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Incursões

Instância de Retemperação.

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Instância de Retemperação.

estes dias que passam 409

d'oliveira, 31.05.20

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Os dias da peste

Jornada septuagésima quarta

“Enquanto agonizo...”

mcr, 31 de Maio

 

O título de hoje é tirado de uma citação de uma citação. Explico-me: Faulkner, um dos mais meritórios prémios Nobel de sempre, escreveu um romance a que chamou “As I lie diyng” que em português deu “enquanto agonizo” e mais tarde “na minha morte”. Todavia, William Faulkner citava a Odisseia, mais propriamente os versos 434/5 do canto XI (fala de Agamémnon a Ulisses). Na brilhante tradução de Frederico Lourenço (Quetzal, 2018), este usa a palavra “moribundo” que, sendo exactamente a mesma coisa, foge da famosíssima citação inglesa que deu título a Faulkner.

Tudo isto, num relance, veio-me à memória por causa das imagens infames, obscenamente infames, do assassínio de George Floyd às mãos de um polícia empedernido com um longo historial de violência.

Há muitos, muitos anos, praticamente cinquenta, preparei e traduzi, com a colaboração preciosa da Maria João Delgado, uma antologia sobre os “panteras negras” com o título “Os panteras negras” (Centelha ed. Coimbra, 1971) que, como se calcula teve uma vida algo agitada. Primeiro, uma imprevista rusga da polícia a uma tipografia, deu com a capa já impressa e, sem conhecer o libro que estava em fabrico noutro lugar, deu azo a uma proibição de venda. Depois, editado o livro com a mesmíssima capa, começou o cerco. A polícia corria as “capelinhas” à procura do livrinho e os livreiros escondiam-no bem escondido e continuavam a vendê-lo. Curiosamente, entre os catorze processos que contra mim correram pela PIDE/DGS, nada consta desta actividade delitiva. Ou então fui eu que não li tudo...

Uns anos antes, em 1968, movido pela recompensa monetária possível, concorri, sob o pseudónimo de Pickwick, ao prémio de ensaio nos jogos florais da Queima das Fitas, com um longo texto “algumas notas para a compreensão da revolução negra nos E.U.A.” Provavelmente, por não haver muitos concorrentes, ganhei os dez contos (uma fortuna, naquele tempo). Repeti a graça, no ano seguinte mas a queima foi anulada e o prémio foi igualmente anulado. Dessa feita, o meu trabalho era mais sobre África e intitulava-se “África: Uhuru! (notas para a história do colonialismo e do neo-colonialismo)” e eu usava o aguerrido pseudónimo de Shaka (nome de um grande chefe zulu – nguni que viveu entre 1787 e 1828). Segundo o Joaquim Namorado, presidente do júri, eu teria voltado a ganhar mas fui vítima indirecta da crise na qual colaborei de corpo e alma.

Em 71, um editor de pé de escada, “éditions le nouveau etudiant noir”, negro e afrancesado, virulentamente pro-chinês, resolveu editar os dois textos em conjunto mas, como entretanto fui mais uma vez preso e enviado para Caxias, perdi totalmente o rasto da criatura, da edição (eu trouxera de Paris, as primeiras provas” mas a polícia deitou-lhes a unha, felizmente aquilo vinha com um terceiro pseudónimo, também ele perdido ( quando voltei a Paris, já nada restava da briosa editora, do seu animador e das suas produções. Confesso que me dói um pouco este extravio da minha obra imortal e combativa –que, aliás, sofrera grandes acrescentos - mas contra o irremediável não vale a pena derramar sequer uma lágrima. Lá se foi o Nobel ou algo parecido mas reservado a ensaios militantes...).

Tudo isto, me veio, como disse, à memória, ao ver horrorizado, irado e sufocado, a morte em directo de um pequeno delinquente.

Nada disto me destrói a ideia que tenho dos Estados Unidos, da sua literatura, do seu jazz, de toda a restante música popular americana, do seu cinema. A “América”, espero-o, é mais forte do que os crimes de uma minoria de criminosos, do que a estupidez de outra minoria de políticos ou da avidez de mais uns quantos empresários. E do fanatismo de outras, essas sim poderosas, minorias religiosas.

As bojardas bolsadas por Trump a propósito dos tumultos não me impressionam. De Trump como de Bolsonaro, dos tiranetes da Venezuela e da Nicarágua e dos seus admiradores portugueses, é de esperar tudo desde que caiba numa fossa.

E mesmo que, como aliás se vê nos documentários televisivos, a justa indignação seja, por vezes, acompanhada de pilhagens e ataques ao pequeno comércio nos bairros negros, nada me permite condenar a grande, esmagadora, maioria dos manifestantes.

É verdade que são os bairros negros que mais sofrem pela acção de gangues organizados servindo, eventualmente, interesses obscuros ou sendo até notoriamente promovidos por racistas e suprematistas brancos, mas disso temos na Europa fortes exemplos seja em França na periferia parisiense, seja noutros locais onde qualquer manifestação corre o risco de ser ultrapassada pela acção de grupos como o black block ou outras organizações, formais ou informais, afins.

Subjacente à acção desses bandos de energúmenos, provocadores, altamente organizados, há a ideia de que o uso da violência, levará o establishment a reprimir cada vez mais fortemente as “massas” e estas, finalmente, cansadas de tanta opressão, revoltar-se-ão e destruirão o “sistema”. Nenhum destes pressupostos, com, aliás, um longo historial, se verificou e é duvidoso que alguma vez se verifique. Fica apenas a violência pela violência, a pobreza aumentada, a vida dos mais humildes pior.

Não são muitos os livros de autores negros americanos traduzidos em Português. Todavia, lembraria o esquecido Richard Wright que teve três livros traduzidos em português (O negro que quis viver, filho nativo, os filhos do pai Tomás) todos de excelente factura mas desaparecidos dos catálogos e das livrarias. Ultimamente apareceram dois livros de James Baldwin (“Se esta rua falasse” e “Se o disseres na montanha” Existe também “Da próxima vez o fogo” edição brasileira que talvez se encontre na livraria brasileira de Lisboa (Travessa).E, claro Toni Morrison, premio Nobel 1993 que tem dois livros traduzidos “Deus ajude a criança” e “Beloved”

Um quarto autor que nada terá em português mas que descobri nos idos de sessenta é o poeta, dramaturgo e ficcionista Langston Hughes. A primeira que ouvi falar dele foi pela boca do Jorge Aguiar, o “Cérebro”, um dos elementos da direcção da AAC sob a presidência de Carlos Candal. Trazia um volume de poemas traduzidos para francês “Poémes” (Seghers ed) Deixou-me ler alguns enquanto bebia a bica e fiquei maravilhado. Corri à “baixa” e consegui milagrosamente comprar esse volume. Mais tarde, sempre em francês encontrei “La poésie negro-africaine” (Seghers) que me foi roubada na razia policial acima citada e, finalmente, the last but not the least, “L’ingénu de Harlem” (“The best of Simple”, no original) que comprei em segunda mão em Paris em 1968. O livro trazia uma dedicatória do autor cuidadosamente apagada pelo anterior dono...

Este Simple é simplesmente uma súmula do humor, do bom senso, da subtileza dos negros americanos. Recordo que, no século passado, um programa de rádio (“Café Concerto”?) passou inúmeros diálogos retirados deste conjunto de histórias. E não sei porquê, mas associo sempre o nome de José Duarte, o grande divulgador de jazz, a esta empreitada. Se foi, mais um título de nobreza para o seu currículo, se não, não faz mal nem o diminui.

* na vinheta: Tommy Smith e John Carlos dois atletas negros norte americanos tiveram a coragem de erguer o punho fechado no pódio dos 200 m dos jogos olímpicos do México. Um escândalo tremendo, e o fim da carreira para dois extraordinários corredores. Quiseram mesmo retirar-lhes os títulos olímpicos mas parece que alguns elementos do Comité Olímpico tiveram a coragem e a ousadia de se oporem.

 

 

estes dias que passam 408

d'oliveira, 30.05.20

d364258539b9ac184c30876991362dc3.jpg d Juan de aus

os dias da peste

Jornada septuagésima terceira

Isto não é tudo rosas

mcr, 30 de Maio

 

Há muito tempo que não estava um dia assim feio como o de hoje. Do sol nem uma réstia, só saudades. O calor, depois desta semana de Verão, foi de férias para parte incerta. Até a CG que carrancuda protesta contra o à vontade de certas pessoas que se desconfinam da cabeça até aos pés, entristou: “coitadinhas das crianças que não podem ir à praia!”

A CG estava a lembrar do neto pois ontem a ana mandou-nos uma fotografia com a criaturinha doida de alegria numa piscininha insuflável, cheia de água, na varanda. E ele brincava nela cheio de cuidados e sorrisos.

Cheira-me que este neto vai ser daqueles que não sai da água enquanto não estiver roxo e á beira duma pneumonia dupla.

Eu imagino a decepção dos portugueses com um fim de semana tão frouxo, tão de monco caído. E, mais do que isso, penso nos jornalistas e nos comentadores de serviço subitamente órfãos da grande notícia que seria uma enchente à beira mar.

Enquanto uns se extasiariam com a disciplina dos banhistas que lavam as mãos antes de entrar e depois de sair do areal, outros condenariam severamente a invasão descontrolada dos espaços privados e privativos de terceiros e profetizariam sei lá que desgraças a vir.

Deixemos, porém, a praia negada e vamos a outra indagação. Lisboa e seu termo registam farta dose de novos contágios. Sobretudo nas zonas periféricas onde as empresas proliferam e no bairros que a pobreza nunca abandonou. E comecemos por aí. Eu, ao ver as imagens do ue suponho ser o “bairro da Jamaica”, prédios semiconstruídos com o tijolo à vista, sem reboco nem pintira, filharada eléctrica por toda a parte, ruas de terra batida e imundas, pergunto-me se aquilo não é um arrabalde de Luanda.

Ninguém, das bandas do Estado ou da autarquia se lembrou de deitar uma mão a umas toneladas de cal e tinta, de pelo menos ensaibrar as ruas, tentar fazer um arremedo de passeios? Não me digam que isso seria apenas remendar a excessiva pobreza, o horror da construção. Claro que a solução definitiva não passa por aí, mesmo se talvez tentar acabar a construção dos prédios, dotá-los de água corrente e luz, um a um, dando aos moradores meios de ajudar nesse esforço, seria um caminho melhor. Agora manter aquilo assim, permitir que os condenados a viver naquele chiqueiro continuem a ser olhados como feios porcos e maus, é que não.

O mesmo país que gastou uma fortuna a fazer estádios de futebol que não tem serventia nem espectadores, que faz rotundas em tudo o que é sítio e estradas que hão de continuar desertas, não terá um milhão ou dois de euros para acudir aquele caso?

Mas há mais, retorquirão, e nesses? Pois nesses, o mesmo, respondo. Com o esforço de todos, claro, com os meus e os vossos impostos porque ali também deve haver portugueses ou gente que, vinda de outros lados, entende Portugal como um sítio melhor para viver.

