estes dias que passam 352
Diário das semanas da peste
Jornada décima nona
“oftálmicas” (lembrando o Francisco Cordeiro)
mcr, 4 de Abril
O Alcino, bom e velho amigo, deixou-me, na papelaria um maço de papéis com coisas escritas pelo Francisco Cordeiro, outro ainda mais antigo amigo. Conheci-o logo nos princípios de sessenta a propósito do associativismo estudantil. O Chico fazia parte da pró-associação de Medicina do Porto, era amigo de amigos e simpatizamos de imediato. Alto, magro, magríssimo, olhos encovados, calvície a despontar, um bom humor a toda a prova e uma cultura excepcional. Como os leitores, decerto, adivinharão, o Chico percorreu o cursus honorum político da época. Conspirou, foi preso, o costume. Fui-o encontrando, durante esses anos de vinho rosas, anos de brasa, de aventura. E quando, finalmente, cheguei ao Porto, reatámos, com maior proximidade, uma amizade que nunca esmoreceu. Quando celebrou os 50 anos, procurou-me para escrever um texto a propósitoda efeméride e que seria a prova de presença de cada um dos convidados. Assim fiz, e parece que ele ficou contente. Publico-o em separado (anexo à jornada 19). Infelizmente, pouco tempo depois, morreu subitamente ao fazer a barba e deixou os textos que irei ler, logo que as fotocópias estejam prontas. A única vez que li alguma coisa dele, fiquei fortemente impressionado. O Manuel António Pina, nosso comum amigo, era da mesma opinião mas razões que já não recordo deixaram o primeiro projecto de publicação em águas de bacalhau. Eu, sempre que apanhava o Alcino Loureiro ou a Manuela Melo insistia na urgência de ver os textos para perceber se havia possibilidades de os publicar. Eles concordavam mas nunca se andou para a frente. Amanhã irei finalmente lê-los, com os olhos embotados pela comoção e pela saudade.
Todavia, isto nada tem a ver com o título ou, melhor, com a palavra “oftálmica”. Quem me conhece já sabe que aí vem historieta, claro.
E começo por mim. 1960/1 o meu ano de caloiro. Não demorei sequer uma semana a descobrir que ao lado da faculdade de Direito, monumento nacional como nos lembrava o Doutor Carlos Moreira, o “Zé do Caco” (usava um monóculo) quando nos queixávamos do frio que se rapava naquelas salas imensas, estava a de Letras, pejada de raparigas e com um bar onde se podia ir por uma bica. Afreguesei-me num ápice. Ora, durante as horas que ali passava amesendado, habituei-me a ver uma bela, belíssima, caloira de Germânicas que aguentava a pé firme, sem pestanejar, os meus olhares mais fatais, concupiscentes e persuasivos. “Está no papo” dizia-me a mim mesmo. Faltava o principal, alguém que nos apresentasse, que naquela época aquilo era assim mesmo no embiocado país que era o nosso (e vosso, leitores mais novos que não imaginam como era “o incrível país de minha tia, trémulo de bondade e aletria”((Alexandre O’ Neil)). Este alegado derriço à distância acabou abruptamente quando alguém me disse que aquela jovem de belos olhos e olhar colaborante era mais míope do que uma toupeira. Não usava óculos por garridice.
Passemos ao Chico daqueles mesmos anos. Pelos vistos, também ele, tinha o hábito de trocar olhares ferozmente incendiários com qualquer exemplar do sexo feminino que lhe estivesse ao alcance do olho brejeiro e, vamos lá, merecesse o esforço. O Chico, mais inventivo do que eu, chamava a isto praticar “oftálmicas”. Com mais outra diferença. Ele não tentava namoriscar os alvos que eventualmente lhe aguentassem o olhar fulminante. Era o jogo que lhe interessava mais do que o resultado final. Alguém, um dia, quis apresentar-lhe uma moçoila de muito bom ver e o Chico indignou-se. “Que não, que não, que, assim. aquilo perdia a graça e o mistério”.
Foi ele, que, anos mais tarde, me explicou que, dada a minha história abortada no bar de Letras, também eu era um praticante de “oftálmicas” ou, pelo menos, merecia ser considerado um aspirante a tão complicado desporto. Fiquei comovido e disse-lho, acrescentando que ignorava quase tudo da prática e tudo, absolutamente tudo, da teoria. E o solícito “olhador” começou a dar-me um curso intensivo, dizendo que aquilo era como o “bumburismo”, ou seja a criação de um amigo imaginário a quem recorremos quando alguém nos quer chatear com convites que não desejamos. A teoria é explanada na peça de Óscar Wilde, “A importância de se chamar Ernesto”, uma leitura aprazível para estes tempos miseráveis. Ora aqui está mais um livro que, averiguei agora mesmo, está na “wook”. Leitores, cuidem-se, aguentem, não deprimam, não dêem hipótese a essa bicheza (se bicheza é) do covid. Ignorem-no olimpicamente como em “Os marcianos divertem-se” de Frederic Brown, colecção Argonauta, Livros do Brasil . Esta é uma recomendação à leitora que me tem por elitista. Um elitista que lê ficção científica!
* a ilustração: De cima para baixo: masc. UBI (Costa do Marfim), BAÚLÊ (Mali), GURUNSI (Burkina Faso), BOZO (Mali), TSCHOKUÉ (Angola. Lunda) Não estou seguro mas o bronze (casal dos primeiros antepassados ) será do Mali e da etnia DOGON. A figura armada, pau preto, é MAKONDE (Moçambique norte ou Tanzânia sul). Ao lado, e antes que me perguntem, estante dos dvd de filmes americanos. E depois parte da estante dos livros sobre África.