Liberdade vigiada 50
Talassa!, Talassa!
mcr, 24 de Junho
O título do folhetim é demasiado pomposo para o fraco conteúdo do mesmo mas, que querem?, hoje desci até ao mar, melhor dito às esplanadas que bordejam o mar da Foz e tão feliz me senti que só me vinha à cabeça o grito espontâneo dos dez mil mercenários gregos arrebanhados por Ciro para derrotar o irmão e conquistar o trono da Pérsia imensa.
Estes gregos, sobreviventes de mil guerras fora e dento do seu solo difícil e pobre são guerreiros reputados. A melhor infantaria pesada da época, os melhores oficiais e estrategos, uma disciplina forte porque consentida e votada, dão para criar um exército indomável e invencível.
Em boa verdade, a vitória obtida por Ciro acabou numa derrota pois o pretendente vitorioso morre em combate. Assim os seus seguidores persas juntam-se ao agora poder único e os gregos sentem-se cercados, em grande perigo no meio de uma terra estranha e mais de mil quilómetros da pátria comum.
Que fazer?, questionam-se os mercenários. Pois regressar a penates enfrentando povos estranhos e pouco amigáveis sempre discutindo, votando e obedecendo cuidadosamente ao votado. É uma assembleia de cidadãos livres em movimento, um dos momentos mais altos dessa mítica e nunca conseguida pátria dos gregos. E depois de aventuras quase assombrosas o exército em retirada atinge a costa, vê o mar e, isto já é mais duvidoso, brada em uníssono “Talassa, Talassa! O mar, o mar. O mar que os levará para a Grécia e graças a Xenofonte, para a glória imortal.
Não vou, mais uma vez, contar a trama desse livro único (um dos meus vinte cinco ou até, provavelmente, um dos dez preferidos(“Anábase” que corre em português, um belíssimo e escorreito e fácil português sob o nome de “retirada dos 10.000” graças à tradução de Aquilino Ribeiro datada de um dos seus exílios parisienses, o primeiro, suponho). Já li dez vezes, e já ofereci a amigos mais do que escolhidos, eleitos, sempre encadernado a preceito. Está agora mais um exemplar (será o 12º se não erro, nas mãos da D Fernanda Santos, encadernadora de mão cheia. Ainda não tem destinatário certo mas na altura logo se verá) a ser tratado.
Para os mais curiosos a editora é a Bertrand e creio que anda pelas livrarias mais uma reimpressão. Ora aqui está um título que já leva 70 anos de curso seguido sempre no comércio livreiro!
Regressemos ao título, que eu perco-me demasiadas vezes sem respeito pelos eventuais leitores que me aturam.
Hoje, desde Outubro do ano passado, voltei à Foz para a bica habitual, o jornal de todos os dias. Nove longos meses longe do meu local favorito no Porto. Aqui vivi, durante o meu primeiro casamento, num andar encantador em dúplex. A parte de cima, autónoma, era para o casalinho e o andar debaixo era da Alcinda e do Jorge, os melhores sogros do mundo, a quem devo muito e cuja memória honro sempre que vem a talho de foice.
Quer do nosso quarto, quer de uma varanda escondida da nossa sala não se avistava a rua mas só o mar, talvez uma nesga de praia, seguramente parte do molhe (o molhe 8, eu não sabia mas os molhes em Portugal estão numerados e este o da Foz é o oitavo não sei se a contar de norte ou de sul mas não interessa. Este molhe é o oitavo maravilhoso sítio para se atentar na braveza do mar em dias de temporal com as ondas a desfazerem-se nele, a ultrapassá-lo sem rebuço e ameaçadoras).
Eu vivi aqui cerca de quatro anos, aqui fui visitado pelos “do costume” que me entregaram a habitual contra-fé para me apresentar na PIDE para prestar declarações. Vá lá que desta vez deram-me tempo, ou então quiseram que esse tempo fosse de angústia e temor, a verdade é que dessa vez lá me safei sem grande problema mesmo se adivinhava que esse episódio era mais um prego na tábua do meu caixão político. Vá lá que veio primeiro o caixão do apodrecido regime...
Vivi aqui, aqui, sempre que podia, pela manhã tomava um café improvisando um esplanada no muro que caía sobre a praia. Os empregados do café restaurante a dois passos eram gentis e atravessavam a avenida de café e copo de água para o señorito que juntava uma gorjeta de cinco tostões à bica. Ficava-me a festa por dois escudos, o preço de dois jornais.
Depois do 25 A abriram timidamente as primeiras esplanadas, ainda poucas e mal alinhavadas, umas cadeiras umas mesas tudo no baratucho mas com o sol, a praia e o mar, um luxo!
Eu afreguesei-me no “ferreira” e nunca o troquei por outro poiso nestes trinta/quarenta anos (ou mais, sei lá...). Aos sábados e domingos, largava o meu bairro e vinha carregado de papel saber das últimas do vasto mundo. Hoje, traí miseravelmente o Ferreira (se é que se chama ainda assim) pois só havia mesas ao sol e eu gosto de sombra. Portanto andei 5o metros para norte para o bar do molhe e ai li o “Público” enquanto bebia a bica do costume. E dei por mim a fazer contas. Esta bica ficou duzentas e quatro vezes mais cara do que aquela que eu tomava na balaustrada, gorjeta incluída!
Já sei que a comparação não leva em linha de conta um monte de factores mas ilustra bem o fosso que separa 1971/4 deste ano de incertezas pandémicas.
E é duma dessas incertezas que quero falar. Não sei se foi a pandemia ou o oportunismo ou apenas a estupidez casada com o reacionarismo que fizeram Portugal abster-se numa votação sobre o direito das minorias homossexuais na Hungria. Treze países assinaram a condenação mas o torrãozinho de açúcar absteve-se com o inacreditável pretexto de que, estando na Presidência do Conselho, devia ser neutral! Foi uma criatura chamada Ana P.aula Zacarias, vaga secretaria ou subsecretária de Estado que deu a cara.
Eu não sou um admirador das minorais sexuais, simpatizante sequer. Mas tenho por certo que elas, as minorias, tem o direito de existir, de se manifestar, de reclamar contra proibições vesgas. E é disso que se trata: a Hungria incumpre sistematicamente Direitos Humanos e faz o que pode para prejudicar a UE. Por mim já estaria fora da carroça mesmo se isso favorece a Rússia que, aliás, bem a espezinhou como ainda estarão lembrados.
Tudo isto é risível, ordinarote, tristonho e, obviamente, fortemente reaccionário.
Algum dia virá que os amigos do dr. Costa virão bater-me à porta indignados por em certas zonas mais populares de Lisboa lhe chamarem “monhé” ou “o preto”
(já ouvi em táxis as duas expressões, não invento nada). Terei então ocasião para lhes explicar um par de coisas, se é que sequer queira dar-me a esse improfícuo trabalho. E espanto-me pela falta de reacção dos habituais indignados que por dá cá aquela palha ou nem isso irrompem em uivos sobre o colonialismo, o racismo e outros ismos nacionais.
Os protestos, cá, são “a la carte”.
* na vinheta: pérgula na Av do Brasil entre a rua do Molhe e rua da Índia, justamente o local onde se situam as duas esplanadas referidas no texto