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Liberdade condicional 23
“o diabo é a História...”
mcr 26 de Abril
Ontem o Sr. Presidente da República discursou no Parlamento. Pelos vistos, os ouvintes gostaram. Bateram palmas, toda a gente de pé. Foi bonito. Comovente. Estarrecedor!
Então um discurso bem feito, bem lido que no fundo afirma que há que assumir a História, a boa e a má, os momentos grandiosos e os outros, é, para a larguíssima maioria, assim tão moderno, tão diferente, tão inovador que os deputados, esmagados pelo oratória presidencial tiveram de se levantar das cadeiras e aplaudir freneticamente?
Parece que esta referência à História, depois de anos de grotesca imbecilidade, de crassa ignorância, de má discussão, mal feita mas barulhenta, se chegou à bonançosa praia o bom senso. Finalmente, a História, os factos, a leitura deles tendo em conta o tempo em que ocorreram e não os presunçosos óculos (antolhos) espessos da ideologia mal digerida, da moda sempre em evolução, do destempero segundo as últimas escolhas vindas de fora ou da estupidez doméstica, parece chegar.
Chega tarde, eventualmente, pois os zoilos, os filisteus, os da ideologia pret a porter, estão atentos e saltarão ao caminho mal os ecos do discurso amainem.
Não vou fazer aqui a síntese do discurso, quem quiser que o leia, os jornais trazem largos excertos, as televisões hão de repeti-lo até à exaustão.
Todavia, e na sequência de vários textos meus, aqui mesmo publicados desde há vários anos, entendo dever chamar a atenção para um milhão de compatriotas a que deveria acrescentar meio milhão de africanos negros que combateram sob as ordens da tropa portuguesa. Que salvaram o “coiro” a milhares ou dezenas de milhares dos nossos soldadinhos atirados para as matas sem sequer saberem dizer ao certo em que geografia estavam, porque estavam ali, para que servia o sacrifício das suas vida, saúde e juventude.
( ponto prévio: não fiz a tropa porque, em 61, um alferes médico angolano me salvou de ficar “apurado” alterando os dados do meu índice de Pignet - se é que essa coisa que media altura, peso, largura de peito e não sei que mais se chama assim e se escreve assim-.
De todo o modo, e logo em 1962, declarei-me contra a guerra, conspirei contra ela e contra o regime que a provocava. Anos mais tarde, depois de várias outras acções, pude ajudar alguns desertores a passar a fronteira e salvar-se de combater, de matar ou de morrer. Lamento dizer que me orgulho disso; que voltaria a fazer exctamente o mesmo ou melhor se possível.
Ao mesmo tempo, nunca deixei de pensar nos que partiam para a guerra porque não tinham outra alternativa - e eram a imensa maioria- e lá tinham que tratar de regressar tão bem (ou tão mal) quanto possível.
Estou, sempre estive, solidário com a imensa maioria dos que fizeram a tropa nesses sítios medonhos. Já aqui o disse, já aqui recebi calorosos apoios de muitos desses soldados, espantados e gratos por haver alguém que se lembrava deles.)
É pelo que acima disse que não aturo os rapazolas (e as raparigolas!, psse o neologismo) que, sem conhecer um mínimo de realidade, sem saber que tempos eram esses vem agora armar-se em exegetas de algo que nunca compreenderão e que, felizmente, nunca viverão.
Está por fazer, mesmo se muitos testemunhos se publicaram, se alguns livros se editaram, a História desses anos terríveis. Cinquenta anos depois, morta a maioria da geração combatente, sabe bem ver que alguma tardia justiça se faz a esse milhão de anónimos. Nem sequer refiro os negros africanos que por lá ficaram e que, em muitos casos, malgrado os acordos solenes, foram vítimas de todo o tipo de perseguições, morte incluída. Portugal tem acolhido com notória frequência líderes políticos africanos que lutaram contra este país mas depois caíram em desgraça nos respectivos países cuja liberdade ajudaram a criar. Bom seria que acolhesse e defendesse todos quantos, por ele lutaram e foram abandonados. Uma das grandes tragédias da colonização é justamente essa: uma vez descolonizado um país, ninguém da antiga metrópole europeia se importa com quem a serviu. Foi assim com a França que só muto tarde aceitou pagar as reformas das centenas de milhares de soldados africanos que combateram nas duas guerras, e assim foi com o Reino Unido, mesmo se de forma menos evidente.
Portanto, saúde-se a reparação histórica sem que isso signifique qualquer simpatia pelo defunto Império, pela ideologia a ele subjacente. Trata-se apenas de fazer sair da clandestinidade e da vergonha todos quantos, cabisbaixos, sofrendo do stress post traumático, de outras maleitas psíquicas e de tudo o resto (e aqui vai um rosário de amputações, de cegueira etc...), de fazer sair, repito, para a luzdo dia uma realidade que muitos fingem não ver, não reconhecer.
