estes dias que passam 438
Os dias da peste
Jornada centésima quarta
Livros evadidos
mcr, 30 de Junho
Se há uma coisa que, no cafarnaum cá de casa, esteja organizada e ordenada é a biblioteca mesmo estendendo-se por várias divisões e corredores. E não é coisa fácil dado haver livros que acabam por pertencer a duas categorias ou que simplesmente não cabem nas estantes (in)disponíveis.
Posso, entretanto, garantir que estão todos numerados, todos “tombados” no livro mestre onde anoto as compras e dou o número de entrada e todos com uma ficha ou individual ou, colectiva (no caso de autores com várias obras ou, menos frequente, de uma colecção. Assim Eça tem direito a uma ficha única que já vai em quatro dado o número de edições e de livros sobre ele enquanto que os boletins da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais constam de uma boa meia dúzia de fichas sempre com o mesmo título.
Todavia, volta e meia, compro um livro repetido apenas porque não tive o cuidado de ir ao ficheiro ver se ele existia. Fico furioso, como calcularão pois não tenho vocação mecenática de qualquer espécie e se tiver de dar dinheiro a alguém, o que por vezes acontece, dou-o a organizações que considero dignas de ajuda e não a livreiros ou editores.
Ora, recentemente, comprei dois livros em dois alfarrabistas distintos que julguei não ter: As ”Marchas, danças e Canções” de Fernando Lopes Graça , numa edição relativamente recente mas esgotada, e “Bahia de Lourenço Marques... questão... com a Grã-Bretanha... 2ª memória do Governo português... “ uma publicação de 1874 sobre a longa disputa entre Portugal e a Inglaterra sobre o domínio da baía e também da cidade que na altura era um foco de doenças mas que serviria para porto das recém conquistadas colónias boers.
Foi o Presidente da França, marechal Mac-Mahon quem dirimiu o conflito dando razão à parte portuguesa.
(não foi o único conflito sobre esta esplêndida baía pois os holandeses também a quiseram e chegaram a pôr pé na costa mas vencidos pelo clima e pelos portugueses mandados à pressa de Moçambique (ilha) numa das muitas expedições que aquela zona necessitou. Em boa verdade, mesmo depois dos ingleses terem sido contrariados, a cidade, aliás vila, foi atacada por “impis” africanas eventualmente armadas e pagas pelos primeiros).
Quando fui fazer a ficha dos livros, entretanto lançados no livro mestre, descobri estupefacto que já os tinha, pelo menos as fichas apareceram. Fui por eles e nada. Procurei esforçadamente as duas obras nas estantes respectivas e, das duas uma: ou estou cego ou elas escafederam-se (adoro esta palavra!) para local incerto.
Note-se que ambos os livros tem formatos que os distinguem da maioria. São mais altos, bastante mais altos, que a generalidade dos livros. vá lá saber-se a razão, sobretudo no caso das “marchas... “ de Lopes Graça.
Já por aqui terei contado que um dos meus melhores amigos, o Pedro Sá Carneiro Figueiredo, era um leitor voraz e, de cada vez que vinha cá a casa para jogar bridge (ele foi, na porra da curta vida que teve, o pior jogador de bridge com que me cruzei – e notem que que levo sessenta anos de bridge!-Nunca percebi como é que um tipo tão inteligente e tão entusiasta daquele jogo conseguia acumular disparate sobre disparate a uma pasmosa velocidade!), fazia uma razia nas estantes e saía ajoujado ao peso dos calhamaços. Quando regressava, trazia os livros, ou melhor não os trazia todos porque, na casa dele, a mulher e a empregada, sempre que viam um livro com ar de perdido metiam-no na estante mais próxima. Eu nem dava pela coisa, limitava-me a pôr os volumes entregues no seu sítio. O Pedro entretanto morreu e durante anos a viúva, ia-me trazendo chorosa e desamparada os livros que encontrava e que felizmente tinham a minha assinatura ou algum carimbo meu.
De facto, só se dá pela falta de um livro quando vamos por ele, pelo menos quando a biblioteca tem um certo tamanho.
Também é verdade que, durante alguns breves anos, o meu grupo se dedicava a mudar a ordem dos livros nas bibliotecas dos outros. Ou melhor, só o faziam se a biblioteca tinha sinais evidentes de estar organizada. Isto põe qualquer leitor num estado de exasperação quase homicida e temendo que algum dia alguém chegasse a extremos destes, entendemos negociar um tratado de paz selado com um belo jantar de marisco.
Porém, tudo isto é mais que passado. Todos envelhecemos e alguns de nós já deixaram este vale de lágrimas. Há anos que das minhas estantes só saem livros para uma única destinatária que, de quando em quando, se lembra de começar a ler algum autor que desconheça. Então, chega-se com pezinhos de lã, na esplanada do costume, tenta pagar o meu café e pergunta-me com ar inocente, como há dias “Olha lá que me dizes do Manuel Teixeira Gomes?” Eu digo que sim, que, apesar de ter sido presidente da república, foi um homem interessantíssimo que, às tantas mandou a política às malvas e se retirou para uma pequena cidade argelina onde acabou os seus dias. E que escrevia muito bem. E, conhecendo a peticionária como conheço pergunto logo se quer que eu lhe empreste algum livro. Claro que quer. E é uma excelente leitora que, ainda por cima, encaderna em papel espesso os volumes emprestados, restituindo-os atempadamente com menos pó do que à ida.
Mas os livros acima citados passaram seguramente à clandestinidade. O do Graça ainda se compreende pois é uma antologia de poemas anti-regime de Salazar, musicados por um excelente compositor e oposicionista. Tive a honra e o prazer de conhecer boa parte dos autores das canções e de cantar muitas delas num alarde de desafinação que só a amizade me salvou de ser considerado uma provocação!
Agora, a “memória sobre a bahia...” (bahia com h para acentuar o i!, que bonito!) é que não se entende. Nem os mais espevitados e hodiernos (outra palavra de estalo!) activistas anti-coloniais se atreveriam a atacar este monumento, tanto mais que em Lourenço Marques, hoje – e tolamente!- Maputo, ainda subsiste o venerável nome de Mac-Mahon, na praça do mesmo nome e mais ainda a memória da sua decisão pois ninguém tocou no nome da avenida 24 de Julho dia da decisão do marechal. Este nome transitou integro do regime colonial para o actual nacional.
Os bifes foram derrotados mas nem por isso deixaram de afluir à cidade em todos os períodos de férias. Vinham embebedar-se e, de caminho, frequentar as putas da antiga rua Araújo. Em Moçambique, no tocante a putas o que sobrava eram raparigas pretas e mulatas. Os cavalheiros do apartheid deslumbravam-se e pecavam duplamente. Fornicavam e fornicavam com gente de outra cor o que nas leis canalhas da África do Sul equivalia a crime de “bestialidade”!!!
Nós rapazolas, claro que atacávamos em enxames cerrados a rapariguinhas “bifas” com a sólida convicção, nunca provada, de que obteríamos mais do que uns beijinhos coisa que elas generosamente distribuíam com fartura. Na boca! Ai...
Portanto, e voltando à vaca fria, andam dois livros a monte. Terão fugido ao covid? Aos impostos? Ao Ventura? Ou, hipótese improvável mas que não se pode ignorar, temem encontrar-se com o Sr. Presidente da República e serem alvo de beijos e selfie (ou vice-versa)?
Na vinheta: praça Mac-Mahon em Maputo, se é que ainda se chama assim...