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publicado às 12:55
Os dias da peste, 182
devotos/as de Santa Rita de Cassia
mcr, 18 de Fevereiro
Durante mais de uma dúzia de anos veraneei em Moledo, pequena aldeia do concelho de Caminha. Era o casal Simas Santos quem me acolhia generosamente (a mim a ao Manuel Sousa Pereira) e depois o meu hospedeiro foi durante mais uns anos o Carlos Cal Brandão. Moledo era um paraíso de águas frias, dunas até Caminha, um pinhal e pouca gente, mesmo em Agosto Nos dias feios, partia-se para a Galiza, quase sempre para Vigo, para nos enchermos de marisco (em Vigo há mesmo uma rua pejada de bares à porta dos quais há vendedoras de ostras. Que barrigadas, Santo Deus!). E havia as livrarias e o corte Inglês onde me enchia de livros e de discos.
Tanto me afeiçoei à região que posteriormente mudei o local de férias para o sul de Sanxenxo, praia de Areas que tinha uns restaurantes esplanadas onde durante duas semanas fazia uma dieta de marisco, peixe e pimentos do Padrón (uns pican otros non!). E se o tempo e a pandemia o permitirem, já resolvi agarrar na CG, na enteada, genro e neto e, ala que se faz tarde, para um delicioso e cômodo hotel em cima da praia. O Nuno Maria começa a ter idade para provar mariscos das rias de Arosa e Pontevedra e empanadas.
Todavia, deixemos estas digressões por sítios onde fui feliz (e onde espero voltar a sê-lo) para regressar a Moledo, a Agosto e às festas de Santa Rita de Cássia, vaga padroeira da risonha Caminha.
O ponto alto da festa é obviamente o dia da procissão e do fogo de artifício que se lhe segue. Deixemos este para nos debruçarmos sobre a procissão que é das maiores e mais vistosas que alguma vez vi. Claro que o Carlos, os Maneis e eu (e o Joãozinho Simas, na altura um minorca que adorava ver passar os soldados romanos (os “homens da luta”, na sua opinião) éramos uns veros peregrinos da santa e não perdíamos nenhum pormenor. E pormenores era o que não faltava.
Eu, antigo aluno rebelde de alguns colégios semi-laicos, semi-religiosos sou pouco dado (Colégio Liceu Vasco da Gama, Nampula, colégio dos Carvalhos, Gaia, colégio Almeida Garrett, Porto para não falar do “internato anexo” ao liceu de Braga!) a práticas religiosas e a devoções do mesmo teor mas confesso que a procissão de Santa Rita no pino do Verão era algo a que nem doente faltaria.
A procissão era grande e os santos muitos e variados. Demasiados, até. Acreditem ou não até o Marquês de Pombal(!!!) desfilava. Que era o marquês não havia dúvidas porquanto antes de cada figura vinha uma criança com um cartaz indicando-lhe o “who’s who”. Desfilavam, igualmente a “Rainha do Mar” e outras criaturas extravagantes de que já só tenho vaga lembrança. Na cauda da procissão havia sempre um forte grupo de mulheres, vestidas de roxo que, explicaram-me, eram as casadas maltratadas pelos extremosos cônjuges!
(eu não sei se as criaturas eram corajosas ou se os maridos se envergonhavam por esta pública e religiosa denúncia).
Santa Rita só vem aqui ao folhetim porque, de certo modo, poderia representar uma certa mentalidade muito em voga entre pequenos e médios intelectuais indígenas que adoram fazer o papel de testemunhas de acusação do país onde prosperam e têm tabuleta de comentador pendurada à porta.
Pululam nos jornais e nas tertúlias televisivas, sempre os mesmos, sempre iguais a si próprios, sempre entre o queixume e a autoflagelação. São, em versão suburbana, as criaturas do fim da procissão de Santa Rita de Cássia mas, ao contrário das minhotas denunciantes, há quem lhes pague a constante denúncia dos podres reais ou inventados da pátria. Todavia, esta meritória tarefa é sempre guiada por certezas absolutas entroncadas numa visão do mundo em que os famosos “amanhãs que cantam” se mantém apesar da História pregressa e recente os ter atirado para o caixote do lixo.
Tomemos o exemplo do abominável racismo que , pelos vistos, informa e enforma a sociedade portuguesa.
É esta mesma sociedade que acolhe (mesmo de forma diversa) dezenas de milhares de angolanos, moçambicanos, guineenses e cabo-verdianos. De “vitimas” do exacerbado colonialismo lusitano. De negros que cá se estabelecem, criam os filhos sem ideia de alguma vez regressar à terra que os viu nascer. E não se pense que são apenas emigrantes económicos. Portugal foi, e é, nas últimas décadas o abrigo de inúmeros dissidentes políticos, incluindo nesse grupo, antigos dirigentes guerrilheiros que combateram de armas na mão contra o exército português. . É em Portugal que desaguam centenas de estudantes dos palop que cá vem frequentar a universidade, fazer os mestrados ou doutorar-se. No país opressor e racista e colonialista! Arre que é preciso ser-se profundamente masoquista!
O exemplo mais divertido desta geração de combatentes anti-racistas é o sr Mamadou Ba que, saído do Senegal, rumou a Portugal onde exerce de missionário do anti-colonialismo, do anti racismo e de discípulo do mais que esquecido Franz Fanon. Do Senegal, notem bem, país de língua oficial francesa e de língua veícular predominantemente oulof. Deve ter sido um tremendo sacrifício aprender esta língua detestada e carregada de conotações infames para um filho de uma África que provavelmente nunca existiu!
Eu, que estou sempre a apontar o dedo a algumas chagas antigas e pouco recomendáveis da sociedade portuguesa, fico perplexo quando leio certos comentaristas do Público, sobretudo quando me lembro de onde saíram (se saíram) de que farmacopeia ideológica extraem os seus argumentos e de que História foram, ou são, arautos...
Dir-se-á que são poucos, o que é verdade. Que os princípios que eventualmente defendem tem uma reduzida expressão política eleitoral o que se verifica cada vez com mais insistência. Que, na complicada teia de cumplicidades com o mainstream português tanto ajudam o PS a governar como constantemente o acusam de estar ao serviço dos mais obscuros interesses da burguesia, do capitalismo, do patronato e do cozido à portuguesa, já agora. Ou das sardinhas de escabeche, tanto faz!
Estes devotos e devotas exaltados de Santa Rita (de Cássia) ignoram a existência desta santa que além de proteger as pobres esposas de maridos violentos é também padroeira dos impossíveis. É nesse fértil terreno que eles jogam!
(sem qualquer ligação com o que acima se escreve, aproveito para desmentir uma história que nos idos de setenta circulava: dizia-se que um cartaz gigantesco do MRPP com os cinco grandes barbudo, bigodudos ou meramente de verruga na face, circulava em procissões do interior minhoto e transmontano. Em Caminha nunca o vi, nem noutras paisagens menos balneares. Às tantas é um mito urbano. Divertido mas falso, como tantos escritos de indignados usuários de uma das muitas teorias da conspiração que medram no torrãozinho de açúcar...
publicado às 12:54
0s dias da peste, 181
Não há volta a dar-lhe...
mcr, 17 de Fevereiro
“ Um país embiocado”, diz o “Miro” (W, com exige que o chamem, Vladimiro como constava do BI , Wladimir , como conseguiu depois de uma luta bur(r)ocrática que demorou anos e consumiu fartos cabedais), um pais que se não habitua à discussão civilizada, à tolerância e que é pasto de minorias activistas, de talibans do politicamente correctíssimo!!!"
