estes dias que passam 409
Os dias da peste
Jornada septuagésima quarta
“Enquanto agonizo...”
mcr, 31 de Maio
O título de hoje é tirado de uma citação de uma citação. Explico-me: Faulkner, um dos mais meritórios prémios Nobel de sempre, escreveu um romance a que chamou “As I lie diyng” que em português deu “enquanto agonizo” e mais tarde “na minha morte”. Todavia, William Faulkner citava a Odisseia, mais propriamente os versos 434/5 do canto XI (fala de Agamémnon a Ulisses). Na brilhante tradução de Frederico Lourenço (Quetzal, 2018), este usa a palavra “moribundo” que, sendo exactamente a mesma coisa, foge da famosíssima citação inglesa que deu título a Faulkner.
Tudo isto, num relance, veio-me à memória por causa das imagens infames, obscenamente infames, do assassínio de George Floyd às mãos de um polícia empedernido com um longo historial de violência.
Há muitos, muitos anos, praticamente cinquenta, preparei e traduzi, com a colaboração preciosa da Maria João Delgado, uma antologia sobre os “panteras negras” com o título “Os panteras negras” (Centelha ed. Coimbra, 1971) que, como se calcula teve uma vida algo agitada. Primeiro, uma imprevista rusga da polícia a uma tipografia, deu com a capa já impressa e, sem conhecer o libro que estava em fabrico noutro lugar, deu azo a uma proibição de venda. Depois, editado o livro com a mesmíssima capa, começou o cerco. A polícia corria as “capelinhas” à procura do livrinho e os livreiros escondiam-no bem escondido e continuavam a vendê-lo. Curiosamente, entre os catorze processos que contra mim correram pela PIDE/DGS, nada consta desta actividade delitiva. Ou então fui eu que não li tudo...
Uns anos antes, em 1968, movido pela recompensa monetária possível, concorri, sob o pseudónimo de Pickwick, ao prémio de ensaio nos jogos florais da Queima das Fitas, com um longo texto “algumas notas para a compreensão da revolução negra nos E.U.A.” Provavelmente, por não haver muitos concorrentes, ganhei os dez contos (uma fortuna, naquele tempo). Repeti a graça, no ano seguinte mas a queima foi anulada e o prémio foi igualmente anulado. Dessa feita, o meu trabalho era mais sobre África e intitulava-se “África: Uhuru! (notas para a história do colonialismo e do neo-colonialismo)” e eu usava o aguerrido pseudónimo de Shaka (nome de um grande chefe zulu – nguni que viveu entre 1787 e 1828). Segundo o Joaquim Namorado, presidente do júri, eu teria voltado a ganhar mas fui vítima indirecta da crise na qual colaborei de corpo e alma.
Em 71, um editor de pé de escada, “éditions le nouveau etudiant noir”, negro e afrancesado, virulentamente pro-chinês, resolveu editar os dois textos em conjunto mas, como entretanto fui mais uma vez preso e enviado para Caxias, perdi totalmente o rasto da criatura, da edição (eu trouxera de Paris, as primeiras provas” mas a polícia deitou-lhes a unha, felizmente aquilo vinha com um terceiro pseudónimo, também ele perdido ( quando voltei a Paris, já nada restava da briosa editora, do seu animador e das suas produções. Confesso que me dói um pouco este extravio da minha obra imortal e combativa –que, aliás, sofrera grandes acrescentos - mas contra o irremediável não vale a pena derramar sequer uma lágrima. Lá se foi o Nobel ou algo parecido mas reservado a ensaios militantes...).
Tudo isto, me veio, como disse, à memória, ao ver horrorizado, irado e sufocado, a morte em directo de um pequeno delinquente.
Nada disto me destrói a ideia que tenho dos Estados Unidos, da sua literatura, do seu jazz, de toda a restante música popular americana, do seu cinema. A “América”, espero-o, é mais forte do que os crimes de uma minoria de criminosos, do que a estupidez de outra minoria de políticos ou da avidez de mais uns quantos empresários. E do fanatismo de outras, essas sim poderosas, minorias religiosas.