Anda tudo muito preocupado com uns passaportes para sefarditas ou, melhor, alegados descendentes de judeus portugueses que foram expulsos (ou inteligentemente saíram a tempo, que também os houve) de Portugal no reinado de D Manuel (por acaso o mesmo rei que castigou severa e implacavelmente a corja de criminosos religiosos e leigos que massacrou judeus em Lisboa).

Estes “reparadores” de injustiças que se perdem no tempo, não terão nada a dizer sobre esta injustiça actual e diária?

Eu sei que vão acusar de misturar alhos com bugalhos. Misturo sim senhor. É que não se pode ter um olhar ético sobre um mundo distante e guardá-lo no bolso o casaco no presente. Dar uns passaportes a pessoas que obviamente nada tem a ver com o Portugal do século XXI, que não falam português, que não conhecem o país, a sua cultura e as suas gentes (muito menos o bairros da Jamaica que por aí pululam) a titulo de reparar algo sucedido há quinhentos anos parece-me ser coisa de espantar.

Claro que, se um , dez, mil, dez mil judeus, praticantes ou não, de Israel ou de qualquer outro lugar aqui se apresentar alegando que quer aqui fazer ou refazer a sua vida, não tenho qualquer dúvida em aceitá-lo(s). O facto da confissão religiosa não me impressiona, nem sequer se o candidato for um ex-ocupante de um colonato na Cisjordânia, terra roubada aos palestinianos.

Qualquer pessoa que se queira estabelecer em Portugal, para aqui viver, trabalhar, educar os filhos, é benvinda. Ou como diz aquele quadrinho de cerâmica que se compra nas feiras “Benvindo quem vier por bem”

Agora, arcar, mesmo simbolicamente, com culpas dos tataravós é que não! E o mesmo digo sobre a colonização ou a escravatura. Então esta última que foi generalizada. Saberão os que me culpam de descendente de escravocratas que em África, hoje, 30 de Maio de 2020, ainda há escravos?

Que os comerciantes de escravos os compravam na costa a vendedores negros que faziam razias no interior? Saberão que nessa época, na Europa, ainda havia escravos brancos, europeus? Que alguns destes foram inaugurar as terras não virgens do que hoje são os Estados Unidos? Que Portugal terá lenta e nem sempre misericordiosamente, longe disso, integrado na sua população dezenas, muitas dezenas de milhares de escravos? Basta ver a iconografia, a toponímia, o cabelo crespo de muitos portugueses actuais.

Eu até perceberia que em certas povoações da zona ribeirinha do Tejo, esses descendentes de escravos pedissem justiça e reparação. Porque, pelos vistos, viveram sempre marginalizados, ostracizados, esquecidos do progresso e das “farturas” da sociedade afluente.

Mas não, não é daí que vem o queixume, a acusação, a reclamação. É de cidadãos estabelecidos na sociedade burguesa, na periferia da universidade e da política, longe dos bairros da lata, das “jamaicas” (outra vez!), da segregação e da perseguição ou dos maus tratos policiais.

É que, mesmo na Europa, não é tudo farinha do mesmo saco. O olhar sobre o outro, o estrangeiro, o de cor ou religião diferentes, não é o mesmo em Budapeste ou Lisboa. E quem diz Budapeste, poderá dizer Varsóvia, Moscovo ou Sófia. E não me refiro apenas aos tempos actuais mas aos segundo e terceiro quartéis do século passado onde a “solidariedade” com os povos “explorados” era a palavra de ordem.

Li, há quanto tempo!, umas reportagens sobre a famosa “Universidade Patrice Lumumba”, na União Soviética. Até os mais acérrimos estudantes marxistas leninistas negros se queixavam de racismo. É que a cor da pele não se esconde! Um judeu de origem europeia (que em Israel também os há e não especialmente estimados vindos da Abissínia) pode passar perfeitamente despercebido na multidão, a menos que use qualquer sinal especial distintivo sobretudo dos ortodoxos. Um preto (notem que não disse negro, que é a mesma coisa em mais politicamente correcto, sendo “africano o supra sumo da correcção) é preto em qualquer sítio até em África.

Voltemos porém ao tema do recrudescimento do covid na zona de Lisboa. Seria bom lembrar que aí se concentram muitas empresas e que os seus trabalhadores para chegarem ao local de trabalho usam os transportes públicos. E que não basta avisar que estes não devem vir apinhados como sempre vieram e agora ainda mais devido à baixa de preço dos transportes, porque a menos que ponham um polícia em cada carruagem de comboio e em cada autocarro, estes serão tomados de assalto por multidões que precisam de trabalhar e para isso de chegar ao seu posto de trabalho a horas. Nem sequer os horários desfasados ajudam muito.

As empresas juram que desinfectam, “higienizam” (outro neo-palavrão!), obrigam ao uso de máscara (e aqui haveria muito a dizer que eu ao fim de um quarto de hora de açaimo já nem consigo respirar), luvas (mas há tarefas em que as luvas são um empecilho...) e tudo o mais. Mas a multidão está lá e não é crível que o “distanciamento social” possa sempre ser rigorosamente cumprido.

Entre as medidas tomadas registo com algum espanto a não abertura dos centros comerciais. Se há empresas que tomam a febre a quem entra porque não fazer o mesmo nos centros comerciais. E até podem criar controles em várias zonas para o caso de alguém conseguir baldar-se. Os centros tem seguranças que podem vigiar o uso de máscaras. Os lojistas tem de cumprir regras estritas quanto ao acesso às lojas. Que diabo de medida é esta?

(nota: não vivo em Lisboa, quase não frequento centros comerciais, aliás conheço poucos, três no máximo e quase sempre por causa das fnac).

A medida sobre os centros entra em perfeita contradição com a que rege as viagens aéreas. Mas aí quem manda é a União europeia e a frenética necessidade de turistas...

E, por hoje, basta.

Estou a ler com muito gosto um livrinho de José Cutileiro: “Abril e outras transições”. Pequeno, barato, encadernado e inteligente. Querem mais?

*a vinheta: bestiário de d. Juan de Áustria.

estes dias que passam 407

d'oliveira, 29.05.20

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Diário dos dias da peste

Jornada septuagésima segunda

Já ganhei o dia...

mcr, 29 de Maio

 

... Ou pelo menos não o perdi.

Eu explico: estes dias de sol e calor obrigam os clientes da esplanada, pelo menos este cliente, ao uso de óculos escuros (graduados). Assim, sob um guarda-sol generoso e amplo, leio comodamente os jornais e em breve voltarei a escrever o blogue aqui. Os óculos sem cor guardo-os no bolso da camisa.

Or, hoje, quando já regressava a casa, ajoujado de compras dei por falta dos óculos normais. Os outros, os escuros como os trazia preso a um fio mantinham-se honradamente pendurados ao pescoço.

“Que diabo!, pensei, logo uns óculos novos, melhor dizendo com lentes novas que me tinham ficado por uma nota preta”. E pus-me em campo à procura dos óculos desaparecidos.

Felizmente, tinha perfeitamente fresca a memória dos passos que tinha dado: papelaria para a jornalada, esplanada para os cafés da praxe, lavandaria nde fui entregar roupa para engomar (embirro com esta palavra mas os meus leitores do norte embirram com o “passar a ferro”, e hipermercado. Na papelaria não se tinha dado porv nada, na esplanada idem mas, já agora, aproveitei para mais uma bica e mais três páginas do Monde (selection hebdomadaire). Na lavandaria, a empregada lembrava-se dos óculos mas eu tinha-os no bolso quando me fora embora. Resta o híper, pensei sem grande esperança.

De todo o modo, só perdia tempo se os não encontrasse. Todavia, o anjo da guarda dos distraídos estava atento e era brioso. O “segurança” disse-me logo que sim senhor, alguém lhe tinha vindo entregar uns óculos. Eram os meus. Desfiz-me em agradecimentos, rezei uma avé Maria pela boa alma que os entregara e rumei a casa definitivamente, consolado com a ideia de ter poupado umas centenas de euros.

A CG achou que eu tivera muita sorte pois, informou-me pressurosa, há quem meta tais achados ao bolso para reutilizar as armações. “E logo você que tem manias caras!” –“Manias?”, protestei sem grande convicção. “Manias, sim, ou melhor, vícios!” retorquiu ela com ar habitual com que me censura as compras que faço, desde os livros às camisas.

Nestes casos, a melhor defesa é o silêncio ofendido. De resto fui salvo por um telefonema da Ana que pedia emprestado um carregador do mac Air pois o abencerragem tinha roído o fio do dela. Siderado com o apetite eléctrico dum menino de dois anos e meio, lá fui com dois carregadores para ela escolher o adequado. O pequeno roedor quando me viu armou o habitual banzé de boas vindas foi-me mostrar o armário novo do quarto dele. A mãe contou-me a aventura proto-alimentar da criaturinha que fingia que não nada com ele. E vim-me embora, com um negro pressentimento sobre o futuro do carregador que acabava de emprestar, pois é bem sabido que roedor que rói um carregador rói um cento.

Note-se que o Nuno Maria não é caso único mas apenas mais moderno, mais tecnológico. Um amigo meu dos tempos de Coimbra, contou-me que as sobrinhas, por acaso filhas de outro amigo do mesmo tempo e lugar, roíam os parapeitos das janelas. As roedoras em questão são agora mulheres, se calhar já com filhos. Será que estes também aprimoram a construção civil roendo partes do construído? Ou perderam essa funcionalidade?

Deixemos, porém, este grave assunto da degustação de material electrónico coisa perfeitamente adequada a estes tempos confinantes. Que há de fazer uma criaturinha senão tentar infernizar a vida a quem a mantém prisioneira do covid?

Sobre este estafado tema, agora a moda é, julgo, saber que nada se sabe. Ou seja voltamos ao princípio de Março, ou mesmo antes.

No meio desta atribulada confusão, o que me espanta é a vitalidade de dois cavalheiros pouco recomendáveis. Os senhores Trump e Bolsonaro. O primeiro afirma que anda a cloroquina há semanas. A Organização Mundial da Saúde avisa cada vez mais fortemente que aquilo faz mal. Das duas uma: Ou Trump toma o dito medicamento para a malária ou não. Neste último caso, mente, coisa que nele parece ser tão natural como respirar.

O palermóide do Brasil, esse também recomenda a cloroquina enquanto se vai desfazendo de ministros da Saúde com uma velocidade que não é pasmosa porque o Brasil é de si próprio um tanto ou quanto delirante. A verdade é que o espécime se passeia entre apoiantes igualmente mentecaptos e nada lhe sucede!

Pessoalmente, começo a suspeitar que o vírus protege os descerebrados. E tenho mais provas do que muitos dos especialistas que tem andado a pavonear-se pelas televisões que já disseram tudo e o seu contrário. Aceito que me contradigam, que me provem que a falta de dotes de inteligência e bom senso serve de vacina para o covid. Mas façam o favor de provar.

Algo que não precisa de prova é a situação dos cidadãos negros nos Estados Unidos. Morrem mais de doença, de violência inter-étnica, de violência dentro da sua própria comunidade e, sobretudo de violência policial.

As imagens que passaram na televisão são inacreditáveis. Um criminoso fardado com o joelho em cima da garganta de um homem algemado que previne que não consegue respirar. Pelos vistos o polícia não acreditou. Tomará cloroquina? Será de tal modo imbecil que não perceba que um joelho sobre a garganta de alguém, é uma violência inaudita?