“Mirinho, seu doidão, estamos em Portugal, pá, a milhares de léguas da europa, ainda cheiramos a cueiros e a sacristia e a inquisição (a verdadeira e a que se nos meteu no corpo mal lavado) ainda por cá anda!” reponta a Jujú Cachimbinha, de que falaremos um dia destes. A Jujú queixa-se de que não consegue explicar à neta mais nova, nascida na Bélgica, em Liége e regressada à madrasta-pátria há um par de anos para estudar coisas ligadas ao mar, este país com tanto sol, tanta luz, tanto sal e tanto sul e tantas vendas no olhar vesgo e matreiro. “Não há pachorra, Heinzie (este sou eu para um par de amigos, ou “Tio” para outro par), “esta gentinha não tem emenda!”
Tudo isto animou um bate boca internético à conta do Juiz Caupers e do Tenente coronel Marcelino da Mata .
Comecemos pelo Juiz.
Parece que há dez anos, este juiz que também é professor universitário, escreveu umas larachas sobre uma lei que permitia o casamento de homossexuais. Parece que o actual (indigitado) Presidente do Tribunal Constitucional entende (ou entendia) que o dito matrimónio e algumas das suas consequências contendem com a noção de casamento mais comum (entre pessoas de sexos diferentes com várias finalidades incluindo a reprodução da espécie). Entendeu e escreveu isso numa obscura publicação da faculdade de Direito de Lisboa. Há dez anos!
Durante esta longa década, ninguém atribuiu qualquer importância ao que o juiz agora classifica de “tolices”. Bastou a criatura aparecer votada para a Presidência do Constitucional para se ouvir um coro de acusações e protestos.
Se o juiz tivesse mais espinha dorsal, poderia assumir o que escrevera e reiterar o que então dizia sobre o “lobby gay”. Infelizmente, tenta, agora, com ou sem arrependimento, defender-se mal e frouxamente com a desculpa de “palavras tolas”.
Ao que sei, o juiz Caupers é um competente professor de Direito e um juiz sem mácula. As suas ideias sobre a sexualidade não o impediram de, até hoje, desempenhar o seu mester no TC. Conhecidos meus, mais ao par do que se passa no soturno mundo do Direito, afiançam-me que a criatura pensa pela própria cabeça. Até me dizem que é um próximo do PS o que em nada o eleva ou diminui.
O juiz Caupers poderia, por exemplo, acreditar em fadas, elfos, duendes, bruxos ou ogros. Viria daí mal ao mundo? Poderia acreditar na superioridade do homem negro, dado ser a África o berço presumível da nossa espécie. Poderia ser adventista do 7º dia, católico apostólico romano ou hinduísta e acreditar naquele gigantesco panteão.
Nada disto o impede de, no exercício do seu múnus, ser exemplar, justo e decente. De servir o Direito e de interpretar a Constituição mesmo esta que temos, mais comprida e muito mais chata do que a espada de Afonso Henriques.
Eu, um pouco (bastante) mais velho do que o juiz Caupers fui educado no respeito por Deus, pela Virgem, pelos santinhos, pela Pátria imortal dos egrégios avós, pelo dr. Salazar, pela ideia de que Portugal do Minho a Timor era eterno. Aos trancos e solavancos,soltando muito lastro, lá fui chegando ao que sou hoje e acreditando no pouco, pouquíssimo, em que acredito. Fora o padre confessor da minha muito longínqua mocidade a polícia do Estado Novo, nunca ninguém me açulou as matilhas das verdades oficiais, oficiosas, actuais ou politicamente correctas. E que açulasse que eu estou, sempre estive a marimbar-me para essa obscena gritaria (onde o berro faz as vezes de argumento). Foi tardiamente que conheci homossexuais. Foi tardiamente que verifiquei que os havia inteligentes e imbecis, assumidos e reservados, activistas ou não. Fui amigo de alguns. Detestei outros como detestei muito hetero cabrão.
Acaso o juiz na discussão de uma norma qualquer decidiu com base no sexo ou nas preferências sexuais de quem a escreveu, a defendeu ou quanto a quem ela, eventualmente seria aplicada?
Acaso o juiz (ou o professor enquanto tal) prejudicou algum(a) homossexual disparando sobre as suas preferências sexuais?
Consta que não. Então a que vem esta cabronada, este coro de uivos à lua?
A sehunda questão que me põe os cabelos em pé é a reacção absolutamente racista (e eventualmente fascizante...) á vida do tenente coronel Marcelino da Mata.
Como ele era preto (e eu insisto nesta palavra “preto”, e não africano ou negro, pelas razões que adivinham) "preto da Guiné", teria por força de combater contra os colonizadores, contra os “portugas” na Guiné.
Alguém pode apontar-lhe “crimes de guerra”, crimes que por isso mesmo, ultrapassem as pouco recomendáveis acções que em tempos de conflito armado acontecem? Alguém, sobretudo entre os senhores militares puros, heroicos, exemplares, democratas desde o berço ou até antes (desde a concepção, quando um anjinho avisou as futuras mães que eles já vinham vestidos de Galaaz, directos da Tavola Redonda , destinados a descobrir o Graal da liberdade para as colónias - sobretudo as portuguesas- ), nunca cometeu, nos momentos em que combatiam na mata nenhum deslize, nunca omitiu nenhum acto impróprio, nunca mandou para a morte certa um pobre galucho vindo directamente das berças para o inferno africano?
Eu não vou – mas poderia- nomear ninguém desses que, ao fim de muitos anos de combate entenderam pôr fim à contenda, poderão ter um passado muito, pouco, assim-assim, comprometido com o regime que serviram desde os tempos da Academia Militar.
Eu não vou comentar – mas poderia, e com toda a facilidade! – as vidas e opiniões de muitos cavalheiros, paisanos que, em seu momento de militância mais exaltada, uiularam que Stalin (ou Mao ou Lenin) "estava nos seus corações", enfebrecidos pela miragem da ditadura do proletariado, da revolução cultural do prodigioso centralismo dito democrático, do culto ao sol na terra e outras inanidades que encheram o mundo de campos de escravos e as valas comuns de cadáveres esquecidos.
É provável que na turbamulta dos indignados haja gente de boa vontade e incapaz de, num momento de maior lucidez, fazer o julgamento apressado e sumário que nestes casos sempre pode ocorrer. É tão fácil ceder ao estereótipo do preto bom e do branco mau. É tão fácil dividir a nossa história africana entre bons e escuros e maus pálidos e soberbos.
A história pregressa da Guiné (mas podíamos, sem qualquer dificuldade, acrescentar-lhe Angola ou Moçambique) mostra como o país “de Amilcar Cabral” não é exactamente (nunca foi) uma espécie de heroico Vietnam africano e que todos os seus naturais estavam do lado bom da História.E que os seus líderes (que se combatem e combateram, que se exilaram para a pátria do opressor, são exemplos seja para quem for?
Ou, como em Angola, foi possível o “nitismo”, o sangrento “anti-nitismo”, a guerra fratricida, a corrupção no coração do Estado e uma valente dose de racismo de todas as cores. Ou, como em Moçambique, foi possível levar a julgamento sumário muitas das figuras que encheram as prisões do tempo colonial e que no tempo da liberdade foram enviadas para campos de correcção, de onde regressaram para, depois de desaparecido Machel, reintegrarem os órgãos de direcção da Frelimo. Tudo isto, durante um cenário pavoroso de guerra civil, de fome, de abandono dos mais desprotegidos que são sempre as vítimas dos regimes que enchem a boca de povo para melhor o cuspirem para a valeta.
Eu não vou agora indagar se todos os militares ditos “de Abril” tem as mãos (e as cabeças) inteiramente limpas de sangue africano inocente. A guerra, o medo, a angustia, a necessidade de disparar primeiro para não ser morto, tem muito mais força do que aquela que eu, que nunca me vi em tais assados, posso imaginar.
