estes dias que passam 330
Pedro Baptista Joaquim Pina Moura
(uma geração que desaparece)
“We few, we happy few band of brothers” Shakespeare, “Henry V”
mcr (Fevereiro 2020)
Os leitores que me desculpem. E duplamente. Uso o masculino apenas por economia e não por não prezar as leitoras, bem pelo contrário. De facto, estou farto de ceder ao politicamente correcto que geralmente não passa de prova de tolice.
Depois, por falar em geração, a propósito do Joaquim Pu+ina Moura e do Pedro Baptista. É que, de facto, eles, com tantos outros já desaparecidos e com alguns que ainda andam por aí, são claros exemplos de uma geração bem minoritária que .se bateu corajosamente contra o Estado Novo.
Agora, anda por aí muito boa gente a presumir de “esquerda” e a fanforronar sobre ideias “fraturantes”. Há mesmo uma compita para se ver quem é que fratura mais e mais depressa. Lamentavelmente, parecem desconhecer que o que se arroja pela janela entra, logo seguir e a correr muito, pela porta. A História, sempre essa maçada, está carregada de exemplos de pequenos, pequeníssimos robespierres de pacotilha que uivam por um eventual “terror” e se afogam numa pocinha de água da chuva...
Não é o caso dos dois camaradas que acabo de perder mesmo se o termo camarada, num sentido estricto e historicamente desaparecido seja um exagero. Nos tempos obscuros em que que vivemos e lutámos, havia uma boa dúzia de pequenos grupos que identificavam os seus escassos militantes com a anteposição da palavra “camarada”. . Isso e a “Internacional” cantada a plenos pulmões ainda que fragmentariamente, identificavam algo que em seu tempo se chamou Esquerda e que fazia pender sobre a cabeça dos que dela se reivindicavam uma boa dose de riscos todos penosos. A coisa ia desde os espancamentos nas manifestações até à prisão e depois à proibição de empregos públicos. E tudo isso, nnuma desoladora solidão pobremente partilhada. No Portugal desses anos, e agora refiro-me apenas aos “sessenta”, a rebeldia tinha um preço que muito poucos estavam dispostos a pagar.
O “povo estava sereno”, como mais tarde afirmaria Pinheiro de Azevedo, o medo guardava a vinha, a bufaria imperava e pouco ou nada acontecia.
Durante uma boa década, nem a guerra colonial, nem a sangria da emigração económica, perturbaram significativamente algum, fraco mas real, desenvolvimento ou o crescimento do PIB.
Portugal, “orgulhosamente só”, aguentava-se graças às remessas dos emigrantes, ao crescimento do turismo e da economia interna, o mercado do trabalho ia-se tornando mais feminino (o esforço de guerra mantinha longe cerca de duzentos mil homens) e até um proto “Estado Social” ia emergindo.
Só uns milhares de “díscolos”, perturbavam a harmonia do “país triste” e ensimesmado. Para esses a polícia usava a mão dura enquanto para o resto bastaram os famosos “safanões dados a tempo”.
Joaquim Pina Moura, militante do PCP desde muito novo, e Pedro Baptista, pertencente à segunda geração maoísta faziam parte do “movimento” estudantil.
Conheci-os, se bem me recordo, entre 68 e 69, entre a crise de Coimbra e o Congresso Republicano de Aveiro. Na altura não me atrevo a dizer que estávamos próximos porque não estávamos. O PCP apelidava todos os que não comungavam do seu ideário fortemente pro-soviético, de “esquerdelhos” e o resto da malta chamava aos do PC, “revisas”, "social-fascistas" e outros mimos que, aliás eram tradicionais na conturbada história do socialismo europeu desde quase a sua fundação.
E essa História estava presente em tudo, basta lembrar os nomes dos jornais partidários, desde o “Avante” (do russo Vperiod, órgão central da fracção bolchevique sediada na Suiça, Genebra) ao “Grito do Povo”, cuja primeira versão apareceu durante a Comuna sob a batuta de Jules Vallés – "Le cri du peuple" – e depois corporizou um infame jornal colaboracionista de Jacques Doriot. Na Esquerda maoísta apareceu durante o PREC um jornal, “A Verdade”, tradução literal do russo “Pravda” o que não deixa de ser irónico dado este ser o principal órgão do poder soviético que os da “Verdade” portuguesa detestavam...
E por aí fora...
De todo o modo, estando ou não de acordo, é este punhado de jovens quem durante aquele período (1962-1974) tenta, com grande risco e duras consequências, profissionais e pessoais, combater o poder instituído e sacudir o conformismo da sociedade portuguesa. Não foi o único bastião resistente mas foi dos mais generosos e influenciou decisivamente a juventude portuguesa mormente a universitária e boa parte daquela que participou na guerra colonial incluindo os que a recusaram desertando ou tornando-se refractários. Fiz parte desta última frente animando com três amigos uma rede de passagem de fronteira que funcionou muito bem graças ao facto de sermos apenas quatro e de tomarmos todas as precauções e cuidados que essa tarefa exigia.