E agora? Parece que o despediram. Ninguém o prende?

 

Obviamente, se há autor que eu aconselhe é Chester Himes. Descobri-o há muitos anos e fiquei absolutamente fascinado. Devo confessar que só o li em francês e depois em espanhol. Suponho que não há traduções portuguesas, coisa que me espanta. Ou melhor, pouca coisa me espanta no domínio da edição portuguesa, tanto mais que um outro autor que tem detectives pertencentes à minoria índia americana tem meia dúzia de livros publicados cá. Refiro-me a Tony Hillerman, leitura mais que recomendável. Hillerman é um especialista da história e cultura navajo, um dos povos que vive na zona fronteiriça dos quatro estados. Curiosamente, os navajos foram escolhidos para dentro do Exército Americano, servirem o sistema de transmissões. Os japoneses nunca conseguiram perceber que língua era aquela. A nota mais terrível desta história é que cada soldado navajo tinha um acompanhante com a missão de o matar caso houvesse hipótese dele ser feito prisioneiro!....

A nota mais pungente é esta: na nação navajo a média de mortes por covid é assustadora. É o país de Trump...* na vinheta :máscara kanaga, etnia Dogon, Mali 

 

estes dias que passam 406

d'oliveira, 28.05.20

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Diário dos dias da peste

Jornada septuagésima primeira

28 de Maio sempre? Depende de que ano se trata...

mcr, 28 de Maio

 

Leitores não se arrepelem. Maios há muitos e não é do de 1926 que falo mas de um outro mais próximo, mais significativo para a geração a que pertenço e que, como a fotografia indica, a mim diz muito.

Imaginem, primeiro o espaço visto. Estou a arengar para uma verdadeira multidão que enchia por completo o jardim da Associação Académica de Coimbra. E era um jardim grande podem crer quantos o não conhecem. Por cima da “mesa” da Assembleia Magna, cujo presidente, o Décio está ao meu lado, havia uma comprida varanda que ia de um lado ao outro das salas de convívio e do refeitório, Nós estávamos no piso do ginásio onde, por vezes se realizavam as “magnas” que é assim que se apelidam, oh tradição!, as assembleias gerais da Associação Académica de Coimbra.

Não vou atirar números que os não tenho e os que há são pouco fiáveis. Todavia, estavam ali, nessa manhã de 28 de Maio de 1969, cerca de três mil estudantes duma universidade que na altura teria entre sete e oito mil alunos, voluntários incluídos. Nunca uma “Magna” o fora tão exactamente.

O dia amanheceu soalheiro, uma ligeira brisa, como é que lembro disto? Pois porque enquanto falava havia um grupo de pessoas sentadas na relva com uma camisola vermelha suspensa dum ramo. E a camisola agitava-se docemente.

Eu estou a dizer que a assembleia decorreu de manhã mas admito que cinquenta e um anos depois possa estar equivocado. Mas se olharmos bem para a fotografia e se soubermos que a orientação daquelas varandas era mais ou menos noroeste parece plausível que isto acontecesse de manhã.

E porque é que o dia 28 de Maio de 69, quarenta e três anos depois do outro, do de Braga, do que marcou o “passeio” militar de Gomes da Costa, um antigo herói republicano, até Lisboa, foi importante, pelo menos para a geração dita de Coimbra 69?

Foi neste dia, já quase em cima da época de exames, que finalmente, uma assembleia decretou a greve geral aos exames.

Desde o dia 17 de Abril, data da inauguração do edifício das Matemáticas e da manifestação que o gesto imbecil de Américo Tomaz ao recusar dar a palavra ao Presidente da AAC, provocou, nada mais foi como dantes na velhíssima universidade.

Eu, mesmo hoje, não consigo entender um gesto tão torpe, tão burro, tão prenhe de consequências que facilmente se adivinhavam.

Vejamos: depois de três anos de “comissões administrativas” desacreditadas que, aliás, acabaram ( ou viram-se forçadas a) por propor um regresso à normalidade, uma fortíssima maioria de estudantes votou a favor de uma lista proposta pelo Conselho de Repúblicas e pelos “Organismos Autónomos” (Orfeon, TEUC, Tuna, CITAC, Coral de Letras, Coro Misto e GEFAC) que, de per si, agrupavam mais de mil estudantes. Mesmo outros organismos informais (Conselho de Veteranos ou Comissões da Queima das Fitas faziam parte dos apoiantes de um regresso imediato às liberdades académicas, a uma Associação independente e democrática.

Entre o corpo docente, contavam-se também umas dezenas de professores simpatizantes com a causa estudantil. Para só referir Direito, a faculdade eventualmente mais conservadora, Teixeira Ribeiro, Férrer Correia, Eduardo Correia, Mota Pinto e Orlando de Carvalho, para só citar catedráticos, eram conhecidos como apoiantes dos estudantes. As restantes faculdades, com relevo para Medicina, alinhavam pelo mesmo diapasão. A “Academia”, no seu sentido mais pleno, não acompanhava as “autoridades académicas” (Reitor, Senado e directores de faculdade esses sim redondamente, et pour cause, apoiantes do Governo e, em alguns casos, mais radicais do que as autoridades ministeriais).

Havia, nesta Universidade um forte e arreigado respeito pelas tradições (nem todas especialmente recomendáveis) e nisso incluía-se, desde sempre, o reconhecimento dos líderes estudantis, incluindo os informais. E desde que a Associação Académica apareceu em finais do século XIX os seus dirigentes foram sempre reconhecidos e convidados para todos os actos importantes da vida da Universidade.

Nada fazia prever desfecho diferente para a inauguração do edifício agora em causa. De todo o modo, para além dos muitos estudantes que se apinhavam na sala onde decorreria o acto solene, cá fora juntaram-se mais umas centenas de estudantes que empunhavam cartazes referentes à a criação de uma União Nacional de Estudantes, a um par de reformas pedagógicas e outras tantas de carácter académico-social (bolsas, etc). Nada de grave, nada que fosse novidade, nada que sequer pudesse chocar especialmente as autoridades. Todas as “reivindicações” constantes da dúzia de cartazes tinham feito parte do programa da lista vencedora das eleições vários meses antes.

No entanto, dentro da sala onde decorriam os habituais chatíssimos discursos próprios destas ocasiões, perante uma panóplia de ministros e professores, sob a presidência do Presidente da República, o ambiente era calmo. Quando depois de uma boa hora de discursos pareceu haver um pequeno intervalo, o Presidente da AAC levantou-se e, respeitosamente, pediu ao Presidente da República para usar da palavra. Este, um pouco confuso, como era seu timbre, diga-se, aquiesceu dizendo que antes falaria mais um ministro, no caso o das Obras Públicas. E o ronronar comemorativo continuou.

Quando o ministro acabou de soletrar o seu panegírico. Américo Tomás levantou-se e encerrou a cerimónia.

Foi um momento digno de uma comédia dos irmãos Marx: as figuras dos figurões a tentar escafeder-se e a rapaziada a levantar-se num sobressalto numa berraria infrene. A confusão armou-se. As autoridades a cavarem entre encontrões e insultos, uma desordem total. Cá fora a multidão arremeteu em direcção à porta e secundou a vaia monumental que saudava a saída indigna das autoridades. E eu consolado... não só por ter ficado a la fresca, cá fora, a fumar os meus cigarrinhos mas sobretudo por poder chamar uns quantos nomes aquela corja académico ministerial.

Saído o poder, instalou-se na sala o contra-poder. E Alberto Martins lá debitou o discurso. Palmas, muitas palmas e o povo “sereno” começou a debandar para o almoço. Ainda a noite era uma criança e soube-se que o presidente da AAC fora preso, provavelmente por uma brigada da pide. Em alguns locais, mormente na Sé Velha, houve pequenos motins, bastonadas, o costume.

E no dia seguinte, a “academia” indignada juntou-se no Pátio das Escolas numa improvisada Assembleia que, além de verberar a “repressão”, imediatamente exigiu numa dúzia de moções, a libertação de Martins e mais umas quantas coisas.

A polícia não se mostrou mas Martins também não. E a indignação cresceu. A direcção órfã de presidente pediu uma magna que reiterou tudo o que já fora dito na véspera e proclamou “luto académico” ou seja greve às aulas.

Martins entretanto foi restituído à liberdade, aureolado com as palmas do martírio. Mas as autoridades, desnorteadas, entenderam reabrir os confrontos desta feita ameaçando com processos disciplinares. Gasolina sobre as chamas! E o clima febril que já não era pequeno aumentou.

Meia dúzia de dias entre greves cruzadas, o tonto ministro da Educação resolveu vir à televisão em horário nobre para discorrer sobre o que ainda não era especialmente grave. Os cafés da cidade encheram-se. Os proprietários alugaram televisões para que a freguesia ouvisse S.ª Ex.ª e, ao mesmo tempo, consumisse. Vê-se que os comerciantes coimbrões conheciam os seus hóspedes melhor do que as autoridades conheciam os seus discentes.

O discurso de Hermano Saraiva, homem pequenino que provavelmente não tinha dotes de bilarino, foi uma obra prima de imbecilidade e teimosia. E de ameaças. A última com que terminou a sua pobre cena de faca e alguidar foi mais ou menos esta “ E amanhã espero que todos os estudantes de Coimbra estejam presentes nas aulas”. O silêncio estupefacto e irado com que as palavras do homenzinho foram ouvidas, no café Mandarim onde eu estava, foi sublinhado com um comentário rápido de alguém lá no fundo. “Esteja descansado, senhor Ministro!” uma gargalhada homérica, uma salva de palmas e encomendas de cervejas, muitas cervejas, barris, foi a resposta. Presumo que em todos os outros estancos da cidade, o clima e a sede fossem idênticos.

E Coimbra reamanheceu com uma greve total. E assim continuou pois o pobre Saraiva não percebia nada de nada e sobretudo era uma galinha pedrês vaidosa que presumia de pavão.

A Coimbra estudantil instalou-se na greve às aulas. A equipa de futebol trazia sinais brancos de luto nos equipamentos. As fitas e grelos recolhidos nas pastas, as batinas fechadas até cima, a capa a cair direita dos ombros sem se traçar, a praxe de rua suspensa com alegria e estupor dos caloiros, as reuniões de cursos, de faculdade, as assembleias, as discussões, algum êxodo de estudantes chamados pelas famílias mais temerosas, tudo contribuía para um desenlace previsível. A Queima das fitas (a exemplo de 1962) foi anulada. A população de Coimbra, prejudicada com isso, não protestou contra os estudantes mas contra quem os obrigara a anular a sua grande festa. Os jornais mandavam jornalistas que ficaram pela primeira vez a conhecer a fraternidade coimbrã, as repúblicas, a animaçãoo cultural dos organismos autónomos, as sessões culturais de toda a ordem que pretendiam preencher aquele dia a dia inquieto e nervoso que se vivia. E a grande pergunta começou a espalhar-se: isto vai até aos exames? Vão realizar-se exames?