Também não vou chamar à colação o eminente acto de profunda cobardia que foi o de sequestrar o negro Marcelino da Mata e torturá-lo como eventualmente a pide torturaria os resolutos anti-fascistas que o fizeram. Não foi caso único, depois do 25 A, como não foram casos únicos algumas prisões de “capitalistas”, de “terra-tenentes” e outros cúmplices do antigo regime. Os momentos de exaltação revolucionaria convocam em nós o melhor e o pior de que somos capazes.
Também, para voltar ao primeiro caso, não vou absolver o juiz e professor das “tolas” opiniões que agora o perturbam. Mas também não vou dar-lhes especial importância, sequer relevo capaz de o afastar de um Tribual onde já está há anos
Tento apenas, agora que sou mais velho e mais tolerante e menos propenso a uivar com os lobos ou a balir como os cordeiros, perceber. Perceber, perceber.
É que, cada vez tenho menos certezas e mais dúvidas., Cada vez vejo um passado que vivi e de que, até o momento, julgo ser uma testemunha que tenta ser lúcida, falseado por juízos apressados, muito fruto do ar do tempo e pouco da reflexão.
Ó Portugal, se fosses só três sílabas,...
se fosses só o sal, o sol, o sul,...
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós . . .
*na vinheta: mácaras transmontanas cuja origem se perde no tempo e que talvez possam esconjurar a estupidez fominante que grassa no torr\aozinho de açucar. Assim seja!
publicado às 16:41
Os dias da peste 180
a "salto"
mcr, 16 de Fevereiro
No tempo da outra senhora não era preciso muito para se ser da "oposicrática" ou do "reviralho" como também se chamava à oposição ao auto-proclamado Estado Novo.
Como em tudo, porém, havia várias categorias de oposicionistas desde os mais tímidos e cordatos que só o eram em casa, e em voz baixa, até, maxime, à oposição armada.
Quando já tudo desandava, findo que era o estado de graça do Dr. Marcello Caetano, arribei ao Porto para praticar de advogado. O trabalho, como calcularão, não era de matar, mas essa era a menor das minhas preocupações. Tratávamos de tentar acabar com o regime o mais rapidamente possível. Para o efeito juntei-me a um grupo de velhos companheiros que se dedicavam ao que, por brincadeira, chamarei turismo de emigração. A coisa era, contada à distância de 20 anos, simples. Agarrava-se num fugido à tropa que, previamente, tinha pedido auxílio e punhamo-lo do lado de lá, normalmente em Orense ou em Santiago donde outra gente se encarregava de o levar pela Espanha fora, até porto seguro para lá dos Pirineus. Os meus mais habituais comparsas eram o casal Cândida Alves e Manuel Simas, pessoas de bem e de coragem, cujo trabalho era organizar, na zona de Melgaço, a passagem. Eu trazia o freguês a horas mortas, um dos dois passava-o pelos caminhos do contrabando e o outro, comigo, atravessava a fronteira com toda a legalidade agarrava no foragido e metiamo-lo no comboio ou na mão de colegas espanhóis.
E, porque entendiamos que isto era politica, é óbvio que o fugido, uma vez recolhido por mim, não desembolsava sequer um tostão. Ou melhor desembolsaria em Orense o equivalente a três almoços decentes no restaurante S. Miguel onde a sopa de marisco era, e é, de chorar.
Ora, e aqui começa a historieta de hoje, chegou o dia em que o meu caríssimo amigo G. entendeu preferível calejar as mãos em Paris do que ir matar africanos. Vai daí apareceu-me um dia, todo murmúrios, mais sigiloso que um jogador da bolsa. "Se eu, por acaso, por mero acaso, claro, saberia de alguém que o passasse". Dei-lhe o troco que merecia: "que talvez, procurando bem etc. e tal, a gente vê-se daqui a dias". No dia da entrevista G foi informado que, sem dizer a quem quer que fosse, mulher incluída, deveria estar, cerca das 3 da manhã, à porta de casa de mala feita.
Assim se fez, ou quase, que, à hora da partida, a mulher do fugitivo espreitava por uma nesga da janela.
Em Melgaço fez-se o necessário e, logo que abandonei o foragido, passei a fronteira portuguesa e apeei-me na espanhola para as formalidades do costume.
Nesse dia aziago deparou-se-me o carabineiro mais fuínha e carraça de que tenho lembrança.
Vistoriou o carro de alto a baixo e às tantas mandou-me abrir a mala do candidato a desertor. Pasmo dos pasmos estava fechada! De nada valeram os meus protestos de inocência: fui imediatamente preso como "passador" de clandestinos. Durante meia hora só me perguntavam quanto é que eu recebia por cada trabalhador que exportasse. O caso estava neste pé quando me lembrei de propôr às exmas. autoridades espanholas ir deixar a mala na pide fronteiriça. Isto, dito com tanta inocência, terá convencido a guarda pelo que pude, mediante uma história de tal modo cretina, que só a pide de Melgaço a comeria, deixar-lhes as malas de G e voltar numa corrida ao ponto de encontro na Freiria e levar aquele alucinado até Orense.
Durante meia hora insultei-o com a melhor escolha de palavrões aprendidos em Buarcos exigindo-lhe uma explicação para a mala aferrolhada.
Com a inocência que ainda hoje o caracteriza G explicou-me, muito explicadinho, que a chave da mala que quase me levava às galés estava dentro do estojo da máquina de barbear que, por sua vez, estava guardado na pasta de mão que acompanhava a bagagem.
Uma explicação destas abranda o coração de uma piranha esfomeada quanto mais o deste vosso servidor. Julgo que até lhe paguei o almoço.
este texto consta de um livrinho da minha autoria publicado pelo Centro Cultural do Alto Minho nos idos de 1989. Chamava-se a obrinha "A peda no sapato, a pata na poça" e, surpreendentemente vendeu-se quase 75% da edição de 1000 exemplares. com a morte do editor, o louquíssimo Fernando Canedo (homem que detestava distribuidores "uns ladrões" explicou-me e por isso só enviou o livro para um determinado número de livrarias) sobraram umas largas dezenas de exemplares. Sabedor disso, fui ao CCAM e compei quantos pude a preço de meio saldo.
na vinheta: a minha estante dos "atlas". Um achado do IKEA: estantes de 1,50 x 0,50 cms suportadas por dois postes ente o chão e o teto. Só assim se podem guardar volumes como o "Atlas da Província de Moçambique" (90 x 60) ou o extraordiário Visconde de Santarém (75 x 58). São os dois volumes mais em baixo na estante de baixo.
publicado às 13:08
Os dias da peste 179
“a salto” memórias de um “passador”
mcr, 15 de Fevereiro
Ontem, vi a parte final de um documentário sobre o que suponho ser a história da fuga “a salto” de um grupo de oficiais desertores da guerra colonial. Tenho pena de não ter visto a totalidade do filme pois acho que era por aí que poderíamos começar a estabelecer uma filmoteca da história mais recente de Portugal (desde as fugas, a emigração clandestina, os bairros portugueses em Paris, e por aí fora. Isto sem esquecer todos os documentários sobre a guerra, incluindo aí a extensa e ignorada filmografia oficial. Há nesse acervo, muita pepita aproveitável e, em boa verdade, a história faz-se de todos os documentos disponíveis e não apenas de algumas tentativas mais partidarizadas ou ingénuas.
Há dias falei de raspão nas minhas actividades transfronteiriças e, depois de ver o filme acima referido, entendi que valia a pena pegar nelas e encher um folhetim.
Foi o meu grande amigo Manuel Simas Santos (agora Juiz conselheiro jubilado do STJ) quem me meteu nesses trabalhos. À época, inícios de 70, o Manuel começava a sua carreira de magistrado do MP em Melgaço. Começava também, e imparavelmente, a namorar uma moça da terra que era estudante e que viria a tornar-se professora universitária na área do Desporto. Ela, natural da terra ter-lhe-á contado algumas das proezas do pai, pessoa notável com um passado aventuroso.
