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Os dias da peste 163
Livros para um confinado
mcr, 28 de Janeiro
A prisão domiciliária está para durar, apesar do dr. Costa falar em semanas. Dar-me-ei por muito feliz se, lá para fins de Março, puder cautelosamente voltar à minha esplanada, beber um café, ver a meninada a brincar no jardim, gozar o sol da primavera já entrada. Claro que isto cheira a optimismo irrefreável mas que querem, nasci assim e assim morrerei esperando que de outra morte mais tardia e natural que por via do vírus.
As coisas não estão boas, nada boas. Agora já se morre às centenas,e nesse número a minha geração contribui com metade dos apanhados pela rasoira. . Metade, 150 por dia se os números não dispararem, mas isto é um voto pio.
Entrincheiro-me atrás de livros, alguns com idades veneráveis, outros acabadinhos de aparecer.
Dentre estes, citaria o 1º volume de “Le musée, une histoire mondiale- 1- du trésor au musée- ( Krzystof Pomian. Gallimard (bibliotheque illustrée des HhHistoires)520 páginas de texto e 170 de notas. Eu ainda só lhe di umas bicadas mas já deu para perceber que. em Roma, por exemplo, já alguém (Cícero) afirmava que o coleccionador deveria fazer doação à cidade das suas colecções “em vez de as enviar para o exílio das villae do campo”.
Claro que isto é para ir degustando lentamente quanto mais não seja porque ainda não tenho as lents graduadas depois da operação à catarata.
O mesmo se diga de um livro, já traduzido, “O Infinito num junco”(Irene Vllejo) Bertrand, 2000. Trata-se de uma leitura empolgante, escrita num tom simples e eficaz. Como muitos leitores, também eu vou remando vagarosamente, um capítulo hoje, duas páginas daqui a dois dias que o que mais me sobra é tempo. Irene Vallejo com este livro alcançou um enorme notoriedade em Espanha como leio no El Pís de sábado. Enhora buena!
Aproveitando o tempo das festas natalícias, os editores franceses desembarcam no mercado obras sumptuosas. É o caso de “Voyage sur la route du Kisokaidô (de Hiroshigue a Kuniyoschi), um álbum ab-so-lu-ta-mem-te excepcional editado pelo Museu ernuschi e Paris Musées, 2000.
Eu não sei se os meus leitores já se confrontaram coma as admiráveis gravuras japonesas. Se ainda não, não percam tempo. Aquilo é do outro mundo, ou melhor de um mundo que esteve em paz durante cerca de 250 anos, a época Edo (sec XVII até XVIII , 3º quartel).
Estas estampas normalmente xilogravuras representam cenas de todos os géneros, desde históricas, vatalhas, samurais etc, até `vida no campo, à descrição da natureza, ao retrato sem esquecer (e quem é que, mesmo nestes tempos de politicamente correcto, poderá omitir uma longa e belíssima tradição de pintura licenciosa que fez furor ente os finais do sec. XIX e o primeiro quartel do sex. XX. Refiro-me à arte “shunga” de que também existem catálogos admiráveis. Um dos retratos mais interessantes e usados dos sedutores desta abençoada época é aquele em que o cavalheiro convida uma mulher para vir admirar a sua colecção de arte japonesa. Estava tudo dito.
Estas gravuras normalmente apelidadas de arte “ukyio-e” ou seja “retratos do mundo flutuante”, vendiam-se, vendem-se ainda hoje, por todo o Japão culto. Era uma arte artesanal em que o autor dividia com os gravadores e os impressores o produto da venda.
A primeira vez que vi gravuras deste género foi em Berlin no longínquo ano de 1970, num dia em que saído do Goethe Institut subi a Kurfurstendamm até ao Café Kranzler. Um pouco antes e do outro lado da avenida lá estava a galeria, cujo nome miseravelmente olvidei, aquilo de UKYIE-E despertou-me a curiosidade /e se eu sou curioso! ) pelo que entrei tanto mais que não pagava nada. Fiquei estarrecido! Comprei o catálogo que, aliás, era barato e, durante muitos anos, não pensei, ou não tive ocasião de pensar naquilo. Até que votei a reencontrar os japoneses e a velha chama reanimou-se. Curiosamente, mesmo cá, n FNAC é frequente aparecerem a preços muito razoáveis, catálogos e monografias sobre arte japonesa. Juro: aquilo é uma revelação. A cor, o traço estilizado, a atenção ao pormenor, a delicadeza tudo se combina para alegria dos olhos.
Esta estrada de Edo a Kioto (cerca de 400 quilómetros) podia percorrer-se de estação para estação (69 no total) pois havia não só algum policiamento mas albergues para quem viajava. Era uma das cinco grandes estradas ordenadas por Tokugawa Ieyiasu, o grande unificador (e vencedor) do Japão post-medieval.
Dois grandes pintores originaram a descrição pictórica da viagem, Hiroshige e Eisen. O êxito foi tal que muitos outros se lhes seguiram. Parte da estrada segue ao longo de um rio e isso é amplamente ilustrado, sendo porventura a parte mais famosa.
Outro momento pictórico e museográfico para continuar esta onda mansa. Desta feita, descobri num alfarrabista (Livraria Esquina, Porto, aqui mesmo no meu bairro, à vista da minha esplanada) “Le Louvre. Le musée et les chefs d’oeuvre de la peinture”-. Com texto e estudo de Georges Lafenestre, ed- Flammarion, s.d. Um calhamaço imponente que traz em extratexto muitas repriduções a cor. A obra está datada, como é evidente mas exemplifica muito bem a variação do gosto. E a edição é extremamente cuidada.
Do mesmo sítio, e quase na mesma altura, deparei-me com “Voyage ilustrée dans les cinq parties du monde. O autor compilador é Adilphe Joanne que antologia dezenas de relatos e carreia mais de 650 gravuras )Paris, aux bureaux de l’Illustration, circa 1850). O olhar europeu no auge do movimento descobridor “científico” do mundo.
E finalmente, do mesmo local, o curioso “Atlas historique, genéalogique, chronologique et geografique” de A Lesage (ou Le Sage) ed Leclerc, Paris 1829. Formato in-folio grande (56x37cm) ,34 páginas duplas, encarceladas com cuidado. Neste caso, o meu problema era re-encadernar o volume pois a minha encadernadora não tem balancé (não me perguntem o que é que não sei) para formatos acima de A4 . Felizmente, de quando em quando. vou a outro encadernador que, esse sim, encaderna qualquer formato.
A propósito de Atlas devo dizer que de há uns anos a esta parte comecei a interessar-me por atlas um pouco no seguimento do meu interesse pela expansão portuguesa. Comecei pelos Atlas do Visconde de Santarém(uma colecção excepcional que deveria ser dignamente reeditada) e nunca mais parei. Claro que tive de arranjar um móvel especial para os ter. Estes grandes volumes não podem estar ao alto sob pena de ficarem tortos. Consegui arranjar no IKEA uma coisa belíssima mas aquela gente quando não tem grande venda “descontinua” os produtos! De modo que começo a estar um pouco apertado de espaço.
Portanto, queridos leitores, quando me virem a choramingar por via da reclusão, não liguem: tenho muito com que me entreter. O que me falta é tempo...
Na vinheta: duas gravuras do catálogo de cima para baixo Kuniyoshi e Hiroshige