Até à assembleia magna de 28 de Maio. Não sei em que lugar falei mas fiz parte dos primeiros seis ou sete oradores. Tenho por certo e seguro que terei sido o primeiro a dizer alto o que muitos já afirmavam baixo. Que era necessário ir até à greve aos exames. E disse-o, não por bravata, não por me querer antecipar, sabia que muitos dos se seguiriam carregariam na mesma tecla, mas porque estava também a responder a um, aliás corajoso, discursante de Direita (Carlos Ganho?) que justamente se lembrara de prevenir essa hipótese nefanda. Depois de mim, muitos mais falaram e recordo mesmo o Celso Cruzeiro que referiu o outro 28 de Maio dizendo que este era a adequada resposta ao do golpe militar. Em poucas palavras, quando foi posta à votação a proposta de greve, apenas umas escassas quatro ou cinco dezenas de estudantes foram contra. Se não estou em erro, eram os mais militantes, alguns antigos simpatizantes do Jovem Portugal, outros, monárquicos legitimistas que, honra lhes seja, estiveram ali, sabendo que a sua recusa poderia ter consequências. Não teve. Nada lhes aconteceu, nem sequer uma vaia. Mais tarde, muitos anos mais tarde, um deles disse-me, na minha esplanada favorita, que ao ir para a assembleia estava convicto que ninguém o insultaria ou agrediria e rematou, filosófico e nostálgico “Coimbra era mesmo assim”. Concordei com a mesma destemperada nostalgia. E pedi mais um café. E um copo de água se faz favor...

 

A fotografia é obra de um alucinado fotógrafo que, se não me falha a memória, se chamava (Carlos?) Fraga e era um segundanista de Direito. Acho que não nos conhecíamos mas, no Inverno desse ano ou um pouco mais tarde, apareceu-me com a fotografia.

Foi ele que me entusiasmou a frequentar o Curso Superior de Direito Privado, pois atrevidamente tinha tentado fazer o primeiro ciclo que só não completou por não estar ainda formado.

Soube dele, já juiz e posteriormente tive notícia de uma guerra dele com o Conselho Superior de Magistratura por ter, depois de avisado, publicado um livro sobre os podres da classe.

Ao que parece, o CSM não perdoou mas perdi-lhe por completo a pista. Alguém quererá ajudar-me?

A fotografia impressa é já uma cópia. Na verdade, numa altura em que o Expresso quis fazer um artigo sobre a crise de 69, apareceu-me cá por casa uma criatura jornalista que conseguiu transformar o meu depoimento em algo de completamente delirante (felizmente a minha mulher assistiu à nossa conversa e depois de ler a reportagem concluiu que a mulherzinha era absolutamente parva) Emprestei-lhe a fotografia verdadeira e até hoje.

 

Quando ia propor um livro, lembrei-me de ir ao meu ficheiro ver o que li nesse ano. Eis algumas dessas leituras: “l’homme sans qualités (dois volumes desemparelhados comprados em “promotion”) Musil; “Cosmos” e “Ferdidurke” de Gombrowicz; “Legendes et Poémes" de Bernard Dadié; “As Elegias de Duíno” de Rilke; “Longa noite de pedra”, em galego, de Celso Emílio Ferreiro; “Mémoires d’ Adrien”, Marguerite Yourcenar; ”Le monde de Ulysse” de Moses Finley; “Critique de la vie quotidienne” de René Lefebvre; “Rum” de Cendrars; “Liberté grande” de Gracq e “Na terra do crioulo doido” Stanislaw Ponte Preta, aliás Sérgio Porto. E farta dose de livros de teor marxista e até um de Stalin!!! Alguém nessa época ao ver a minha estante, afirmou que eu acabaria como o Quixote de tanto tresler.

Acho que os recomendo todos tanto mais que agora vários tem tradução portuguesa.

A oito meses das eleições presidenciais

José Carlos Pereira, 27.05.20

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Para quem pretende desafiar o Presidente da República em funções, nunca foi fácil lidar com a segunda volta das eleições presidenciais. Em 1980, a maioria AD no governo, liderada por Francisco Sá Carneiro, não arranjou melhor solução para enfrentar Ramalho Eanes (que perdera o apoio de PSD, CDS e Mário Soares e conquistara o do PCP) do que o desconhecido Soares Carneiro, perdendo essa fatídica eleição por quase um milhão de votos de diferença.

Em 1991, Cavaco Silva, então primeiro-ministro com maioria absoluta, assobiou para o lado e resignou-se a não apresentar candidato contra Mário Soares, que venceu com o maior resultado registado até ao momento (70,35% dos votos). O segundo lugar foi disputado pelas candidaturas de nicho de direita, com Basílio Horta, e da esquerda comunista, com Carlos Carvalhas, ambos na casa dos 13/14% dos votos, com vantagem para o primeiro, que surpreendeu, aqui e ali, pela excessiva agressividade, que nem assim rendeu votos.

Dez anos depois, o PSD foi buscar o antigo ministro Joaquim Ferreira do Amaral para marcar posição face à recandidatura de Jorge Sampaio, fazendo o pleno do centro-direita. Contudo, o melhor que conseguiu foi uma votação a mais de 900 mil votos de distância de Sampaio.

Em 2011, a proliferação de candidatos favoreceu a recandidatura de Cavaco Silva, tendo Manuel Alegre, com o apoio do PS, alcançado o segundo lugar, mas aquém dos 20% de votos efectivos.

Nos próximos meses, a questão vai colocar-se de novo perante a recandidatura (e a vitória) mais do que certa de Marcelo Rebelo de Sousa. O PS, que governa em minoria, seguirá provavelmente a mesma táctica de Cavaco Silva em 1991 e não promoverá qualquer candidato contra o presidente em funções. Não faltam razões para isso, desde o bom relacionamento alcançado com Marcelo até ao momento, a falta de um candidato evidente nas hostes socialistas e a necessidade de manter o foco político nas tarefas da governação. António Costa percebeu, de resto, que muitos dos seus eleitores não hesitam em dar o seu voto ao actual Presidente da República.

Abrir-se-á, assim, espaço para candidaturas que representem os espaços políticos à esquerda do PS e também na extrema-direita, como já se foi anunciando. É provável que mesmo na área do PS possa surgir Ana Gomes ou outro candidato mais ousado e também a direita mais conservadora, descontente com Marcelo, pode ser tentada a marcar posição. Mas nenhum desses candidatos travará a eleição confortável de Marcelo Rebelo de Sousa, que reunirá certamente o apoio do PSD e do CDS e não contará com a animosidade do PS.

estes dias que passam 405

d'oliveira, 27.05.20

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Diário dos dias da peste

Jornada septuagésima

Já agora...

mcr, 27 de Maio

 

quando comecei este “diário” previa qualquer coisa entre quinze dias (o desejável) e um mês (a pior hipótese). Ah, incorrigível optimista! Já lá vão, redondos, setenta dias e a luz ao fundo do túnel continua trémula.

De todo o modo, já há luz (outra vez o optimismo) mas as notícias andam por aí desencontradas, aos baldões, ininteligíveis. Começo a pensar que há “notícias” a mais e factos a menos.

Continuamos a ver, sobretudo na televisão, carradas de criaturas em bicos de pés, cada uma com a sua pequeníssima verdade (por vezes ainda mais microscópica do que i vírus...), gargarejando para o espectador impotente conselhos, prevenções, avisos, ameaças que desorientam o mais paciente.

Agora, depois da teoria do “pico” e da profecia de uma segunda vaga lá mais para o outono, eis que um par de iluminados vem, taciturnamente, profetizar uma segunda vaga já.

Já, como nos slogans políticos de há quarenta anos em que o “Já!” soava ameaçadoramente a “ontem”. Depois o “já” militante esboroava-se em espuma na areia da praia que a realidade tem vícios insuperáveis e um deles este: corta cerce elucubrações tremendas e tremendistas que duram o tempo de um suspiro, de um grito ou de um rugido da multidão.

Eu usei agora mesmo a palavra tremendista que é um vocábulo inventado, penso, por Camilo José Cela para caracterizar um estilo e um discurso literários. Por cá, vi-a ser utilizada por Alberto Martins e aplicada a um certo vanguardismo político radical. Ainda pensei em preveni-lo mas, depois, deixei-me estar quieto. Aquilo tinha um significado político que, pelos vistos, era entendido por alguns ouvintes. É como a palavra surrealismo usada também por tenores parlamentares para caracterizar o extravagante e o bizarro. O senhor André Breton e os seus companheiros ficariam surpreendidos com o uso do termo em terras lusas. Há uma desculpa: já o surrealismo caminhava apressado paro o seu ocaso, já os surrealistas se tinham excomungado todos uns aos outros, já as antologias literárias os tinham aprisionado, já as edições dos primeiros livros atingiam preços etéreos nos leilões e nos alfarrabistas, quando por cá surgiram com as habituais e obrigatórias zangas e dissidências, os primeiros grupos surrealistas. Em boa verdade, apareciam muito contra o neo-realismo esgotado em poucos anos mas que teimava em persistir. Aliás, persistia porque os leitores (um minoria nacional e viciosa) abominavam a “situação” política e o encafuamento do país triste e submerso.

A guerra acabara e nada do que se esperava acontecera. A derrota dos fascismos parou nos Pirenéus. Entre nós e a Europa havia uma Espanha esponjosa que nos confinava à beira água.

E, já com vinte anos de Ditadura Nacional e Estado Novo, apanhámos com mais trinta de castigo. Ah quanto doía esta lonjura!...

Hoje, continuamos isolados da Europa que mexe. Enquanto a Espanha não abrir as fronteiras estamos reduzidos a um que outro avião que chegue ou que parta. A TAP é o que é, aliás é o que sempre foi, um fardo pesado para os portugueses que se aguenta porque é estratégica e fundamental para mantermos relações com a “diáspora”. Parece que há um senhor ministro, desses que se armam ao pingarelho e que ameaça com a nacionalização. Ou seja, doravante, se a coisa for para a frente, vai ser um forrobodó. A TAP foi privatizada porque já ninguém tinha mão naquele monstro adiposo que voava ao sabor das greves e a cada dia tinha mais e maiores prejuízos. Estes aliás mantiveram-se, mas pelo menos havia muito mais aviões e rotas. O covid cortou as asas À TAP e, notem bem, a todas mas todas as grandes companhias de bandeira desde a Air France À Lufthansa. Nem os famosos frugais se safaram. A Holanda vai entrar pela madeira dentro com a sua KLM, os escandinavos idem, que no reino dos céus ninguém se escapa. Ou escapam as ryanair & sucedâneos mesmo se a fama delas não é a melhor. Todavia o público prefere-as por serem baratas e contra isso os governos não tem argumentos.

Por aqui as vozes do norte erguem-se contra a TAP que restringiu quase completamente os voos de e para cá. Algum motivo existirá pois não creio que mesmo esta administração em queda livre queira perder dinheiro, E assim temos alguém que não explica e alguém que protesta não por falta de explicação mas por regionalismo.

Isto lembra outro costume muito próprio de quem não planeia seja o que for. É o “já agora”. Até aqui em casa. Já que estamos em semi-confinamento sem termos onde ir podíamos fazer isto. E ap fazê-lo já agora faz-se também aquilo. E mais aquilo... Já agora que estamos com a mão na massa...

