Diário das semanas da peste
Jornada trigésima oitava
Agrião, maçãs e recordação
mcr, 25 de abril
nota: só o meu analfabetismo informático poderá ter feito desaparecer este texto de ontem que pensava ter publicado. Pelos vistos, voga noutra galáxia
A CG afirmou que estava cansada e mandou-me preparar agriões para uma sopa. Depois, a fatigada anunciou que ia fazer um bolo. Estive para rosnar que isso iria aumentar o cansaço mas, homem previdente, com três casamentos no lombo fora alguns intervalos amorosos, entendi sabiamente que, nestes casos de visível contradição, o silêncio é de oiro.
Obedientemente, preparei os agriões como ela me exemplificou, descasquei e cortei em quartos seis maçãs, desandei para o supermercado fazer umas compras urgentes, levei o lixo (pela 2ª vez) ao contentor da cave, pus a mesa e sentei-me frente ao computador, com um café da nespresso.
E, subitamente, as memórias de há quarenta e seis anos bateram-me à porta. Vamos por partes: o meu colega de curso e de escritório, José A. Mobilizara-me dias antes para a intentona. Eu, dada a minha experiência de passador de fronteira, teria de arranjar uma flotilha de carros e respectivos motoristas para, caso a coisa falhasse, levar os revoltosos que escapassem para longe das garras da polícia. Assim, mobilizei a família (a João e os pais), o Rui Feijó e a filha Teresa. Comigo eram cinco ou seis viaturas e respectivo pessoal condutor.
A Teresa mudou-se para a nossa casa, um dúplex, sogros em baixo e arraia miúda em cima, pretextando urgência nas operações de resgate. A minha sogra, Alcinda Delgado, antiga militante do “Socorro Vermelho” disse que dormiria tão placidamente como sempre pois tinha as maiores dúvidas sobre a eficácia dos revolucionários. Portanto, e nisso foi seguida pelo Jorge Delgado, recomendou que só a acordassem se a coisa desse raia. O Feijó, rejubilou, ficou em ânsias e resolveu dormir ao lado do telefone.
E a noite caiu connosco de prevenção.
Fracos revolucionários, também era a primeira revolução em que, na segunda ou terceira linha de fogo, nos alistávamos, fomos para cama à espera dos sinais da rádio. Primeira decepção: a senha que devia ser dada pelos emissores reunidos de Lisboa (ou qualquer nome parecido com este) não apareceu. Nem podia aparecer que no Porto essa emissora não se apanhava!
“enganámo-nos na hora”, decretei eu para as desconfiadas donzelas. E, com a passagem das horas e da emoção, adormecemos. De repente, no meio de um sono pejado de intermitências, acordei, seriam duas, três ou quatro da madrugada com um aviso, apelo do “movimento das forças armadas”. Uivei, acordei as duas criaturas, vestimo-nos num ápice e liguei para o Feijó que só conseguiu murmurar numa voz entrecortada: “vem buscar-me!”
Preveni os meus sogros, que não se comoveram especialmente e, pelas quatro, cinco da manhã, no mini da João arrancamos para o centro da cidade (vivíamos na Foz). Eu de piloto, o Rui de navegador, as duas perigosas atrás e cheias de genica, e ala que se faz tarde.
Primeira passagem, CICAP onde eu tinha vários colegas de curso a cumprir o serviço militar. Dois deles, sabia eu, metidos até aos cabelos na conspirata, o Zé Afonso e o Manel Simas. Outros, o Sottomaior, por exemplo serviam noutros quartéis, e eu preocupava-me por desconhecer qual o grau de conhecimento deles. Não que os não soubesse capazes de estar na conspiração. Mas, uma coisa é ter sido prevenido e aliciado, outra é ter sido esquecido.
Segunda passagem, desta feita pelo Quartel General, algumas luzes acesas como no CICAP mas nenhum movimento cá fora. Terceiro quartel, desta vez o da Guarda Republicana: nicles. Nem luz nem movimento. O mesmo se diga das esquadras de polícia. Abstive-me, por razões que facilmente se entendem de passar pela sede da PIDE onde, poucos meses antes estivera a ser outra vez!, a ser interrogado.