Em boa verdade, o “Império” nunca existiu, quanto mais não fosse porque até meados do sec. XIX a exploração de África estava por fazer. Angola era uma série de portos de Luanda a Benguela e (talvez) Moçâmedes com um hinterland limitado a um cento de quilómetros e muito mal conhecido. Moçambique era ainda menos conhecido, Lourenço Marques não passava de um presídio miserável devastado pelas febres e pelos ataques dos “cafres”, Sofala um entreposto, Quelimane idem, e a zona da Ilha de Moçambique e seu hinterland não ia muito além do Lumbo e do Mossuril.
As populações brancas eram constituídas por uma maioria de deportados e/ou aventureiros. O pouco que havia de administração vagamente portuguêsa estava entregue a uma pequeníssima classe de brancos e mulatos que ainda não sabiam que seriam substituídos por um corpo de funcionários coloniais que, no caso da Guiné, se recrutariam em Cabo Verde. A imigração portuguesa dirigia-se na quase totalidade para o Brasil. Todo o sul de Angola (Moçâmedes, Sá da Bandeira) só começa a ser ocupado a partir da 2ª metade do sec. XIX com portugueses vindos do Brasil, a partir das iniciativas de Sá da Bandeira que, para socorrer os “brasileiros” lhes forneceu navios e licenças para se estabelecerem a partir de Moçâmedes para o interior. E com madeirenses paupérrimos, os "xicoronhos" que também, mais tarde demandaram a África do Sul. Em Moçambique as coisas ocorreram ainda mais tardiamente mas sempre depois das campanhas de Mousinho e de Neutel de Abreu.
Do centro para norte, as cidades apareceram no fim do sec. XIX (Beira, 1891; Porto Amélia 1899) ou a partir dos anos 20/40 (Vila Cabral, 1931, cidade em 1966, Nampula 1026, cidade em 1056) .Exceptua-se Quelimane, “cidade” ainda no sec. XVIII mas também de pequeno e tardio desenvolvimento. Eis, pois, o Império admirável de fins da Monarquia, da 1ª República e do Estado Novo. Um castelo de cartas de que a história do mapa cor de rosa é um significativo exemplo: um imenso territ´prio percorrido por “pombeiros” portugueses, alguns exploradores mas desprovido de qualquer espécie de administração civil e, menos ainda de ocupação militar.
Deixemos, este tema que, poderia ser conhecido caso os admiradores do império e os seus adversários lessem qualquer coisinha, o que, obviamente, nunca fizeram quiçá por falta de tempo.
E regressemos não exactamente ao discurso mas a uma badalada distribuição de comendas e medalhas pelos “capitães de Abril”. Só a eles? Então não havia muitos oficiais milicianos desde os que tiveram obrigatoriamente de fazer a guerra até aos que “meteram o Xico” e continuaram a servir depois do seu tempo de mobilização? E os soldados, as centenas de milhares de praças, cabos e sargentos, brancos e pretos que de facto ocuparam o terreno e passaram por todas as vicissitudes de uma guerra que se era desagradável para a oficialidade profissional muito pior seria para os galuchos que subitamente se defrontavam com algo que não era a vida deles, a escolha deles, o ganha pão deles e se traduzia em sangue, suor, lágrimas e "adeus até ao meu regresso" (que de quando em quando era dentro de um caixão, para não falar nos que ainda por lá estão para vergonha nossa, colectiva?
Deixo-vos caros/as leitores/as este pequeno problema que enquanto não for resolvido não acabará com o fantasma da guerra, cos os desastres da guerra e com a culpa dela.
Não há vinheta alusiva. A razão é simples. Consoante os quadrantes políticos uns preferem mostrar cabeças de negros espetadas num pau ou mulheres e crianças esventradas bo norte de Angola.
Enquanto não for possível reunir tudo, todas as fotografias as boas, as más e as péssimas não vale a pena fingir, como certos autores televisivos fazem, que estamos a mostrar o que aquilo foi.
Portanto contentem-se com uma péssima fotografia parcial da minha estante de História onde cabem todos os autores, de todas cores e correntes desde que minimamente interessados nos factos.
“Oh Barbara, quel connerie la guerre!”
(Jacques Prévert: Barbara, in “Paroles”)
Há, surpreendentemente, uma edição bilingue deste poemário admirável. Foi uma loucura absoluta do meu querido amigo João Rodrigues, editor da Sextante. A tradução deveu-se a Manuela Torres (chapeau!, senhora tradutora). A edição data de 2007 e ainda deve andar por aí.