Liberdade vigiada, 28
O “bolhão”
mcr, 31 de Maio
Há no Porto um mercado que está em vias de profundo restauro e que se chama Bolhão. Era onde todos os políticos iam para se verem aclamados pelas vendedoras. Nunca percebi porquê tanto mais que estas, generosamente, davam vivas a quantos apareciam a distribuir propaganda e brindes. Das duas uma ou havia pessoal disposto a votar em todos e cada um dos candidatos ou essa malta fingia um entusiasmo eleitoral que, de facto, não tinha e entrava no ritual com aquele saber antigo e popular que aconselha aclamar todos os que mandam ou podem vir a mandar para ver se escorre qualquer coisinha.
Portanto, e como calculam, não é deste velho mercado que tem pouco mais de 100 anos que venho falar mas tão só desta semana que passou e que, segundo uma senhora ministra (desta feita da Presidência) nem iria ser sentida no Porto graças a um par de bolhas que, milagre da santinha da Ladeira!, traria e levaria uns largos milhares de ingleses que assistiriam à bola, nas Antas e zarpariam para a sua terra logo a seguir. A vinda seria também pouco antes do jogo pelo que todas as cautelas sanitárias estariam garantidas.
Claro que palavra de Ministra é moeda de cobre ou latão, gasta e pouco procurada. Todavia, depois da estrondosa vitória nacional, nossa, de ter uma final (que a maioria das cidades antes solicitadas rejeitara por óbvias razões de pandemia) todos os patrioteiros, patriotaços e patriotinhas festejaram: mais uma vez se reconhecia o “torrãozinho de açúcar" como o novo éden europeu e, quiçá, mundial.
Alguns portuenses embandeiraram em arco. Gente astuta, habituada aos malabarismos políticos do costume, cheirou-lhes a negócio farto desde que as bolhas dossem complacentes ou melhor não existissem. Restaurantes, hotéis, bares afiaram a garra, encomendaram pipas e pipas de cervejas e outros álcoois e esperaram a pé firme pela “bifalhada” de Londres e Manchester que se previa muita, barulhenta, sequiosa e mal comportada como, aliás, é costume. E o desembarque começou bem mais cedo do que as autoridades nacionais e locais previam tendo a primeira vaga de assalto britânico conquistado sem oposição a praça da Ribeira e redondezas onde os bares são multidão.
Em princípio, esperava-se que os adeptos viriam não só munidos de bilhete para o jogo mas também de vacinas, máscaras e prontos ao distanciamento social. Erro crasso: aquela gente que chegava em sucessivas vagas não tinha bilhete, nem estava interessada em tê-lo, vinham pela “hospitalidade” portuguesa, pelas bebidas baratas, pelo sol e pela brandura dos costumes indígenas e da polícia local. Não se enganaram, como se verá.
Depois chegou a massa compacta dos adeptos com direito a estádio. Também eles traziam, para além da esperança da vitória, uma sede ancestral e uma frenética vontade de, em havendo hipótese, esmurrar, “ir às fuças” (segundo a gíria local) algum adversário, ou mesmo, caso a sorte quisesse, um polícia. Como se sabe, um polícia honradamente socado, dá direito a cinco pontos, o que vale bem três adversários de cabeça rachada.
Os cavalheiros dos bares e a rapaziada hoteleira rejubilaram. Eles, lá sabiam, de ciência certa que isto de bolhas ministeriais é chão que já deu uvas e que nunca, mas nunca!, se deve levar a sério.
A população portuense evitou os locais de festejos alcoólicos, que eram bastantes e centrais enquanto que a Câmara (segundo o dr. Rui Rio, que aliás, é suspeito nesta questão) assobiava para o lado. A polícia, sem instruções especiais do Ministério da Administração Interna (desaparecido mesmo antes do combate) fazia o que podia pastoreando as hordas britânicas e tentando evitar desacatos maiores. As máscaras essas não se viam, o famoso distanciamento social era, pelos vistos de vinte milímetros entre cada bêbado ou candidato a bêbado (uso o masculino mas posso tranquilizar as madames do #metoo# nacional: também havia mulheres a beberricar o seu copinho, a cantar pelo clube, a altercar com algum(a) vizinho(a).
É bom saber que, do desaparecido MAI tinham chegado ordens claras para que a Polícia de Intervenção se mostrasse discreta, alheia ao eventual tumulto, isto é não interveniente.
Digamos que a bolha prevista era mais uma bola de sabão soprada pela boca sedenta de algum inglês mais tranquilo.
Um surpreendente Secretário de Estado do Desporto veio até afirmar, mesmo depois das zaragatas, das detenções (duas) dos feridos portugueses (dois polícias de giro) que tudo correra como o previsto, que o país (este) não podia parar no grandioso esforço de mostrar ao mundo a sua inépcia organizativa e a sua ganância fortíssima pelas libras esterlinas. Esta jovem luminária tem carinha de inocente ameninado e um discurso condizente. Irá longe, mais longe ainda que o conspícuo e invisível dr. Cabrita.