Também é verdade que, no dia a dia dos tempos normais, adiamos pequenas coisas para melhor altura. Mas agora que está tudo a meio gás, vá de reparar esses atrasos, essas tarefas adiadas, são dois maples que as gatas usaram para afiar as garras que, já agora, vão para o estofador. É o sr Hugo que já agora foi convocado para vir arranjar uma persiana que se recusa a descer, é o sr Barbosa que vem fazer mais umas pequenas reparações. E uma vez feitas, já agora, toca de mudar a lâmpada da despensa. Onde tudo parecia escondido agora é o reino da luz.

O “já agorismo” fez com que umas obras importantes na casa se transformassem numa quase reconstrução da mesma. Ficaram-me pelos olhos da cara...

No parlamento, o já agora entrou em velocidade de cruzeiro. É um ver se te avias. Não há deputado, mesmo os que de costume se limitam a levantar e baixar o dito cujo consoante as ordens da direcção parlamentar, que não acrescente um ponto ao conto de fadas em curso. Quando se pergunta pelo dinheiro que isso vai custar as respostas são simples. A Europa que se chegue e abra os cordões à bolsa. Esta é a nova versão daquela máxima “os ricos que paguem a crise”. Claro que os ricos não se acham perus de natal e sobretudo não gostam de ser depenados. E o dinheiro é uma coisa quase imaterial. Ora está aqui, ora na Suíça, nas Maldivas, nas ilhas Caimão e noutros paraísos turístico-fiscais.

Mas, pensemos um pouco: onde estão os ricos? Ou, doutra maneira: que é um rico? A resposta costuma ser sempre a mesma. Os ricos são os outros. Para o sem abrigo um rico é o fulano que vive numa casa, eventualmente alugada. Para este é o cavalheiro com casa própria e ordenado meia dúzia de vezes superior ao mínimo. E por aí fora.

Claro que há uns ricos que se apanham logo: os novos, os impertinentes, os que se deixam fotografar nas suas casas, à beira de piscina ou nas festas do “jet set” parolo que temos. Mas mesmo nesses, há os que, à semelhança do comendador, não têm nada em seu nome. Podem viver num andar luxuoso mas o andar pertence a uma empresa que pertence a outra por sua vez controlada por uma terceira....

Ou aquele político que fazia um vidão mas era tudo fruto de empréstimos de um amigo. Só a mim é que me não calham amigos desse calibre. E dessa generosidade...

E, já agora: então esses processos judiciais que implicam umas poucas dezenas de figurões dos bancos, da política da “sociedade”? como está tudo isso?

Nem me apetece ouvir a resposta.

Já agora, fico-me por aqui.

* a vinheta: “El libro de los inventos”, editorial Fundamentos, Espanha  

 

estes dias que passam 404

d'oliveira, 26.05.20

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Diário dos dias da peste

Jornada sexagésima nona

Cenas da vida conjugal

mcr, 26 de Maio

 

Os títulos, seja do que for, são sempre um problema. Primeiro hão de ter algo a ver com o que se vai escrever a seguir, o que, comigo, já não é pera doce pois eu sento-me à frente do maquinismo e aí vai disto: tenho uma ideia vaga, ténue da crónica a aviar mas, fora as duas primeiras linhas, o resto só a Deus pertence. Sou um pouco, poucochinho, como uma vez o imprudente Costa disse, sobre um resultado eleitoral do seu antecessor, como aqueles criados do Infante D Henrique mandados para as costas de África. “Andem para diante e depois venham cá contar o que viram”.

Digamos que naquela altura a “costa de África" já era algo de sinistro. Os navegadores não eram exactamente uns degredados mas o encargo que lhes pesava em cima não pareci ser coisa fácil. O mar “tenebroso” era um foco de terrores, os navios em que iam, umas coisinhas frágeis, as tripulaçõex e eles próprios gente que, de certo modo, ia ganhando experiência à medida que avançavam.

E o escriba que estas vai traçando, à aventura, também não tem certo o percurso nem sabe se, pelo meio, ao favor de um capricho, de uma citação, de uma irrupção súbita da memória ou da imaginação (la loca de la casa) não dará com os burrinhos na água.

Lanço-me ao ecrã virgem e aí vai disto. O que for será.

Mas eu estava a tentar falar dos títulos (vem onde é que já ia?). Ai os títulos!... Se há coisa traiçoeira no que se escreve, o título é o pior. Um título é como uma montra de um loja de enchidos. Se o que o cliente vê lhe enche o olho, ele entra, Se não, passa à frente e o pobre caixeiro fica lá dentro sozinho a contar as moscas. Depois do título vem o remoinho da primeira frase. É que nem toda a gente é capaz de um “nel mezzo camin della mia vita mi trovai...” ou “en un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme”, ou, ainda, “beuveurs tresillustres et vous Verolez trésprecieux (car a vous non à aultres sont dediez mes escriptz)...”

E por aí fora, pois caso se acredite no que centos de autores escrevem, tudo é difícil, tudo é uma trabalheira, um parto (e aqui não resisto a citar o Joaquim Namorado que nos dizia, a nós, rapazolas tolos, que para imaginar as dores do parto, tínhamos que pensar no que seria mijar um melão!... E confundidos, aterrados, começávamos a olhar de outra maneira as mulheres.. ). Pode ser que seja assim, mas eu inconsciente e irresponsável deito-me à água e tento ir nadando, boiando, bebendo o seu pirolito de quando em quando, numa tentativa para alcançar a outra margem, essa mesmo onde algum(a) leitor(a) me espera curioso/a.

E voltando ao título: anda por aqui uma reminiscência de Bergman, mesmo se o filme com este título é um dos que menos me interessou e que, apesar de o ter, nunca mais  revi. Portanto, cenas da vida conjugal é um título usado por outrem, no caso por um grande outrem, é banal pode até haver outras obras com o mesmo título ou algo de semelhante. Porém, é o título adequado para o folhetim de hoje.

Não vou fazer queixinhas da CG, coitada, que me atura os humores, mas, às vezes, ela abusa. Vejam: a CG sofre de um síndroma chatíssimo que, de quando em quando, põe em causa o seu equilíbrio e ameaça fazê-la cair redonda no chão.

A primeira vez que isso aconteceu, foi o diabo, ou, como diria a minha mãe, autora de expressões de sentido duvidoso, “o diabo feito vaca”. Que coisa será o diabo feito vaca nunca consegui perceber mesmo se ela o dissesse com voz e ar severos. A expressão poderia ter um sentido tauromáquico (a srª ministra da cultura que me desculpe) mas nesse circuito todo de olé y olé, de fanfarronice e fatos imbecis de lantejoulas, o vilão é o touro e não a pobre vaca que só entra no redondel para levar um pobre animal castigado pelas farpas para fora, para os curros. Seja como seja, a CG caiu redonda e eu dei com ela desmaiada à porta do quarto.

Só quem nunca tentou levantar um corpo inerte pode entender como me senti. Incapaz de, com êxito e sem a estropiar, a levantar para a poisar na cama, pedi socorro à Ana e ao Nuno e depois entendemos levá-la para o hospital. Aliás, quem a levou foi a ambulância. No hospital (público) penou umas horas antes que a tentassem medicar. Ficou internada pois tinha um ferimento na cabeça. Por lá esteve alguns dias e digo-vos que era um tormento para ela e outro para mim. Primeiro, a falta de privacidade, depois, o ar tristonho, pobre da enfermaria. Quando começou a melhorar lá a arrastava para um passeio curto por uma larga varanda. Ela, por seu turno, estava doida por fumar. Conseguiu, com artes que não comento, convencer enfermeiras e enfermeiros a dar-lhe um cigarrinho e pimba, atirava-lhe forte e feio para o pulmão. Logo que pode, pediu-me para a ir buscar e veio para casa.

E começou a ter algum cuidado. Quando digo algum é mesmo só algum, pois no sábado, vá lá saber-se porquê, resolveu trepar para um parapeito de uma janela para tentar arranjar uma cortina, melhor dizendo prender o varão. Não só não conseguiu mas quando desistiu, olhou para baixo e mergulhou desamparada.

Sabendo que eu me zangaria, ocultou aquela aventura tanto quanto pode. Mas no domingo, as dores num pé e no tornozelo começaram a aumentar e à noite, chorava como uma Madalena.

E eu, compassivo mas enfurecido, perguntava porque é que não me tinha pedido para tratar do cortinado, porque é que não tinha usado um dos três (3!!!) escadotes que há cá em casa. Resposta zero, soluços muitos que aquilo devia doer. Ontem, segunda feira logo pela manhã resolvi ir comprar um par de muletas. Começou por recusar mas, desta vez armei-me em carapau de corrida e levei a minha avante.

Quando cheguei com as muletas, declarou que não sabia usá-las! Mas usou que eu continuava intratável. Usou é um modo de dizer. À tarde já manquejava sem elas. E hoje, então foi um festival. As muletas estão cuidadosamente encostadas à parede em frente da porta do nosso quarto. Desde ontem pelo inicio da tarde!

E hoje, S.ª Ex.ª deambulava pela casa a limpar, varrer, tentar aspirar, numa roda viva.

É preciso acrescentar que a CG lava o lavado que já lavou duas vezes. Aquilo é uma psicose perigosa. Se, em vez de gatas, tivéssemos um leopardo, o desinfeliz já estaria sem pintas de tanto ser escovado. Com ela aos comandos da pátria doente, não havia covid que aguentasse, os portugueses haviam de lavar as mãos de meia em meia hora e estou a ser generoso. E usar três máscaras sobrepostas. E viseira. Ou nem isso: os portugueses passariam a andar por aí vestidos de escafandristas (mas com máscara e viseira à mesma, não vá o diabo tecê-las).

O momento actual é difícil porque, entretanto, o médico convenceu-a, deu-lhe ordens terminantes, a deixar de fumar. E ela, honra lhe seja, tem cumprido sem falhas. Deixar de fumar em confinamento não é uma aventura sem risco como calcularão.

Mas eu, que deixai o cigarrinho aos cinquenta e tal depois de ter atingido a média olímpica de quatro maços diários, nem digo nada. E vou-a prevenindo que mesmo vinte e tal anos depois ainda sinto o apelo de um cigarro várias vezes por dia

(deixei de fumar por única e exclusiva vontade minha. Nunca senti aquele catarro, a tosse, do fumador, nada. Um dia, descobri que havia uns selos de nicotina que tinham algum êxito, fui ao médico, pedi para mos receitar e ao fim de mês e meio, a meio do tratamento, deixei os cigarros. Custou que se fartou. Andei quase um ano com um maço no bolso. Quando ficava com um ar meio podre, deitava-o fora e comprava outro. Comecei por ter sonhos maravilhosos em que voltava a fumar e depois tais sonhos passaram a pesadelos. Também de voltar a fumar. Até qu isso passou. Não me arrependo de ter fumado e muito menos de ter abandonado o tabaco. A vida vive-se e pronto. Chorar sobre leite derramado é de uma inutilidade gritante. E pouco inteligente...)