De facto o senhor João alves que conheci e muito apreciei, emigrara muito jovem para as Astúrias onde trabalhara nas minas. A guerra civil sobreveio e foi incorporado à força na Brigada Máximo Gorki (forças republicanas, está bem de dizer) com o cargo de cozinheiro. João Alves era, além de uma inteligência natural duplicada de esperteza minhota e ancestral, um bom coração e por isso mesmo teve oportunidade de, no meio da carnificina, salvar a vida a uns pobres diabos apanhados como ele como carne para canhão. Só que carne de Direita, franquista. Em boa hora o fez porquanto, derrotada a brigada, feitos prisioneiros os elementos que não morreram, foi mandado para um campo de prisioneiros onde, milagre de S Bentinho da Porta Aberta que é um santo muito milagreiro!, foi reconhecido por um dos ajudados. Lá o mandaram embora para Portugal. Uma vez instalado no torrão natal, andou durante anos numa dupla vida. Por um lado fazia um honroso e lucrativo contrabando (profissão assaz fronteiriça) e por outro ajudava fugitivos republicanos que tentavam escapar da prisão a céu aberto que era a Espanha franquista.
Quando o conheci, ele explicou-me vários truques de sobrevivência guerreira na Espanha enfrentada. Um deles era instalar a cozinha de campanha numa igreja pois, argumentava “os nacionalistas não bombardeavam igrejas!”. Nessa tarefa de dar de comer à tropa republicana tinha de encontrar madeira para o fogão. Também isso não foi problema para o portuguesinho valente: “Ia à procura dos santos “reformados” e arrumados na sacristia e zás! Havia madeira para várias refeições. Nunca queimei santos em actividade (leia-se na Igreja propriamente dita)” Um carácter! E uma catástrofe para o património religioso espanhol! Um homem de bem e um grande contador de histórias.
A Cândida terá aprendido com o pai, ou só por ela, não sei, os caminhos da fronteira. Ensiná-los ao namorado foi uma fervurinha. Este, por sua vez passou-me a informação bem como ao Zé Teixeira Gomes (hoje professor emérito da Faculdade de Medicina do Porto).
Lembro-me que ainda tentámos explorar outros caminhos alternativos da raia e que, uma vez, já dentro de Espanha demos com uma patrulha da Guarda civil “caminera”. Sem hipótese de fuga, eu, o condutor do carro, decidi parar e dirigir-me aos guardas afirmando andar à procura de uns arqueólogos (aliás sabia que a uns bons quilómetros dali havia umas escavações). Os guardas super prestáveis deram-me todas as indicações e até me disseram que o melhor era voltar para trás e tentar a fronteira de S Gregório que seria melhoe e mais fácil caminho. O que fizemos, obviamente, aliviados mas orgulhosos daquela façanha de invasão clandestina de um território estrangeiro.
Instruído pela Cândida, o Manuel, lá me mostrou uma ribeirinha (rio Trancoso) que fazia a fronteira entre a pátria imortal e a vizinha Espanha. Andavam-se cem metros ribanceira acima e havia um café bar . A ideia seria mostrar a ribeira ao candidato à fuga, e ir com o carro passar a fronteira legalmente em S Gregório, apanhar o fugitivo a salvo no café e levá-lo até à estação de caminho de ferro de Ourense para ele poder seguir viajem rumo à Franças e Araganças.
Logo que aprendi estes elementos de passagem, autonomizei-me. De facto, isto de ser passador já é um risco enorme para um, quanto mais para dois ou três. Assim só recorria ao Manuel, magistrado digno e respeitado, se algo de mais complicado o impusesse.
A montante, também tomei as minhas precauções. Para ser passador, mesmo gratuito e por política, é preciso freguesia, isto é candidatos à fuga para ambientes menos guerreiros e africanos. Na altura, preveni, quatro ou cinco pessoas da máxima confiança (entre eles o meu irmão) e era eu mesmo que acolhia os candidatos à fuga e os escondia no Porto e, depois os transportava para a fronteira. Os meus cúmplices no Porto, aliás as minhas cúmplices, eram duas: a minha mulher na altura (Maria João Delgado) e a Teresa Feijó que tinha um apartamento minúsculo onde ainda não vivia e que serviu de esconderijo para vários fugitivos).
Narrarei em folhetim próximo uma das aventuras mais estranhas com um “cliente” amigo desde Coimbra que, nem eu sei como, adivinhou ou suspeitou que eu o poderia ajudar na sua tentativa de turismo clandestino. Como já escrevi isso em livro, bastar-me-á copiar (fica para amanhã se não houver assunto mais palpitante).
O meu irmão também recorreu aos meus serviços. De facto, já ele era médico, foi incorporado, fez parte da instrucção em Mafra mas, como tinha fortes antecedentes (estivera preso e fora mesmo julgado), foi subitamente passado a soldado raso com ordem de marcha para as colónias. Claro que marchou direito ao mano mais velho, dormiu um ou dois dias em casa da Teresa, passou a fronteira mas escorregou e molhou um pé até quase ao joelho. Lá me esperou no café receando a todo o momento que alguém notasse os vestígios da sua notória inabilidade fluvial e depois levei-o a Vigo onde alguém, que nunca conheci, o faria passar a fronteira hispano-francesa. Lofo que chegou a Paris mandou-me uma carta onde descrevi uma miraculosa (e outra) fuga anunciando-me que era um emigrado político. A PIDE tomou nota desta carta que consta num dos meus processos sem haver qualquer menção à hipótese de eu o ter ajudado.
Nenhum, ou quase nenhum, dos meus transportados teve qualquer arrelia neste passeio por terras espanholas.
Digo quase, porquanto, um houve que só causou problemas mesmo se chegou a bom porto.
Esta criatura, negro e angolano, com um passado de vários anos no Tarrafal, residia em Lisboa onde era trabalhador nas obras do metro. Suspeitando que estava próxima outra prisão, pediu ajuda e fui eu quem o foi buscar a Lisboa. Instalei-o na minha casa e começamos a planear a sua saída. Um preto no Alto Minho ou na Galiza naquele tempo era mais raro que os três reis magos juntos, por isso havia que tornar a coisa tão discreta quanto possível.
A primeira declaração dele apoquentou-me queria ir para Bilbau, onde (sic) alguém que trabalhava no “hospital central da Guipúscoa” o ajudaria. Expliquei-lhe que a Guipúscoa tinha como capital S Sebastian portanto algo estava errado. Acabou por entender que era para Bilbau (capital do País Basco) que teria de ir.
Entretanto a Maria João (Deus a abençoe e conserve por muitos e bons sempre gentil e bonita e inteligente) fervilhava de vontade de fazer uma "passagem". Era corajosa, guiava melhor do que eu e, que diabo, uma vez não são vezes!
Alistei-a como co-piloto. E partimos para o que eu já considerava uma rotina. A passagem foi pacífica mas à chegada à estação onde abandonaríamos o cavalheiro negro, a João condoeu-se do ar assustado dele. “E se o levássemos a Bilbau?”, sugeriu ela. O negro até deu saltos de entusiasmo. E eu, burro, burro burríssimo ajaezado à andaluza, cometi o primeiro erro: concordei.