E não foi pequena façanha pois a juventude de muitos era má conselheira e permitia largos descuidos e riscos desnecessários que muitas vezes tiveram os resultados esperados e funestos.
A minha relação com ambos foi diferente. Com Joaquim Pina Moura só privei mais tarde por altura dos “Estados Gerais” de Guterres já ele teria saído do PC.
Com o Pedro Baptista tive mais relações também elas quase sempre posteriores à sua saída da OCMLP. Em boa verdade, fui advogado de muitos militantes estudantis de "O Grito do Povo". Com os “Estados Gerais” tornamo-nos bastante mais próximos e, posteriormente, ao longo de todos estes anos, fomo-nos encontrando esporadicamente e tendo um bom número de conversas que pouco a pouco foram derivando para o campo da cultura, sobretudo da literatura. O Pedro começou a escrever e eu fui seu leitor sobretudo de “Sporá”. Não o acompanhei nos seus delírios regionalistas e muito menos no seu “portismo” a outrance mas admirei-lhe sempre o entusiasmo e a entrega que punha em todas as causas que abraçava.
Ambos são excelentes testemunhos dos humores do século e dos azares da História. E testemunhas, também pois viveram por dentro muitas das convulsões do último e mais exacerbado “socialismo radical”. Divergi deles desde cedo, a começar pela questão checa até ao culto de Stalin que estava “vivo no nosso (deles) coração”. Também nunca vi na URSS o sal e o sol da terra. O fim pouco glorioso da União Soviética, o desmoronar da “cortina de ferro”, a abrupta queda do muro de Berlim, o desastre absoluto da “Revolução Cultural” a patética gesticulação com o “livrinho vermelho”, um aberrante conjunto de máximas do venerado “Grande Timoneiro” que seria ridícula se não tivesse sido dramática e tremendamente mortífera, nunca me apanharam a jeito e muito menos me comoveram ou entristeceram. Às vezes (poucas vezes) a História está do nosso lado, do lado da liberdade.
Em boa verdade, qualquer deles percebeu a tempo a fundura do atoleiro moral, ético e político para que caminhavam e arrepiaram com coragem (e eventual angústia) o seu caminho. Saíram do armário ideológico e foram à sua vida. À vida. Simplesmente.
Cada vez mais me vou sentindo um sobrevivente tanto mais que era mais velho do que eles uma boa meia dúzia de anos. E cada um que morre é menos um testemunho, visto que, até à data, poucas são as “memórias” deixadas por escrito. Pior: algumas das raras publicadas não passam de desculpas de mau pagador por ter havido comportamentos menos gloriosos nas enxovias da polícia. Já, e há muito tempo, me referi aqui a esses tema a que não quero voltar por demasiado nauseabundo. Na “hora de verdade” e perante a sombria perspectiva dos interrogatórios policiais, houve quem não se tivesse comportado com a mais elementar decência. Nada tenho contra aqueles e aquelas que confessaram os seus “crimes” mas não suporto quem, além disso, levasse a falta de vergonha até à denúncia de companheiros e amigos. Isto para não falar de criaturas que não só diziam tudo e mais alguma coisa mas inventavam ainda mais crimes atribuídos a outrem. Não faz muito tempo, narrei aqui mesmo, a bizarra denúncia da minha presença num encontro conspirativo em Cantanhede, terra que de todo em todo desconheço, onde eu me teria gabado de bombista, coisa que sempre detestei e sempre condenei. A história viria de uma tal “Catarina” pseudónimo de uma “bufa” da pide. Pelos vistos nem a polícia acreditou na alarve acusação mesmo se, apesar de tudo, isso conste de um dos meus catorze processos (aliás treze porquanto um deles dá-me como médico em África, pelo que deduzi sempre que se referia a meu pai que, embora solidário com os filhos, nunca partilhou as nossas convicções políticas. Os informadores e os agentes nem sempre eram suficientemente profissionais: num outro processo instruído no Porto, o agente aponta-me como elemento da corrente ”leninista-marxista” – sic! – com “grossa actividade política” não especificada! – sic novamente ...).
Verifico que falar destes dois antigos companheiros foi também falar de mim. Ao fim e ao cabo, cada um à sua maneira e na situação concreta em que viveu ou vive, foi um modesto actor que não limitou a ver a peça mas quis, mal ou bem, nela intervir. Citando Brecht, sempre direi:
“Vós que haveis de surgir das
cheias
em que nos afundámos
....
pensai em nós
com indulgência “
* a gravura é da série da crise académica de coimbra.Eles não eram de lá, não podiam estar lá mas foram solidários com tudo o que lá se passou. Isso me basta e, decerto também basta à malta coimbrã que naquela altura bem apreciou toda a solidariedade possível. E o Joaquim ou o Pedro estiveram sempre, sempre, solidários.