Há pouco, confidenciou que o pé está pisado. Claro, respondi. Antes não tivesse feito pois apanhei com um sermão e missa cantada sobre as dores que eu, um egoísta depravado, não sentia. Abstive-me de retorquir que não tendo trepado para um parapeito, não tendo caído, não tendo dado com a pata em sítio algum, difícil seria ter dores, mesmo por simpatia. Mas voltei a preferir o silêncio porque, de quando em quando, as mulheres, algumas mulheres, aquela mulher, pensam que a lógica é uma batata, um truque masculino, fálico, uma manifestação intolerável de machismo. E, zás!, mais uma meia hora sobre o catálogo gigantesco de vícios meus e dos meus congéneres, os homens em geral.

Fiquemo-nos por aqui, em companhia de uma grande senhora das letras portuguesas que tive o prazer e a honra de conhecer: Isabel da Nóbrega. Leiam “viver com os outros” e depois digam-me se não é um grande e inesperado livro, sobretudo tendo em conta a data em que apareceu.

Se não vos chegar, eis outra enorme escritora, agora final e felizmente reeditada: Maria Judite de Carvalho. “Tanta gente, Mariana”. Ou finalmente, e igualmente radiosa, Irene Lisboa, com meia dúzia de títulos a ombrear com o melhor que se escreveu na segunda metade do século XX. Bastaria este formidável título “Uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma”.

Com algum critério, acho que poderia dizer que estas, com Agustina, Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Fernanda Botelho, a parte das mulheres na literatura portuguesa recente supera a dos homens. E só cito autoras desaparecidas e que escreveram no século passado.

* a vinheta: Suzuki Harunobu (1725-1770) um genial pintor de mulheres e com várias incursões no que se chamou arte “shunga” (ou erótica). Para conhecer melhor esse aspecto (lembram-se das histórias em que o galanteador lascivo convida a inocentinha para ir até casa dele ver a colecção de estampas japonesas?) cfr “Le Chant de l’Oreiller ( l’art d’aimer au Japon)”, Office du Livre, 1973, Fribourg; “Le printemps des délices (art erotique au japon)”, Philippe Rey, Kunsthall, Roterdam, 2005 e “Erotique du Japon” de Theo Lesoualc’h (da série Bibliotheque Internationalle d’Erotologie, nº 19) Jean Jacques Pauvert, Paris, 1968

A minha edição de Harunobu é editada por Artia, Praga, 1957 com o titulo “Harunobu und die Künstler seiner Zeit” com um estudo de Hajek Forman. Escolhi este artista para não estar sempre a usar a trilogia, Hokusai, Hiroshige e Utamaro.

estes dias que passam 403

d'oliveira, 25.05.20

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Diário dos dias de peste

Jornada sexagésima oitava

Nem tanto ao mar...

mcr, 25 de Maio

 

 

encontro a minha vizinha e amiga Irene e rumamos à esplanada para a bica da manhã e dois dedos de conversa. Ela pendurada na máscara que só tirou, et pour cause, para o café e, ai..., para um cigarrinho. E vai de analisarmos a reacção das pessoas, dos portugueses, aliás, ao flagelo que nos tem atormentado. A Irene tem sérias dúvidas, eventualmente legítimas, sobre o desconfinamento. Eu bem que lhe digo que, se é verdade que há que temer a doença, não podemos morrer da cura.

E corremos esse risco. As pessoas ouviram os apelos ao isolamento e às precauções em cascata e barricaram-se em casa de tal modo que sair de lá começa a parecer difícil.

E aqui, um primeiro ponto de ordem, como se dizia nas assembleias dos anos desassossegados e tumultuosos. Os portugueses portaram-se com um raro sentido de responsabilidade e disciplina que espanta o mais reservado dos comentadores.

Pode sempre dizer-se que o medo guarda a vinha e que foi o medo que fez as ruas ficarem desertas, os empregos em suspensão, as bichas ordeiras e distanciadas nos supermercados, nas farmácias e nos poucos pontos onde havia que ir. É verdade!

Pode dizer-se que o Governo promoveu uma campanha fortíssima, que também é verdade. Pode até acrescentar-se que as pessoas, a certa altura temeram sanções pesadas caso pisassem os famosos riscos vermelhos. Concede-se.

Mas, genericamente, os portugueses, que apanharam com um dilúvio de informação via tv, usaram de bom senso. Viram os vizinhos espanhóis com as barbas a arder e escanhoaram-se forte e feito para cortar caminho a essa bicheza infame do corona puta que o pariu.

Teriam procedido da mesma maneira sem as prevenções, avisos, proibições e ameaças com que foram bombardeados? A questão é, como a do nariz de Cleópatra, irrespondível.

Todavia, pareceu-me que a certa altura, e muito cedo, sucedeu algo que tornou a situação um tanto ou quanto paranoica. Em primeiro lugar, diria que a informação pecou “por excesso”. Não que as pessoas não devam ter um acesso absoluto e cabal a tudo o que lhes diz respeito mas, hão de ter notado, que durante semanas já não era um tsunami de notícias que se repetiam mas sim, também, uma cacafonia que roçava o histerismo.

Os desgraçados tele-espectadores, encafuados em casa, a maioria sem acesso aos jornais (cuja circulação baixou violentamente) sujeitos ao metralhar diário das conferências de imprensa da DGS e da srª Ministra que numa forte proporção dos casos não tinham nada para dizer de útil, sequer de necessário, aumentou – mesmo se involuntariamente – o pânico. Não vou sequer referir as “redes sociais”, bastaram-me as vezes que a CG se atreveu a bombardear-me com notícias e sobretudo com “opiniões”, para jurar a mim próprio que nunca por nunca havia de entrar no fcebookismo, no instragramismo e nas restantes teias de aranha que se alimentam de inocentes e aprisionam outros mais expeditos.

Um dos temas mais recorrentes foi o da notável resiliência do Serviço Nacional de Saúde. É verdade que o bunker erguido pelas autoridades foi suficiente para conter a peste em limites que nunca puseram em causa a frágil rede que existia. Porém, também é verdade que a mobilização maciça de meios, arrasou toda a restante estrutura hospitalar desde o serviço normal de consultas, até às cirurgias. Todos os serviços hospitalares ficaram em stand-by e, segundo o presidente da Associação dos administradores Hospitalares o rombo sofrido no dia a dia dos hospitais não será reabsorvido tão cedo (se é que o conseguirão fazer) e as consequências sobre a saúde pública vão ser graves para não dizer gravíssimas.

É claro que deste esforço (e já não falo dos médicos, enfermeiros, auxiliares de todo o género, especialistas de diagnóstico, enfim de toda a família hospitalar incluindo os serviços administrativos) algumas consequências positivas se tiram. Em primeiro lugar, houve a contratação de um número apreciável de médicos e enfermeiros, reivindicação antiga que até Março de 2020 o Ministério da Saúde tratou sobranceiramente quando não a ignorou totalmente.

De repente, o público viu que os profissionais da “linha da frente” com salários merdosos conseguiram autênticos milagres. Trabalharam um sem número de horas a mais, caíram doentes como tordos, tiveram que inventar modos de se proteger (e de proteger os doentes) quando a falta de meios era gritante.

Desta vez, o público terá percebido que um terço dos médicos (dez mil) do SNS estavam ainda em formação. Um terço! Estão a ver como é que rapazes e raparigas acabados de sair da universidade marcharam para as trincheiras apenas animados pelo juramento de Hipócrates. Dirão: mas havia médicos mais velhos ao lado. Havia, claro que havia, mas nunca tantos quanto os necessários, nem a todos os momentos.

Nós portugueses devemos muito a esses trinta mil profissionais e, entre eles, a esses dez mil recrutas. Ainda ontem uma televisão punha quatro miúdos em cena e foi admirável ouvi-los contar da violência do choque, do receio, do cansaço, da valentia e do que em poucas semanas que valem anos aprenderam, a começar, como dizia uma jovem médica, a aprendizagem da calma.

Os portugueses que ainda há pouco tempo assistiram a duas greves de enfermeiros e que foram matraqueados pela enxúndia governamental, pelo ataque despudorado à obtenção de meios para financiar a greve (oh quantos tenores no Parlamento blasfemaram contra isso! Oh quantos protetores do sindicalismo verdadeiro uivaram insultos, destilaram venenosas acusações de manipulação política!

E de repente, pela voz do Boris Johnson, veio um elogio à enfermagem portuguesa que, de resto, em Inglaterra está farta de obter distinções e reconhecimento. Ontem mesmo, tive oportunidade de ver e ouvir um casal de enfermeiros portugueses que tendo tido a possibilidade de regressar a Portugal, ficaram na ilha do Príncipe e tem feito a diferença entre o desastre a bonança sanitária que lã se goza. Dois enfermeiros para uma ilha inteira e dezenas de milhares de cidadãos sem recursos, com uma assistência que só por favor se pode considerar medíocre! Um milagre! Ou a prova provada da qualidade, da dedicação, da coragem.

Virá o tempo, está já a chegar, em que os louros serão, como é hábito, distribuídos não entre os que os merecem mas entre os que se pavoneiam.

Note-se que com isto não pretendo reduzir a importância de quem governa, da oposição que mostrou saber sê-lo, dos jornalistas que tentaram retratar o país e a crise.

Mas também não posso deixar de anotar que houve alguma impreparação (que se tentou reparar com alguma eficácia) que houve instituições que se atropelaram umas às outras, que a um mês e pouco dos fogos ainda há quatro distritos sem meios aéreos (e este ano tudo leva a crer que vai ser, já é, de seca), que os velhos reflexos centralistas condicionaram alguns dos esforços das autarquias.

E, agora, o mais grave: em que percentagem é que o PIB vai cair? Quantos postos de trabalho foram destruídos? Quantas empresas vão desaparecer?

A resposta de um habitual sector político começa a ser a do costume: intransigência, intransigência, estatização, nacionalização, os ricos que paguem a crise, abaixo os monopólios (mesmo se já se verificou que não é no sector das grandes empresas que houve as famosas malandrices, se é que houve assim tantas, um número expressivo.

A sr.ª Catarina Martins, o sr. Jerónimo de Sousa por uma vez com um aliado absurdo, o cavalheiro do Chega, já vieram clamar contra os despedimentos. É óbvio que não há ninguém que defenda os despedimentos. Mas também parece certo que os vai haver e que, muitas vezes, quase sempre, serão a única salvação de outros – muitos ou poucos –postos de trabalho. Clamar contra o lay off parece querer dizer que seria melhor que não o houvesse. Que os trabalhadores em vez de terem um terço do salário perdido poderiam perdê-lo todo.

Depois, temos o habitual recurso à Europa. A culpa de virem ou não viram os dinheiros europeus é da Europa. Eu gostaria de perguntar, como é que seria sem a Europa. Onde estaríamos neste preciso momento?

E relembraria as excomunhões tremendas que ainda há meia dúzia de anos caíam sobre a senhora Merkel que, em fim de carreira, passa de anjo exterminador a rainha Santa Isabel. E perguntaria, oh pesadelo!, que reacções esperam os admiradores do medíocre senhor Sanchez aqui ao lado depois de numa extraordinária aliança com o partido Bildu? Acham que os eventuais “doadores” “frugais” estarão de acordo em financiar a estrafalária política de distribuição de rendimentos de Sanchez & amigos? Acham que não seremos, nós, a Itália e a Grécia, vitimas desse “síndroma do sul” a que o Presidente Sanchez pode ser associado?