E vá de atravessarmos meia Espanha, em dia de Santiago padroeiro, com um negro negríssimo no banco de trás. Chegámos a Bilbau demasiado tarde para podermos depositar o prófugo no hospital, até porque tínhamos (teria ele mas alegou a sua inabilidade na língua de Cervantes) de contactar o dr. Juan Diaz Guerrero (nome fictício). Mais uma vez, arrisquei dirigir-me a uma parelha de polícias perguntando por um hotel baratinho. Os agentes lá me indicaram uma zona (Siete cales? Siete ciudades?, já não me lembro) onde havia fartura de acomodações. Instalados no hotel lá fui fazer a chamada. Com o angolano a tiracolo lá consegui falar para o hospital. E 2ª surpresa: não havia nenhum médico chamado Juan Diaz Guerrero! Mas, rufem os tambores: havia um Juan Guerrero Diaz que só estarai no hospital no dia seguinte pela fresca manhã.
O ex presidiário tarrafalense achou que se enganara e eu, burro, burríssimo com cinco patas e só com um olho, concordei. Na aflição da prisão iminente, da fufa rápida qualquer um treslê.
No dia seguinte, levámo-lo ao hospital onde o largaríamos. Mas a João, uma espécie laica da Madre de Calcutá, rogou que esperássemos para saber se tudo correra bem. Este vosso imbecil criado, aceitou mais essa falha às mais elementares regras da clandestinidade.
E eis que o negro nos aparece, mais branco que o fantasma da ópera. O dito juan pata que o pôs não era o verdadeiro!
E agora? Que fazer, como diria o camarada Ulianov, esse mesmo que está empalhado na praça vermelha?
Do nosso eventual álibi fazia parte estarmos nesse mesmo dia em S Pedro de Muel onde uma amiga se casaria. Trazê-lo de volta para Portugal, nem pensar. Só havia uma hipótese: mandá-lo para a casa da Luisa Feijó e do Ocávio Ribeiro da Cunha que faziam férias na Galiza junto à praia da Lanzada (cerca de Sanxenxo). Metemos o malfadado num comboio, com um bilhete para os casal emigrado na Suíça e avançamos a mata cavalos para a fronteira de Vilar Formoso e para o casamento.
Dois dias depois, aparece a Luísa, aflita em nossa casa, Recebera o obscuro filho de África e verificara que ele não tinha passaporte. A única hipótese era o Octávio (emigrado político e admirável médico e amigo e velho companheiro de Caxias) ir a um determinado consulado português em Espanha e comprar a um venal funcionário um bom passaporte mais falso que judas. A coisa custaria a pequena fortuna de 15 contos de reis. Lá fui bater à porta do meu sogro, Jorge Delgado, um ex-preso político, engenheiro de sucesso e amigo ímpar, que prontamente adiantou o dinheiro logo que lhe contei a aventura extraordinária.
E o africano de má raça (já explico) lá foi para o seu destino europeu. Uma vez chegado ao raio que o deveria partir, pegou na caneta, escreveu-me uma carta infame, não só porque contava todo o sucedido mas sobretudo porque me acusava de o ter influenciado na escolha do hospital (que, de facto seria o de S Sebastian, como depois viemos a saber). A carta veio em mão, transportada por outra amiga nossa que vivera anos na Checoslováquia e fora casada com outro desertor e militante comunista. Está-se mesmo a ver o que sucederia se a polícia desconfiasse, como deveria, dela e a revistasse. Essa carta imunda e infame seria o meu passaporte a custo zero para mais uma estadia, provavelmente plurianual numa cadeia.
Este miserável regressou anos depois a... Portugal (!!!) e não a Angola entretanto independente. Soube, anos mais tarde, que era uma espécie de sem abrigo em Lisboa e que recusara participar numa reunião de ex-presos do Tarrafal porque, alegava, o queriam matar, razão aliás porque não regressara a Luanda!!! Também aí uma conspiração tremenda esperava por ele para lhe fazer não sei que barbaridades.
Aliás, ninguém, apoiava a teoria de ele ser perseguido em Lisboa na altura em que pedira ajuda. Até o davam como adaptado à vida portuguesa!
Nunca mais passei alguém para além da estação de Ourense. E ainda hoje estou grato ao San Benitinho de Paredes (este na Galiza) que, como a cantiga diz, é muito milagreiro. Contem comigo para o confirmar. Se for preciso irei na procissão a segurar o andor que milagre maior do que este não há.
Amanhã há mais.
Aceitem um abraço deste passador reformado e vingativo que, pela primeira vez, dá à estampa a história do preto filho da puta (cujo nome, por piedade espúria e estúpida, não revelo).
Na vinheta: da esquerda para a direita e de cima para baixo_ Prof. Dr. José Teixeira Gomes; Conselheiro Manuel Simas Santas; Profª Drª Candida Alves Simas Santos e o escriba. Fotogramas do filme "Le Passeur" de Filipa César., ontem mencionado.
publicado às 19:03
Ouvia no fim-de-semana o programa "Bloco Central" na TSF, com Pedro Marques Lopes e Pedro Adão e Silva, e congratulava-me com o facto de não ter sido o único a achar estranha, abstrusa, a insistência de Marcelo Rebelo de Sousa em referir, na sua última alocução ao país, que não suportaria um governo de salvação nacional. Mas, no momento actual, com o Parlamento que temos, com um Governo que tem contado com apoio parlamentar para aprovar os orçamentos e outra legislação relevante, pela cabeça de quem passaria a ideia de promover e viabilizar um governo de salvação nacional e de iniciativa presidencial? Apoiado por quem?!
publicado às 18:10
Os dias da peste 178
Acabar com a mentira piedosa
mcr, 14 de Fevereiro
O “Publico” de hoje traz uma desenvolvida reportagem sobre a relação entre a PIDE e o povo português. Vítima da primeira e pertencendo ao segundo, é com um forte aplauso que leio o que poderia ser (oh quem dera!) o início de abordagem séria à história do Estado Novo na sua vertente policial e política.
É que, de tudo o que se lê ( e é pouco, bastas vezes medíocre e normalmente desculpabilizador para o “bom povo português”) fica-se com a ideia de que uma meia dúzia de vilões perseguiu e silenciou a gigantesca multidão nacional que “sempre repudiou o fascismo” e a repressão.
Ora, tendo conhecido, por dentro e em desproveito próprio, a PIDE, sempre me intrigaram várias coisas.
A primeira era uma espécie de omnipresença policial, mais temida e sentida do que real, que tolhia vontades, assustava muitos e “com os famosos “safanões dados a tempo” (Salazar, sic) castigava os raros ousados que transgrediam.
A segunda foi suscitada por uma frase do inspector Sachetti que, durante muitos anos, comandou a pide coimbrã. Numa dada altura, fui com um pequeno grupo de estúrdios inconscientes à sede da PIDE protestar contra a prisão de um colega.
Fomos urbanamente recebidos pelo inspector que devia estar nos seus dias bons e mostrar que a polícia que localmente dirigia era civilizada. De tudo o que se disse só recordo uma frase: “os senhores pensam que nós temos informadores entre os adeptos da “situação” mas estão enganados. Os nossos informadores são os vossos melhores amigos e camaradas”.
Esta afirmação, para mim, ingénuo e moço, foi bizarra na altura. E repudiei-a sem dificuldade. Todavia, os anos foram passando, a vigilância de que era alvo foi-se tornando mais evidente e as perguntas que nas vezes em que fui preso me faziam, abriram-me horizontes inesperados: havia ali coisas que a malta de “Direita” não podia saber. De facto nem sequer havia grandes contactos para que conversas, gestos, atitudes fossem, por esses nossos adversários. veiculados para a polícia.
As duas últimas prisões (já nas vésperas do 25 A) tiraram-me quaisquer dúvidas: aquilo que a polícia sabia (felizmente pouco) tinha de vir de alguém que frequentava os mesmos mas numerosos círculos em que me movia.
Na primeira, ocorrida na sequência da greve académica de 1969, fui o último estudante a ser preso (e, talvez por isso, o que esteve mais tempo nos calabouços do Tribunal de Coimbra, à guarda da polícia judiciária que o Governo, inteligentemente, enviara em vez da PIDE.)