Pelas seis, ou mais tarde, descobrimos que o café das piscinas, na Constituição estava aberto. Achei que valia a pena sondar o local. Melhor dizendo, eu estava alucinado por um café dom ou sem revolução em curso. A restante comandita apoiou não sei se por falta de cafeína ou por curiosidade.
Lá dentro várias criaturas com ar de saberem qualquer coisa, desconfiadas a olhar em volta. Encontro a mulher de um dirigente sindical metalúrgico que logo me disse “ai se ao menos libertassem os presos políticos!...”
“Está feito”, respondi-lhe com uma fezada das antigas, das tontas, das de sempre, das que vinha alimentando há já quinze anos, quase metade da minha vida. “Ai Deus queira” retorquiu aliviada a criatura.
Mais outra volta por uma cidade entorpecida que começava a acordar. Tudo calmo! “Porra que isto é demais”, arrisquei. “Vamos para Miramar ver o que se passa com o Rádio Clube.
Finalmente uma luz, na manhã já de sol: uma meia dúzia de soldados de arma aperrada à volta do prédio. . às nove, resolvemos recolher a penates para saber notícias que o diabo da cidade parecia igual ao de sempre.
E as rádios a começar vagarosamente, timidamente a transmitir notícias fugazes, breves, escassas, de que qualquer coisa estava no ar. E em terra, raios me partam!, em terra, como em Miramar.
Ao meio dia, uma da tarde, já havia boas notícias.
Desandei, desta feita, sozinho para a baixa. Juntei-me a uns esgrouviados que queriam assaltar o consulado da África do Sul, nos Aliados. A porta de entrada do prédio parecia robusta e estava fechada. Tentámos apedrejar as janelas mas não tenho a certeza de se ter acertado nalguma. Obliquámos para a rua de Ceuta onde dois polícias aterrorizados iam sofrendo uma lapidação em regra com os calhaus sobrantes da tentativa de assalto ao consulado. Fui eu que os salvei arengando aos insurrectos que, na generalidade pertenciam ao Grito do Povo de que eu era advogado. Aliás, no grupo, estavam alguns clientes meus que ouviram o meu apelo e conselho e resolveram ir por outra guerra mais capaz.
Dei um salto ao escritório do meu antigo patrono, dr. José Sá Carneiro Figueiredo e pu-lo a par de tudo. Acto contínuo, pegou no telefone e ligou ao primo Chico Sá Carneiro. Passou-me o telefone, eu disse o que sabia, e depois o velho senhor, disse ao futuro líder do PPD. “E agora, Francisco, agora o menino é só política, ouviu? Só política!” (sic).
Nunca um velho grande e respeitado advogado foi tão veemente, tão perspicaz, tão seguro do futuro.
Eu conhecia Francisco Sá Carneiro desde o tempo em que era estagiário do primo e íamos a meio da tarde lanchar numa pastelaria perto do escritório já a dar para a praça D João !. Juntava-se ali um numeroso grupo de advogados, quase todos da oposicrática e alguns do meu tempo como o Vasco Airão Marques, o Mário Brochado Coelho ou o António Taborda. Acho que, uma que outra vez, aparecia também o Rui Polónio Sampaio, tudo gente que em Coimbra, andara pelas lutas académicas, pelo CITAC, enfim por tudo o que mexesse.
Curiosamente, o grupo dos Cal Brandão, António Macedo e outros socialistas ia a outro café, mesmo sendo vizinhos de rua.
Em breve os veria, a organizar afanosamente (com o Zé Luís Nunes, amigo e contemporâneo de Coimbra) as bases do futuro PS. Gente boa, gente que passara anos e anos à espera, que volta e meia ia presa só para lhes ser estragada a vida profissional, umas semanas e já está mas isso com um advogado e com os prazos dos tribunais, era terrível.
Oh que sorte tive, em os conhecer, privar com eles, mesmo se, na altura, eu os julgasse demasiado agarrados ao velho “reviralho”, aos velhos republicanos, à incapacidade organizativa o que os fazia parecer estar sempre atrás dos comunistas e, nos últimos tempos, atrás de tudo o que era esquerdismo infantil ou senil.