Ontem, os portugueses foram à praia. Pelo que vi, e li, o distanciamento social foi notório, com pequenas excepções nas zonas onde se acumularam pessoas a banhar-se. Mesmo aí não pareceu haver especiais abusos de proximidade. Ou seja, mesmo enlouquecidas pelo primeiro anúncio de Verão, pelo dia quente depois de semanas em casa, as pessoas portaram-se bem. Sem polícia, sem cabos de mar, sem nadadores salvadores, sem semáforos nas praias.

Eu não sei se vai ou não haver segunda vaga. Se a vacina (chinesa, de Oxford, da Moderna ou israelita) vai chegar a tempo. Se inventam, sempre a tempo, terapêuticas eficazes para combater a doença, para retardar, para abrandar o vírus. Bem queria que a minha carcaça já leva demasiados anos a vaguear por este mundo. Já apanhei a minha dose de sustos, incluindo uma pandemia (a da gripe asiática. Ou foi só uma epidemia?).

Espero é que desta provação tenhamos saído um pouco mais experientes, um pouco mais dotados de meios de prevenção e de combate, um pouco mais conscientes do que somos, do que fazemos. E com, já agora, um pouco mais de compaixão.

(por exemplo: os supermercados tem à venda vales do Banco alimentar. Agora ainda mais simples. As pessoas compram os que quiserem nas caixas e logo ali aquilo é registado e vai directo para a instituição. Há vales de produtos ou de cabazes. Estes custam menos de cinco euros. Vá lá, cheguem-se à frente. É caridade? Talvez. Mas, para quem tem fome, é um pequeno momento de alívio. E será que alguém recusa ver a fome por o seu gesto ser conotado com a caridadezinha? Ora porra!)

* a vinheta: vista da minha casa na praia durante alguns verões na Galiza. E este ano como é que vai ser?

estes dias que passam 402

d'oliveira, 24.05.20

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Diário dos tempos da peste

Jornada sexagésima sétima

Saudade burra

mcr, 24 de Maio

(vai o folhetim para o leitor atento, generoso e amável J Pereira que me deu a dica seguinte "Judeus errantes" de Joseph Roth, é editado por "sistema solar".

Não que seja importante mas mudei o título geral destes folhetins. De facto, diário das semanas não era brilhante mesmo se, no fundo eu apenas pretendia homenagear Daniel Defoe e o seu magnífico “diário do ano da peste”. Ora, escrevendo eu diariamente, a que vinham as “semanas”?

E já agora, para quem não teve a maçada de seguir isto desde o princípio, “jornada” é outra homenagem, desta feita ao senhor Giovanni Bocaccio que me foi apresentado há muito, muito tempo, antes seguramente do filme de Pasolini que também já tem barbas, barbas boas, seguras, que o Pier Paolo sabia da poda como poucos. Dele recordo todos os filmes, evidentemente, mas tenho uma ternura especial por Edipo rei (ai a Silvana Mangano que bem que vai, prova provada de que a beleza não desqualifica o talento), Evangelho segundo S Mateus.,  Passarinhos e passarões (Uccellaci e uccellini, com o gigantesco Tótó) e Medeia em que Maria Callas surpreende como actriz, ela que era uma diva de ópera (da Callas há que ouvir tudo pois é difícil apanhá-la em falso, aliás é impossível, e quando menos se espera, zás!, surge uma pérola negra...).

E lá me perdi eu, diabos me levem e ao entusiasmo que me transforma numa criatura logorreica, excessiva com um toque vagamente missionário, logo eu que não vi a luz, ou se a vi não era a que devia ser.

Portanto, tempos em vez de semanas. E ponto final, parágrafo.

Aviado o título geral, passemos ao do dia. A expressão é do Fernando Assis Pacheco, um poeta morto demasiado cedo, logo quando começava a publicar, ele sempre tão avaro, tão modesto quando se pensava, tão falto de generosidade consigo mesmo. Eu hei de ter escrito, sei lá onde, que “um coração daquele tamanho não poderia durar muito” que o raio da víscera rebentou-lhe à porta de uma livraria onde ele ia por novidades.

E novidades para o FAP eram pequenas plaquettes de poemas de gente nova que se intrometia no recreio dos grandes a gritar alto e desafiantemente “presente!”.

Tinham no Fernando um leitor paciente, atento, que logo dava notícia, se mereciam, numa secção de “O Jornal” (mais saudades burras!...) chamada “bookcionário” e que tarda em ser resgatada do limbo e publicada, anotada e divulgada. Este gosto pelos atrevidos que se chegavam à praça das letras era antigo confidenciou-mo ele, um fim de tarde em que saíamos da livraria Opinião (mais saudades, arre!) ali à Trindade, em Lisboa, onde agora é, ainda bem, a sede da editora e livraria Cotovia.

Nesse dia, o Al Berto apresentava o seu livro “á procura do vento num jardim d’Agosto” e um artista plástico Dodó expunha “lápis de amor e outras fantasias”. O FAP entusiasmou-se com os poemas do Al Berto , pegou-me o entusiasmo, também comprei a plaquette que depois, sei lá porquê, foi retirada do mercado (esta apanhei-a na bibliografia de “O Medo(trabalho poético 1974-1990) de Al Berto, Contexto-Círculo de Leitores, 1991

(ainda ontem referi depreciativamente o Círculo mas esta edição redime-o de muitos pecados)

Depois, fomos com mais quatro ou cinco amigos almoçar na “Trave”, um restaurante simpático de dois irmãos, o Jaime e o Santos (este último havia de abrir o “1º de Maio” duas ruas acima) e a conversa durou até às quinhentas. Neste grupo, quase de certeza que estava o Fernando António Almeida, nosso amigo desde Coimbra, desertor que voltei a encontrar em Liége e que ainda não tinha escrito senão três plaquettes de versos que, evidentemente andam por aí.

Como o FAA sucedeu, aliás algo de curioso. Deu-lhe para escrever um romance e o manuscrito, melhor dizendo, uma cópia dactilografada, andou uns tempos à solta na mão do Hipólito Clemente, na altura o livreiro da “Opinião” ( o Luís Pacheco - esse mesmo, o libertino que passeava por Braga etc...- dizia do Hipólito que ele era capaz de vender o catecismo ao diabo. Estão já a ver o grande livreiro que ele era).

Ora num sábado, o Hipólito mostrou-me aquilo, li de rajada meia dúzia de páginas proclamei que estava ali um grande romance e prontifiquei-me a subsidiar o número de fotocópias necessárias para começar a via crucis dos editores.

(também aqui se vê, como os tempos eram difíceis para quem queria estrear-se)

Já com a entrega das fotocópias aprazada, pagas de antemão por este aspirante a mecenas, eis que aparece o FAP. Falou-se do livrinho do outro Fernando (F AA) e dias depois no Jornal aparecia uma notazinha que dizia mais ou menos isto: “está a despertar grande curiosidade o livro de estreia de Fernando António Almeida em breve nas livrarias. Demorou mais de um ano, a “Esmirna, cidade azul”. Nesse parêntesis, ofereci cópias da fotocópia original a alguns amigos. Depois, publicado o livro, voltei a presenteá-los com o volume finalmente impresso.

Do Fernando Almeida tenho tudo, pelo menos assim o julgo. À uma porque somos amigos, depois porque ele vale a pena. Escreveu, mais tarde, outro romance “Marina noiva da vida” (Vega), “Contos cruzados” (teorema). Antes há ainda na Centelha, minha editora e de mais um largo punhado de alucinados, “Memória de Portugal”, poemas. Noutro domínio escreveu vários roteiros de Portugal e um excelente ensaio sobre Fernão Mendes Pinto, coisa séria editada pela Câmara de Almada.

Inconformista e independente, demasiado independente, FAA passou despercebido pela praça das letras e quem perde(u) são/foram os leitores.

O Hipólito, deixou uma plaquette “ por que não viajante sem carruagem quem sabe do caos e do seu fascínio” que, pela dedicatória, dato de 1983. Foi um curioso pintor naif mas quando tudo havia a esperar dele, morreu subitamente. A vinheta de hoje é de um quadrinho dele (acrílico sob tela, 25x16 cm) e tem o título “Adão e Eva no paraíso” . Quando lhe fiz notar que faltavam atributos sexuais aos dois personagens, o Hipólito, teólogo imaginativo, retorquiu que os dois ainda estavam no paraíso onde não havia sexo. Conformei-me com a explicação. Paguei o que me pediu e fomos, como de costume, jantar à Trave com a tribo completa dos Salomé, Vitorino, Janita, Manel e sei lá quem mais. Oh, que anos oitenta! “Saudade burra”, claro...  

estes dias que passam 401

d'oliveira, 23.05.20

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Diário das semanas da peste

Jornada sexagésima sexta

Andando e vendo

mcr, 23 de Maio

 

Economicamente falando, há em Portugal um sector extremamente frágil, a roçar o desastre em tempos normais e atolado na miséria nos que correm. Refiro-me, está bom de ver à cultura, melhor dizendo aos trabalhadores culturais anónimos e invisíveis, sempre nos bastidores que contribuem, e de que maneira!, para o êxito da grande maioria das manifestações de palco. Músicos, contra-regras, costureiras, malta do som e da luz, costureiras e figurinistas, gente ligada à montagem, bilheteiros, eu sei quantos mais.

Depois há os outros: palhaços, actores, duplos, toda a parafernália do cinema. Em terceiro lugar temos os consagrados do teatro, do cinema também sem trabalho. A esses há que juntar, artistas plásticos, pintores e escultores de repente sem encomendas, gravadores, mestres serígrafos , fundidores de cobre, e mais uns tantos ou quantos.

No mundo da escrita, um mundo de solitários mas que vive do pessoal ligado à edição , dos livreiros, dos distribuidores e dos seus empregados, o panorama também não é animador mesmo quando sabemos que a quase totalidade dos escreventes tem na escrita uma segunda profissão e não a principal, a que lhe põe manteiga no pão. A proibição mais que justificada dos concertos, dos festivais de Verão traz mais uma pequena multidão a este angustiado grupo.

Com uma agravante: quase toda a gente ligada à cultura (boa ou má, ou assim –assim) é “precária”, trabalha sem rede, à peça. Há ramos de actividade que só subsistem, e nem sempre com especial folga, graças ao apoio estatal- O teatro dito “independente” é o exemplo mais flagrante. Há muito que quase não há teatro comercial, aquele que dependia da bilheteira e de um público interessado e fiel. Tal teatro demonizado estupidamente por gente que, ainda por cima, pouco ou nada (sobretudo nada!) sabe da história do teatro desapareceu praticamente. Ao que sei só há um encenador (Filipe La Féria) que ainda produz espectáculos que dependem do público. Fora isso, consta-me que no parque Mayer ainda há algum raro teatro de revista, também ele dependente do público que o procura. Em boa verdade, aquilo a que chamamos teatro “independente” é, em grande medida” dependente dos subsídios estatais. Aliás o mesmo se diga do cinema dito português. Não é caso único na Europa, embora em grande parte dos países seja obrigatória uma participação financeira externa ou o subsídio signifique, sobretudo um adiantamento sobre as receitas.