De facto as prisões começaram logo nos primeiros dias da greve, recaindo fundamentalmente em membros dos piquetes de greve apanhados na rua pela PSP. Os responsáveis mais importantes começaram a ser caçados já a greve ia a todo o vapor, praticamente imparável. Com o João Bilhau e o Orlando Leonardo sem aliás combinarmos fosse o que fosse, desandei de Coimbra e só soube que era procurado já Agosto ia alto. À cautela só regressei a Coimbra em fins de Dezembro e fi-lo tão discretamente quanto possível. Tratava-se de interrogar todos os ex-presos com que tinha desenvolvido “grossa actividade” (sic cfr Processo). Toda a gente, toda, insisto, me garantiu que de mim nada, raspas de nada! Com esse sólido argumento na manga, apresentei-me na PJ arguindo que andara uns meses acampado, sem contacto com familiares e que, só à chegada dera contas das convocatórias da polícia.
Não me vou deter nas condições miseráveis dessa estadia nos calabouços do Tribunal, de longe o pior passadio prisional que tive, incluindo as celas colectivas subterrâneas de Caxias que conheci em 1962 na sequência da greve do dia do Estudante.
Sei que, todos os dias era solicitamente interrogado por um agente que insistia nos mesmos pontos ou trazia outros que me espantavam pela minúcia que representavam. Aquilo durou dois meses e como eu insistisse que nada fizera de grave, excepção feita de uma carta chistosa sobre a mediocridade dos pilha-galinhas da Judiciária (que curiosamente os irritou sobremaneira), chegou o dia em que o agente dois colegas e o chefe de brigada me puseram à frente os 21 volumes do processo. Sadicamente, mostraram-me que não havia um que não relatasse actividades minhas. Também não faltavam os nomes e os depoimentos de todos quantos eu tinha prudentemente interrogado sobre se me teriam mencionado. Para cúmulo, mas isso sem autores visíveis, havia informações que me davam como o membro de ligação da academia coimbrã com malta francesa do Maio de 68 (coisa totalmente absurda que me indignou e repudiei vivamente mas, in peto, me encheu de orgulho. Não é todos os dias que nos põem à conversa com o Cohn Bendit ou com a extrema esquerda maoísta francesa.
O que é mais extraordinário é que muitos dos agentes acreditavam piamente naquilo sem sequer perceberem a incongruência. Que diabo, estávamos em 69, já não havia o Komintern, sequer uma réplica disso...
Já por aqui terei contado o bambúrrio que tive e oportunidade de me livrar de quase todas as acusações. Isso, e o fim do prazo do processo, ditaram a minha libertação sem que eu tivesse “falado” sequer aceitado as acusações.
É claro que, hoje em dia, percebo que muitos daqueles rapazes quase todos abaixo dos vinte anos ou pouco mais velhos, se tivessem “descuidado”. Quem os interrogava era a Judiciária que fazia gala em desprezar a PIDE e que retirava todo o cariz político aos nossos actos de “sedição”. “Isto são rapaziadas, vocês são muitos, os vossos pais são gente importante, isto vai tudo acabar em águas de bacalhau, façam lá a declaraçãozinha para nós coitados (os agentes) que estamos para aqui deslocados, longe das famílias” (a brigada que foi deslocada para Coimbra vinha do Porto e era considerada uma das melhores, Tinha no palmarés a desarticulação da LUAR , aliás fartaram-se de me contar coisas dessa investigação)
E os rapazes, pouco ou nada politizados, aflitos com a cadeia, cederam, quase todos, com alguma facilidade. Claro que nos primeiros anos não perdoei. Aquilo representara uma traição e, pior. ninguém, apesar de eu dizer que compreenderia, me disse que me mencionara.
Com o 25 A, julguei que se faria luz sobre quem era quem nos informantes da PIDE. Nada feito. Uma lei espúria e canalha mantem ocultos os nomes de milhares (dezenas de milhares) de informadores e colaboradores da polícia. Nem sei se não houve o cuidado de estabelecer um prazo de arquivamento secreto desses nomes. Durante algum tempo, pensei que seria de cinquenta anos, sendo essa uma das razões que me fazem querer viver mais uns anos para saber quem foi que me lixou.
Agora, um investigador andou a escarafunchar no espólio da PIDE e, estudando apenas meia dúzia de anos do arquivado já descobriu umas largas centenas de denunciantes, outros tantos colaboradores, além de mais de quatrocentos pedidos de ingresso nessa polícia (mais do dobro das candidaturas a todas as outra forças policiais no mesmo período.
E a pergunta impõe-se: foi ou não, na generalidade, o povo português tolerante com as actividades da polícia? Que o regime do Estado Novo se aguentou dezenas de anos, sem problemas de maior já se sabia. Entre 33 (não incluo o período da “Ditadura Nacional”, mesmo se mesmo nele fosse significativo o apoio ao regime) e meados dos anos 60, tirando o estalido da campanha Delgado (que foi importante em alguns meios urbanos) o dr. Salazar dormiu placidamente na sua cama entregue aos desvelados cuidados da governanta.
A militaragem que o levara ao poder só tardiamente começou a duvidar da vocação imperial portuguesa. E isso porque, a partir de certa altura começaram a morrer oficiais do quadro e a verificar-se que uma guerra em três frentes era uma guerra perdida pelo menos do ponto de vista económico. Portugal tornara-se uma incongruência colonial. E Salazar entretanto morrera...
O regime caiu por dentro como, aliás, a República caíra sem tiros a 28 de Maio de 1926.
O povo, na generalidade, assistiu a tudo isto com uma certa indiferença no primeiro caso e (fora as cidades maiores do litoral) sem arroubos especiais no segundo. De todo o modo, o PREC nunca teve pés para andar e grande parte dos seus ideólogos (fraquinhos, muito fraquinhos) fez um período de nojo curto. Nos anos oitenta já estavam reconvertidos em sólidos democratas ou nem isso.
O que não está ainda fechado é o dossier policia polícia política e colaboração com ela. Ainda estão vivos alguns cidadãos que querem saber como foi. Com sorte e vacina atempada talvez o consigamos.
Esperemos que o investigador Duncan Simpson publique os primeiros resultados do seu estudo. Até lá contentem-se com a reportagem do “Publico”
na vinheta: parte das estantes de "História" do escritório nº1
publicado às 12:39
Os dias da peste 178
Chassez le naturel...
mcr, 13 de Fevereiro
“chassez le naturel, il revient au galop” é uma velha expressão francesa que significa que não vale a pena atirar a realidade porta fora pois ela volta e entra pela janela.
Estamos, maus alunos, a aprender isso todos os dias e o nosso ingénuo (é um modo de expressão) Governo também.
Finalmente, ontem, o dr. Costa confessou que a peripécia do Natal o surpreendera muito. E que, desculpava-se ele, havia pareceres científicos contraditórios sobre os efeitos da balda natalícia.
O dr. Costa desculpará, mas a imensa maioria dos pareceres de médicos era contra uma pausa natalícia. Vários, muitos, governos europeus não deram tréguas ao confinamento nesse período. Cá, entretanto, optou-se pelo facilitismo populista e foi o que se viu. Agora já ninguém se atreve a dizer que as péssimas semanas de Janeiro e Fevereiro não tiveram nada a ver com aquela aberrante abertura.
Agora, o mesmíssimo dr. Costa vem advertir que até à Páscoa não há nada para ninguém; que as escolas, todas elas, incluindo as do pré primário, estarão a banhos, fechadas a sete chaves. As criancinhas e os adolescentes que se arranjem com o ensino à distância.