À noite, lá apareceu a Junta de Salvação Nacional, as primeiras imagens do delírio colectivo do Carmo, onde um advogado cheio de garra e de coragem, Francisco Sousa Tavares arengou à multidão. Sousa Tavares era monárquico e oposicionista, corajoso e aventureiro, exemplar. Seria bom que nestas alturas também o recordassem, fogoso, inteiro s sincero.
É que, subitamente, na semana que permeou entre o 25 A e o 1º de Maio, multidões gigantescas apareceram vindas dos nevoeiros espessos do Estado Novo onde hibernavam, medrosas e coniventes. De repente, era tudo anti-fascista ou mais ainda. Arre!, que volta a 180 graus tão rápida, que virar de casacas tão grande, tout le monde il est beau, tout le monde il est gentil tout le monde il est revolutionnaire... para parafrasear um filme, na altura, recente. Aquilo não era Portugal, era a Comuna de Paris! Sem os incêndios nem os prussianos à porta, claro...
No dia seguinte, pela tarde, reunião magna na casa da Fernanda Bernarda e do Zé Ferraz. Estávamos lá todos, os do grupo vindo de Coimbra, da crise de 69, que tínhamos mantido as reuniões conspirativas, a Isabel Ferraz, a Isabel Pinto, o Zé Bandeira, a Alberto Martins, a Joana “aleijadinha”, a Mi, o “Didi” Lopes Dias e a Lena, a Leonida e o Manel Strecht sei lá quem mais. Aliás, todos estavam metidos de um ou outro modo, comprometidos e maravilhados. “E agora? “
Sabíamos que a partir desse agora algo, bastante, ia ser diferente. Como, quando isso naquele dia era-nos indiferente. A revolução apanhara-nos nos trinta anos, no começo da vida profissional, depois de anos e anos de angustia, de medo, de coragem, e de sofrimento. Estávamos prontos para o tempo que iria começar.
O mesmo se diga para outros, os das anteriores gerações que tinham passado por agruras bem maiores e pago um preço muito mais elevado. Os já citados Cal Brandão e António Macedo que viriam a ser figuras icónicas do melhor que o PS alguma vez teve, do Rui Feijó, membro do grupo de jovens intelectuais de Coimbra que inauguraram o neo-realismo, que tinha feito parte do “grupo Shell”, anfitrião de tantos refugiados políticos que acolheu e escondeu na sua quinta na Senhora Aparecida, membro fundador da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos e futuro deputado constituinte ou o Jorge e a Alcinda depois dos anos passados em Izeda, ele preso no campo prisional que construía a cadeia, ela, companheira que o seguira com uma filha de poucos anos.
Poderia juntar cem, duzentos nomes a esta lista. Que naquele tempo anterior éramos tão poucos que nos conhecíamos todos e todos e cada um sentíamos como nosso o sofrimento de uma prisão de outrem e todos e cada um tivemos a oportunidade de sentir a solidariedade de todos os outros quando o azar nos bateu à porta. Tenho disso uma experiência razoável já que frequentei, contrafeito, alguns calabouços. Foram eles, foi a solidariedade deles o que me fez aguentar esses tempos adversos. Foi a ideia do olhar deles que me fez resistir à tentação de confessar fosse o que fosse. Não era coragem, era vergonha, medo de ter de sentir vergonha.
Na próxima jornada falarei disso.
Hoje é dia de festa. Nada de livros mas música. Por exemplo: ouvir Joy to the world pelos Three Dog Night (ou pelas Supremes ou pelo Little Richard). Ou então, ouvir o cd “The Big Chill (original motion picture soundtrack) Motown, 2072347. De certeza que a Amazon tem.
É a banda sonora do filme que por cá passou com o título “Os amigos de Alex”. A Fernanda Bernarda adorava esse filme. Como a Joana e o Zé Bandeira, já cá não está para voltar a ouvir “I heard it through the grapevine”
Agora, mesmo, recebo no telemóvel, uma mensagem da Isabel Pinto:”viva Abril e a liberdade”. Viva, claro, e vivas tu e toda a tua gente. E vivam os nossos amigos então exilados, o meu irmão Octávio, o outro Octávio (Ribeiro da Cunha), o João Quintela ou a Fernanda Granado. Oh que dias de vinho e rosas!