Também há um Teatro de S Carlos que alberga a ópera, mantém uma orquestra e um coro O Estado é o financiador e patrão distante.

A ideia que presidiu ao auxílio ao teatro “independente” tinha na base a hipóteses de, ao fim de um certo número de anos, as companhias subsidiadas teriam criado um público próprio e voariam com as suas próprias asas. Isso nunca ocorreu. Em quarenta e tal anos, as mesmas companhias (ou quase) continuam a recorrer através de concursos mais ou menos exotéricos aos mesmíssimos subsídios. Sem eles, morreriam em menos de um ano.

Tal situação não impediu a criação de muitas pequenas companhias que também tentam a sua sorte e sobrevivem ou mal-vivem sabe-se lá como.

Em suma, as artes de palco são as que, neste momento, atravessam a situação mais dramática. E não se vê, a curto prazo (seis meses / um ano) possibilidades de com o seu trabalho conseguirem resultados que lhes permitam funcionar, tanto mais que os espaços (quando eles existem) terão as lotações severamente cerceadas (mesmo se em tempo normal fossem raras as ocasiões de lotação esgotada ou sequer razoavelmente preenchida).

Isto dito, logo se conclui que todas as actividades profissionais que cieculam á volta do teatro são atingidas: luminotécnicos, sonoplastas, cenaristas, figurinistas, costureiras, pessoal de montagem, isto é os invisíveis, ficam ainda mais invisíveis.

Dessa mesma desgraça se podem queixar todos quantos trabalham no domínio da música. No caso, nem as cabeças de cartaz são poupadas mesmo se, por se tratar de interpretes (bastante ou razoavelmente) conhecidos, tenham outra base financeira, recebam cachets significativos e possam ter rendimentos provenientes de discos produzidos, além de terem “direitos de autor” a receber graças à televisão e à rádio. Porém, a anulação de concertos, o Verão sem trabalho, ou com muito pouco, pesa-lhes e pesa-lhes muito, sobretudo se tiverem trabalhadores permanentes (coisa de que duvido) com contrato de trabalho.

Nessa hecatombe, seguem-se os festivais de música que no Verão tem o seu auge. Este ano não há nada para ninguém. E não são só os promotores a sentir a crise mas todas as centenas de pessoas necessárias para se erguerem durante alguns dias o festival.

Todos os concertos, tournées de nomes sonantes nacionais e estrangeiros estão igualmente ameaçados, anulados ou pospostos para data a marcar. Desconhecendo-se a data do fim da pandemia, desconhecendo-se a adesão dos espectadores amedrontados depois, eis outro cenário de devastação.

Nas artes plásticas, vão reabrir as galerias. Dir-se-á que os artistas que nelas farão exposições têm uma ténue garantia de venda das suas obras. Ter têm mas de facto, no esta el horno para bolos como se diz aqui ao lado. O mercado das artes plásticas vi sofrer. Aliás já sofreu. Basta lembrar que as grandes feiras internacionais a realizar por estas alturas estão todas adiadas. Artistas e galerias suas representantes são atingidos, obviamente. Mais atingidos poderão vir a ser os escultores. Arte pública em tempo de pandemia não há. Nem as câmaras municipais estão a pensar em embelezar as suas rotundas, nem as finanças locais estão de boa saúde.

Depois, desculpem se incomodo, há todo um mundillo que gira à volta disto, gente que vive nos interstícios, que cria ou faz por isso. Se os consagrados estão a sentir faltar-lhes o pé, que dizer destes?

Alguém dirá que, pelo menos, a escrita e tudo o que lhe está associado, editoras, livrarias, distribuidores (e autores, claro) estaria a salvo. Ao fim e ao cabo, o que não faltou foi tempo para ler durante as longas horas de recolhimento obrigatório.

Nada menos verdadeiro. Já há livrarias que não reabrirão (o caso da Barata mesmo se porventura a crise já viesse de trás. As editoras atrasaram todos os lançamentos o que implicou para elas prejuízo evidente tanto mais que também neste capítulo muitas trabalhem no fio de arame. As vendas de livros baixaram exponencialmente, a feira do livro de Lisboa não foi, a do Porto é uma incógnita, os alfarrabistas queixam-se amargamente mesmo se o seu mercado é diferente do das livrarias que só vendem novidades ou edições recentes.

Falo por mim: frequentador assíduo de alfarrabistas, não pude fazê-lo durante quase três meses. É verdade que comprei uma dúzia de livros o que significa uma quebra de pelo menos 50%. Encomendei na livraria do meu bairro cinco ou seis novidades e na wook mais uma ou duas. Mas, mesmo com a garantia de venda, os livros demoram a chegar. Do “Inventário” de José Cutileiro já levo dez dias de espera. Mais ainda, do volume II das “Mil e uma noites” a primeira edição portuguesa directamente traduzida do árabe... Tenciono fazer uma sortida a algumas livrarias pequenas e eventualmente à FNAC, esta semana que vai entrar. Notem: eu sou um viciado, um libroadicto, um comprador incontinente que deveria, desde há muito, estar proibido de entrar numa livraria.

Também é verdade que tive tempo para ler vários livros em espera mas, sobretudo, deu-me para reler...

No meio desta catástrofe ainda são os autores quem melhor se safa, ou quem sofre menos. Raro é o autor que vive da escrita pelo que não são os pequenos réditos da actividade que o tornam mais rico.

Todavia, um escritor necessita de um editor. E este de distribuidores que cubram a rede de livreiros. E aqui começam os problemas. Um editor tem de vender os produtos que fabrica. Paga direitos de autor e no caso de obras estrangeiras paga a tradutores. O custo da tradução disse-me um editor para quem fiz várias seria o custo principal de um livro traduzido. Vendo esta pelo preço que a comprei. Pessoalmente, nunca fiz da tradução profissão, só traduzi para editores amigos e desisti quando verifiquei que me pagavam exactamente o mesmo do que a criaturas que nem português sabiam quanto mais a língua que era suposto traduzirem.

Em tempos que já lá vão fui, com muitos amigos, editor. Porém essa actividade era mais política e conspirativa do que outra coisa. Nós apenas não queríamos perder dinheiro.

Também, a convite do Arnaldo Fleming que mais tarde engrossou os quadros da “Afrontamento”, fiz parte do numeroso grupo de sócios da livraria “A erva daninha”. Fui provavelmente o melhor cliente mas aquilo acabou como eu prevenira o Fleming quando entrei com os cacaus requeridos: faliu.

Alguém de boa vontade, editou-me um livrinho de crónicas que vendeu o suficiente para não me envergonhar e até dar um superavit ao editor. Pelos vistos terei merecido a benevolência dos leitores. Ainda bem. Nunca mais pensei em editar-me nem nunca pedi a ninguém fosse o que fosse nesse sentido. Mas aceito ofertas...

As editoras portuguesas são pequeninas, mesmo os dois maiores grupos (Porto Editora e Leya) que tem no seu abito umas duas dúzias de editoras que mantem os nomes originais. Fora desse circuito há uma meia dúzia de editoras que merecem todo o respeito pelo portfólio que ostentam (só vou referir a Relógio de Água, mesmo se isso é injusto). Depois há um grupo de pequenos selos editoriais de que também só vou referir dois “Cavalo de Ferro” e “Cotovia”. Finalmente há umas dezenas (???) de pequeníssimas editoras com um acesso difícil ao mercado e às livrarias mas que tem a importantíssima e meritória função de revelarem os “novos” e neste campo os poetas, gente amaldiçoada por quase todos os editores (ao lado da RA cito outra bela excepção a Assírio e Alvim, agora no circuito dos dois grandes).

As edições portuguesas são pequenas, muito pequenas. Raras vezes se editam de um livro mais de 1000 exemplares!

Assim não se vai longe, não se pode ir longe. Junte-se a este problema a invisibilidade de grande número de autores que os livreiros nunca põem na montra ou nas melhores estantes à vista do público. Tentem encontrar o último livro do Jorge de Sousa Braga, poeta ainda por cima...

Há um único e medíocre clube do livro. 90% dos seus produtos rondam, no melhor dos casos, o sofrível. Há alturas em que o leitor mais aguerrido não encontra no catálogo nada em que meter o dente. Também é verdade que os clubes estrangeiros, por todos o “grand livre du mois”, francês padecem do mesmo mal.

Numa palavra: também neste campo, as coisas correm mal. Também nunca correram especialmente bem, convém dizê-lo.

À excepção do Jornal de Letras, quinzenal e apoiado pelo Estado para difusão no estrangeiro, não há imprensa cultural digna desse nome. O pouco que existe não chega aos calcanhares, por exemplo, do suplemento do “El País”, Babélia, caderno semanal com 12 páginas.

Tudo isto indicia um mercado do livro pobre, gasto, amorfo e triste. E neste capítulo, a salvação possível vem dos alfarrabistas, melhor dizendo de alguns alfarrabistas que muitos há que mais não vendem do que papel medíocre e velho. E nisto, a minha experiência diz-me que os preços altos nem sequer caracterizam os livreiros que tem à venda os melhores livros. Descobri num deles, eventualmente o melhor de Lisboa, livros que andam entre 20 e 30% mais baratos do que noutros. No Porto sucede exactamente o mesmo: o melhor e mais bem fornecido alfarrabista faz preços claramente abaixo de alguns concorrentes.

Mas os alfarrabistas são um segredo demasiadamente bem guardado para muitos leitores que nem deles sabem ou se lembram. Também é verdade que não é neste género de livrarias que se encontram os best-sellers do momento e as paupérrimas redacçõezinhas de alguns rapazes e raparigas que povoam as revistas cor de rosa.

Sobre tudo isto, sobre E nesse localesta “waste land” paira um ministério fantasma que bem poderia fechar portas que ninguém de juízo lamentaria. E esse local é percorrido não pelo amável fantasma de Canterville mas pela sr.ª Ministra que, sem ofensa, me parece não passar de um verbo de encher. E não sou eu que o digo mas essas centenas ou milhares de manifestantes que se sentem acossados.

Não tenho receitas para esta situação. Ou só uma: consumir na medida do possível “cultura”, pagar por isso com o nosso próprio dinheiro. E já agora pagar coisa que se veja e recomende. Estou farto de embustes culturais, de modas passageiras, de narizes de cera, de retórica esparvoada e provocadora. Para esse peditório, lamento muito, não dou. Tenho demasiado respeito por gerações e gerações de artistas que passaram dificuldades extraordinárias animados apenas pela sua crença no seu talento e no seu amor pela arte. E à vista dessas vidas não venho fazer a apologia da miséria criadora mas também não venho justificar um dever do Estado de apoiar seja quem for, apenas por se intitular artista.

Nem por acaso há pouco tempo referi aqui “Le temps des bohémiens” de Dan Franck, Grasset . Uma história da arte moderna e uma lição de vida artística.

*a vinheta: “Jeanne Hebuterne” por Amedeo Modigliani, seu marido. Quando Modigliani morreu, Jeanne suicidou-se, atirando-se da janela da casa dos seus pais: tinha 22 ou 23 anos

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