Toda a gente pode ver (e ouvir) embasbacada que os adeptos com sede e sede (dantes escrevia-se sêde) fixas na Ribeira não tinham bilhetes, estavam à espera de ver o jogo em ecrãs gigantes que alguém (a Câmara, a FPF, a UEFA, o sr Ventura ou algum anónimo compadecido?) bondosamente colocaria (e colocou) em duas zonas separadas para os que só tinham vindo beber uns hectolitros de cerveja, apanhar sol e aproveitar os voos low-cost.
Digamos, para simplificar, que uma zona importante do centro da cidade, dos Aliados até ao rio, adquiriu o estatuto de covid free zone onde era permitido andar sem máscara, de garrafa pela rua e em ajuntamentos sem distância social.
O respeito pelas regras, as famosas regras da DGS, do Governo, do Sr. Presidente da República essas ficaram para exclusiva aplicação pelos indígenas sob pena de forte multa em euros.
As direcções hoteleiras festejaram rijamente esta abébia futebolística concedida aos súbditos de Sª Majestade britânica que seguramente agradecerá as facilidades dadas aos seus avinhados (ou acervejados) cidaãos. Também isso foi visto na televisão.
Igualmente visível foi o caso de um dos bares da Ribeira (mas seguramente terá havido outros) que às quatro da tarde encerrou portas. Não porque temesse conflitos mas apenas porque se esgotara a cerveja. O taberneiro dizia que tinham voado para as goelas da freguesia inglesa mil litros de cerveja que, nos seus mais loucos sonhos poderia sobrar mesmo se abertos até à hora do fecho do estabelecimento.
Também na delicada questão de encerrar os bares houve problemas. A clientela do lado de lá da Mancha recusou-se a sair a menos que se lhe provassem escassez total do ambarino líquido.
Os indígenas portuenses que nada tinham a abichar mostraram-se convenientemente indignados. A eles a PSP não perdoa a falta do açaime, o não cumprimento do distanciamento social, as horas de recolher. E ai de quem se resolva a andar a emborcar umas “bejecas” pela rua! Vê-se bem que a tripeiragem tem uma inveja danada, ancestral dos ingliches, dos “bifes”, dos estranjas em geral. Também é verdade que grande parte destes descontentes não tem hotéis, restaurantes ou bares. E não só os não tem como, cautelosamente, não puseram o pé nas zonas invadidas e colonizadas pela gente do Chelsea e do City qua além de falar estrangeiro gosta de arrear na população local à falta de competidor mais forte.
Em suma: não “foi bonita a festa, pá!” e muito menos ver todos os responsáveis políticos a escafeder-se por tudo quanto era canto, buraco, esgoto, postigo. Ou porque não estavam informados, ou porque não era aquele o momento de comentar essa trivialidade alcoólica e zaragateira, ou porque, sempre o rapazinho do Desporto, o país precisa de mostrar o que vale desportiva e organizativamente, além do que escorreu (nunca uma palavra significou tão bem a situação) muito e bom dinheiro sonante para os depauperados cofres nacionais. Desde que paguem, os ingleses, selvagens ou não, são bem vindos. E se derem uma gorjeta, melhor ainda...
Hoje, segunda feira, no noticiário da tarde, assisti a um exercício de langue de bois, vulgo cassete, por parte da senhora Ministra da Saúde. A criaturinha, que também andava longe dos holofotes, foi impagável. Metralhou para as televisões uma algaravia que, por mim, deveria passar vezes sem conta nas televisões para que o público perceba como é que se debitam dez largos minutos de declarações sem que nada dali se extraia de conclusivo. Extraordinário, ou simplesmente pungente, foi ver como os repórteres televisivos são toureados sem conseguirem sequer aproximar da “diestra” qualquer eventual corninho, passe o termo. Um mimo! A senhora saiu dali com direito às duas orelhas e o rabo dos seus vencidos e lidados ouvintes. E foi para um congresso de médicos onde seguramente, se lhe derem espaço, repetirá a facecia e a façanha desta feita na voz reflexiva.
*a vinheta: O Porto cujo clube derrotou, uma solitária e brilhante vez, o Bayern, não tem estas robustas empregadas que muita falta fizeram nas jornadas anglo-cervejeiras da semana passada. Os meus leitores e leitoras repararão que esta senhora transporta dez canecas das grandes (um litro) bem cheias. Se um litro de água destilada pesa um quilo, quanto pesarão estes dez litros e as respectivas canecas que, juro, tive a oportunidade de usar para o mero efeito de me dessedentar quando durante um período longínquo da minha vida habitei os arredores de Munique para aprender alemão?. Aprendi, claro, se não morria de fome (e de sede) e aprendi também que uma caneca destas – na Baviera sê bávaro! – pesa bem perto de um quilo. Grüß Got!
Alles gut! Viel Spass!