Felizmente ainda não fumava nem tomava café...

Mas a que vem este relambório todo?

Pois ao facto de ter lido no Público de hoje que este vai ser o ano “Beethoven”, celebrando assim a data redonda dos 250 anos do seu nascimento. Devo ao eminente Carlos Fiolhais, um professor coimbrão, a notícia. Fiolhais é um desses cientistas que aliam um saber quase enciclopédico a uma impressionante folha de serviços na Universidade de Coimbra tendo mesmo sido director da prestigiosa Biblioteca da Universidade. Escreve com frequência nos jornais e fá-lo com inteligência, elegância e humor. Neste texto em apreço cita a tríade Haydn/Mozart/Beethoven, três monstros sagrados onde, a meus olhos –e ouvidos! – avulta o segundo de que sou fanático a ponto de ter duas edições completas da sua obra para já não falar dos cd, lp e dvd diversos que fui juntando e de que não consigo (oh egoísmo absurdo!) separar-me.

Ao contrário do avô materno Manuel, oficial do exército, o avô Alcino nunca foi uma pessoa fácil e não primava pela ternura para com os netos. Por isso conservo tão vívida a imagem de alguns momentos de intimidade à sombra de Beethoven. O velho génio surdo fazia milagres a começar pela música que já não ouvia. E esses dias a travar conhecimento com as sinfonias a que seguiriam depois, as sonatas, adoçam a imagem antiga e severa de m velho senhor que uma vez se deitou no chão para ouvir e explicar a um neto, que agora se recorda dele enternecido, o milagre absoluto da música imortal – duzentos e cinquenta anos depois e toda ela soa tão fresca e natural como no dia em que foi pensada.

Bom ano Beethoven para todos vocês!