As bojardas bolsadas por Trump a propósito dos tumultos não me impressionam. De Trump como de Bolsonaro, dos tiranetes da Venezuela e da Nicarágua e dos seus admiradores portugueses, é de esperar tudo desde que caiba numa fossa.
E mesmo que, como aliás se vê nos documentários televisivos, a justa indignação seja, por vezes, acompanhada de pilhagens e ataques ao pequeno comércio nos bairros negros, nada me permite condenar a grande, esmagadora, maioria dos manifestantes.
É verdade que são os bairros negros que mais sofrem pela acção de gangues organizados servindo, eventualmente, interesses obscuros ou sendo até notoriamente promovidos por racistas e suprematistas brancos, mas disso temos na Europa fortes exemplos seja em França na periferia parisiense, seja noutros locais onde qualquer manifestação corre o risco de ser ultrapassada pela acção de grupos como o black block ou outras organizações, formais ou informais, afins.
Subjacente à acção desses bandos de energúmenos, provocadores, altamente organizados, há a ideia de que o uso da violência, levará o establishment a reprimir cada vez mais fortemente as “massas” e estas, finalmente, cansadas de tanta opressão, revoltar-se-ão e destruirão o “sistema”. Nenhum destes pressupostos, com, aliás, um longo historial, se verificou e é duvidoso que alguma vez se verifique. Fica apenas a violência pela violência, a pobreza aumentada, a vida dos mais humildes pior.
Não são muitos os livros de autores negros americanos traduzidos em Português. Todavia, lembraria o esquecido Richard Wright que teve três livros traduzidos em português (O negro que quis viver, filho nativo, os filhos do pai Tomás) todos de excelente factura mas desaparecidos dos catálogos e das livrarias. Ultimamente apareceram dois livros de James Baldwin (“Se esta rua falasse” e “Se o disseres na montanha” Existe também “Da próxima vez o fogo” edição brasileira que talvez se encontre na livraria brasileira de Lisboa (Travessa).E, claro Toni Morrison, premio Nobel 1993 que tem dois livros traduzidos “Deus ajude a criança” e “Beloved”
Um quarto autor que nada terá em português mas que descobri nos idos de sessenta é o poeta, dramaturgo e ficcionista Langston Hughes. A primeira que ouvi falar dele foi pela boca do Jorge Aguiar, o “Cérebro”, um dos elementos da direcção da AAC sob a presidência de Carlos Candal. Trazia um volume de poemas traduzidos para francês “Poémes” (Seghers ed) Deixou-me ler alguns enquanto bebia a bica e fiquei maravilhado. Corri à “baixa” e consegui milagrosamente comprar esse volume. Mais tarde, sempre em francês encontrei “La poésie negro-africaine” (Seghers) que me foi roubada na razia policial acima citada e, finalmente, the last but not the least, “L’ingénu de Harlem” (“The best of Simple”, no original) que comprei em segunda mão em Paris em 1968. O livro trazia uma dedicatória do autor cuidadosamente apagada pelo anterior dono...
Este Simple é simplesmente uma súmula do humor, do bom senso, da subtileza dos negros americanos. Recordo que, no século passado, um programa de rádio (“Café Concerto”?) passou inúmeros diálogos retirados deste conjunto de histórias. E não sei porquê, mas associo sempre o nome de José Duarte, o grande divulgador de jazz, a esta empreitada. Se foi, mais um título de nobreza para o seu currículo, se não, não faz mal nem o diminui.
* na vinheta: Tommy Smith e John Carlos dois atletas negros norte americanos tiveram a coragem de erguer o punho fechado no pódio dos 200 m dos jogos olímpicos do México. Um escândalo tremendo, e o fim da carreira para dois extraordinários corredores. Quiseram mesmo retirar-lhes os títulos olímpicos mas parece que alguns elementos do Comité Olímpico tiveram a coragem e a ousadia de se oporem.