O pobre ministro da Educação apareceu ontem, muito contente a anunciar que chegarão trinta e tal mil computadores. Esqueceu-se Sª Ex.ª d a promessa de 300 e tal mil ainda em falta e sem data marcada para chegar.
Também se esqueceu, a excelentíssima luminária deste facto simples e trivial: há extensas zonas do país sem cobertura. O jornal televisivo narrava a situação de uma menina com computador cujo pai vagueava de carro à procura de rede!
O mesmíssimo Costa que não percebeu os avisos dos especialistas no Natal vem agora, depois da casa roubada, pôr trancas na porta. Antes tarde do nunca.
A senhora Ministra da Saúde, outra descoberta costista, lá tem aparecido a contorcer-se perante a celerada realidade e a evidência da crise que obriga a a fazer pão de toda a farinha disponível. Já engoliu o sapo dos hospitais privados e(um sapo gordo, grande, um sapo boi, como o da poesia de Manuel Bandeira) e vai preparando o terreno para admitir que as farmácias “comunitárias” (ou seja as farmácias de sempre onde vamos por uma aspirina ou por um dentífrico) poderão ser úteis na vacinação. Começou por se dizer que a coisa sucederia na terceira vaga mas até já se abrem portas para o fim da segunda. Os leitores lembrar-se-ão da minha teima, aqui neste blog, sobre o assunto. Sei que não é fácil agarrar em quase três mil farmácias e pô-las a vacinar. É preciso uma preparação quase cirúrgica para evitar erros, desperdícios ou meros enganos.
Eu, humildemente sugeriria que se começasse depois de amanhã, segunda feira, a tratar da logística disso. Há muito funcionário publico com pouco que fazer para ir dando uma ajuda, Claro qu tudo isso deve ser controlado pela coissão que está (e bm) a resolver e melhorar o que foi atamancadamente apresentado por aquela criatura que se escafedeu à pala de um escândalo no hospital da cruz vermelha. Que ele se tivesse demitido dessa instituição era compreensível. Agora desta? Mas felizmente, demitiu-se e parece que aquilo está agora em boas mãos. Assim seja.
E que essas boas mãos sejam pesadas para essa panóplia de provedores das santas casas que se andam a vacinar alegando o seu extremoso mester. Até apareceu o sr padre Maia a afiançar a bondade da medida preventiva das criaturas provedoras. Eu lembraria que os senhores bispos, que tem a tutela espiritual das santas casas, bem poderiam dar uma indicação sobre o assunto. Não ficaria mal à Santa Madre Igreja pôr um travão nesta corrida às vacinas que, ainda por cima rareiam, escasseiam de forma alarmante.
Andam por aí uns filisteus a tentar culpar a senhor von der Leyen pela má prestação das farmacêuticas que foram céleres em fornecer Israel ou o Dubai ($$$) e alegam dificuldades para entregar as quantidades que, por contrato e pagamento antecipado, foram encomendadas pela União Europeia.
Esta gentinha parece não perceber que a sorte de Portugal foi estar inserido num plano de compra global. Só assim estão a chegar as vacinas. Já terão pensado em como seria irmos sozinhos a um mercado frenético e tumultuoso?
Aliás, e para ser mais bruto, já terão pensado em como seria se não estivéssemos inseridos na União Europeia e andássemos a comparar-nos com a Albânia dos velhos e saudosos tempos “revolucionários” do senhor Enver Hodja?
Não há pachorra!
* na vinheta: eu tenho a mania das máscaras africanas. Aqui estão as que couberam no meu inexistente talento fotográfico e na câmara do telemóvel que, coitado, faz o que pode para disfarçar a imperícia do proprietário
publicado às 12:17
Os dias da peste 177
Mortes variadas
Mcr,12 de Fevereiro
O título não é estimulante mas a verdade é que não há outra maneira de baptizar o folhetim. As notícias do dia escondem-se, cada vez mais, atrás da pandemia. Um dos mais dramáticos efeitos desta é exactamente esconder, obliterar, o que se passa.
E comecemos por Chick Corea, um pianista de enorme talento, autor de alguns discos importantes e estrela absoluta do “jazz de fusão” de que nunca fui um especial adepto. De todo o modo, não deixou de ser um músico marcante na segunda metade do sec. XX e um excelente divulgador de algum do melhor jazz que se fazia na época.
Vi-o uma única vez mas nunca o ouvi “ao vivo”. De facto, numa noite em que fui ao “Blue Note” (as minhas noites nova-iorquinas foram passadas sempre em clubes de jazz ou, a ouvir jazz – e do bom – num que noutro restaurante onde fomos jantar.) vi-o entrar já passava da meia noite. Vinha com amigos ou colegas da sua banda, e sentou-se a um canto a comer. Curiosamente, essa noite ficou-me para sempre marcada. A estrela do espectáculo era uma cantora de que perdi o nome. Cantava razoavelmente mas imitava uma série de outras grandes estrelas desde Billie Holiday a Sarah Vaughan. Não tinha estilo próprio mas o público, ou parte dele, parece ter gostado. Depois, já em fim se sessão apareceram dois músicos da velha guarda que, esses sim, mereciam ser o cartaz. Tocaram para vinte pessoas como se estivessem a tocar para mil. Com força, com entusiasmo, com um saber de experiência feito e muito, muito, amor à música. Queria mencioná-los (coisa que aliás já fiz e por várias vezes neste blog) mas receio sempre enganar-me. Poderia fazer uma revisão às fichas dos discos mas há que poupar os olhos.
Ora bem, Corea cuja entrada fora notada e notória, ouviu o concerto, ouviu uma que outra dedicatória mas manteve-se sempre esquivo e poupado nos aplausos. Essa atitude irritou-me sobremaneira tanto mais que era óbvio que os músicos em palco mesmo em fim de carreira mereciam maior conforto. Consegui que o numeroso grupo que me acompanhava lhes fizesse a merecida ovação mas ainda hoje me arrependo de não ter ido cumprimentá-los.
Também desapareceu ontem um bizarro mas verdadeiro herói africano e português. Refiro-me ao tenente coronel Marcelino da Mata, um guinéu que se ilustrou na guerra colonial. Africano que se sentia português, combateu como comando nas forças portuguesas. As duzentas e tal missões que levou a cabo chefiando um grupo irregular de tropas na Guiné valeu-lhe um farto número de condecorações, incluindo a “Torre e Espada”. Foi o grupo dele que, durante a “operação Mar Verde” libertou mais de quarenta portugueses detidos em Conakri.
Depois do 25 de Abril, um absurdo e clandestino e risível tribunal de guerra do MRPP sequestrou-o alegando que um negro da Guiné só poderia combater pelos restantes negros da mesma colónia. Se isto não é racismo travestido de idiotismo progressista então não sei o que é. Aliás, durante a guerra colonial foram milhares os negros que combateram ao lado dos portugueses, com as consequências que se adivinham. A História tem ironias. Enquanto Portugal acolheu sucessivamente como fugitivos e exilados políticos muitosdos principais dirigentes do PAIGC, a Guiné nunca permitiu que Marcelino da Mata lá voltasse, ao mesmo tempo que abria os braços a todos os ex-militares brancos que lá voltaram sucessivas vezes levando bens alimentares ou material sanitário e escolar. Cá mesmo, houve quem defendesse Marcelino da Mata (o insuspeito coronel Matos Gomes, historiador de mérito e militar de Abril) e quem lhe tivesse uma cisma feroz. As más línguas diziam que isso também er fruto da inveja pelo impressionante número de condecorações (provavelmente o maior de toda a guerra colonial) do combatente negro do exército português. Sobre a história ainda por fazer desses treze anos de guerra, deixei há muito, desde quase sempre, de ter opiniões definitivas. Foi a minha geração que alombou com a maior carga dessa tragédia. Só me salvei porque, tendo ficado “livre” da tropa alguns meses antes dela eclodir, nunca fui apanhado pelas sucessivas reinspecções que entretanto se fizeram. Paguei com a cadeia o tempo de serviço militar e mais pagaria se, acaso, tivesse sido apanhado a ajudar desertores a passar a fronteira. As precauções extraordinárias que alguns qualificaram de excessivas de que rodeei esta minha actividade de “passador” fronteiriço (e aqui quero, outra vez, mencionar Cândida Laurinda Simas Santos, Manuel Simas Santos e José Teixeira Gomes. Aliás só menciono este grupo porquanto há um filme (“Le passeur “, de Filipa César, Elipse Foundation) em que somos entrevistados sobre essas nossas clandestinas actividades. A coisa passou na RTP 2, obteve os prémios que merecia e a realizadora continua, na Alemanha, uma carreira cheia de sucessos. Por razões que se prendem com um escândalo bancário, o filminho nunca teve edição para venda. Assim se perde a glória (política) e a fama (cinéfila). Já é preciso ter azar...
Se conseguir, publicarei uns fotogramas do filme, mas isso fica para amanhã.
A terceira morte (nunca há duas sem três) e, como o um título de Garcia Marquez “uma morte anunciada”.
Parece que a interdição da venda de livros vai ser levantada mas apenas para os que não precisam: os hipermercados. As livrarias, essas, continuarão fechadas. A CG, enquanto me fazia mais um par de meias para dormir, murmurou que não percebe a razão. Segundo ela, os híper tem gente a mais e não hºá nenhum controlo sobre a manutenção da distância social entre os clientes. As livrarias sempre tem um balcão e são lugares pouco (e mal!) frequentados.
Claro que a APEL (que fundamentalmente é controlada pelos editores) deu gritos de alegria mesmo que “lamentasse” a sorte das livrarias independentes. Portanto, está livre a compra das inanidades editorais, da romançada de sucesso mas a sorte dos livros de poesia, ensaio, alguma história ou teatro continua no “vermelho” a caminho do “negro”, para citar o senhor Henry Beyle que mandou gravar na pedra tumular “Henry Beyle milanese” significando assim o seu profundo amor pela Itália.
Tenho a maldita premonição de que daqui a meses o número de livrarias independentes (e de pequenas editoras independentes, também elas) estará fortemente diminuído. Porra, ao menos permitissem a “venda ao postigo”!
Eu, deste Governo esperei sempre pouco. Aquilo parece ser gente que não lê mais do que o Diário das Sessões, a coluna dos cochichos e algum rascunho de discurso preparado pelos anónimos assessores.
Aliás, basta ouvir as discursatas que fazem, os apartes no parlamento ou as conferencias de imprensa. Está-se no domínio do português básico e da escrita segundo o infame acordo que nem o Brasil cumpre! Ai que saudades de Soares ou de Sampaio...
Já que citei Stendhal, convido-vos a ler esse imenso, extraordinário escritor que, diplomata de carreira, escreveu a contratempo e sem se identificar com nenhuma escola do seu tempo. A elegância, a inteligência e a cultura do homem produziram livros que resistem a tudo excepto à ignorância de quem gere a cultura neste país.
na vinheta: "Le nu aux oranges" de Matisse. Um poster desta oba está à venda no "Centre Georges Pompidou" onde estaá a terminar uma grande exposição da produção matissiana. além do catálogo há esta reprodução que, feita pelo CGP, deve ser de grande qualidade.
Juntem Stendhal e Matisse e jamais se arrependerão.Além do que, estas coisas são, at´é chegar a vacina, bons antídotos à tristura pandémica.
publicado às 18:42
Os dias da peste 176
Casa roubada trancas à porta
mcr, 11 de Fevereiro
Que as leitores gentis e os leitores aplicados me perdoem o título do folhetim tão proverbial. Mas há uma razão para isso e é de peso.eu explico:
Comecei ontem /e durará não sei quanto tempo!...) um tratamento contra algo que se chamará “degenerescência macular”. Traduzindo para português vulgar e mais chão, trata-se de uma maleita medonha da visão que, a não ser atalhada, pode levar à cegueira.
O tratamento consiste em injecções intra-oculares, uma em cada olho (está bom de ver.., enfim que esteja, e por muitos e bons anos, bom de ver...) para travar a progressão da doença. Travar, digo mas não melhorar.
Quando à médica me anunciou isto, declarei-me disponível para começar logo, o que só não aconteceu porque eu tinha ido de carro mas à vinda não o poderia conduzir. Ficou para ontem.
Em boa verdade, nem precisei de ganhar coragem. A alternativa que se me oferecia era simples: ou a intervenção ou a cegueira. Ainda por cima, agora já nem se fala em cegos mas em “invisuais” (!!!). Ora eu, mesmo velho ( e não sénior, idoso ou qualquer outro palavrão ditado pela correcção política ora em voga, ) recuso-me a ser rotulado com uma palavra tão azeitada como essa. Que diabo, nesta altura do campeonato, há que manter a dignidade e o bom gosto.
Portanto, conduzido pela CG lá fui à CUF fazer o que tinha de ser feito, sem angustia, ansiedade sequer medo. O que tem de ser tem muita força, logo fogo à peça sem estrições. E que Deus nos proteja das bexigas doidas e dos azares da política!
Devo dizer que aquilo, as injecções, foi uma “fervurinha”! Com umas gotas aplicadas antes, sente-se uma pequena picadela no canto exterior do olho e já está. São piores as luzes intensas durante o processo e os ardores que depois se sentem nos olhos. Todavia, estes também se vão esbatendo com mais gotas. A intervenção ocorreu pelas 15.00/15.15 e pelas 19.30 já praticamente nada sentia.
Eu não quero, muito menos gosto de incomodar quem faz o favor de me ler com estes assuntos de saúde. Porém, há, nesta minha balivérnias de hoje, mais do que queixume ou relatório. Há, queridas leitores caros leitores, um aviso. Um aviso solene. Isto dos olhos de cada um é assunto muito mais série do que parece. Não basta ir mudar de lente à óptica ou fazer uma banal consulta num oftalmologia. A minha maleita já por cá andava há anos escondida a moer as partes tenrinhas do fundo do olho despercebida. É fundamental fazer ao olho um check-up a sério uma vez por ano, vá lá uma vez de cada dois em dois. É coisa que demora, chata, mas fundamental. Tivesse eu, seguido este meu tardio aviso e não estaria agora a escrever isto em Times 18...
Distraí-me, fui preguiçoso, imprevidente, imprudente e ignorante. Agora não vale a pena chorar o leite derramado. Os meus olhos de lince já eram. A ver vamos se continuo a ser um cavalheiro pitosga capaz de ler o jornal e algum que outro livro impresso com letras em tamanho razoável.
Leitores, o covid ronda, mas há a hipótese de o contrariar com as tais vacinas que tardam em chegar. A porra da degenerescência macular veio para ficar e, por junto e atacado, pode ser travada. E até para isso é preciso sorte e...dinheiro: cada intervenção (e elas serão espaçadas de quatro em quatro semanas fica por mais de 350 euros. Bem sei que depois tenho a ADSE mas mesmo assim ainda desembolsarei bastante dinheiro.
Quanto mais cedo, fizerem um exame a sério aos olhos, melhor!
O Jornal de Letras de hoje traz varias páginas sobre George Orwell . Fiquei a saber que há pelo menos seis edições recentes de obras dele desde “1984” até ap “triunfo dos porcos”. Não vi mencionada a grande reportagem sobre a Catalunha mas depois a wook tranquilizou-me. Há e está disponível. Leitores não percam a oportunidade. Está na hora de ler Orwell!
publicado às 17:10