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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

liberdade vigiada 122

d'oliveira, 31.08.21

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Liberdade vigiada 122

Balsemão (pagar uma dívida antiga)

mcr. 31 de  Agosto

 

 

Conta-se, mas é quase certo tratar-se de um “lenda urbana” que Vasco Pulido Valente ao ser sondado por Sá Carneiro para um posto governamental à sua escolha terá respondido que queria ser “Balsemão”

Sá Carneiro que tinha um certo sentido de humor, foi na conversa e pediu-lhe que se explicasse. Eis a resposta de VPV: “mulher bonita, tio rico e Porsche à porta”

VPV acertava em cheio. Francisco Pinto Balsemão era (por parte do pai) sobrinho único de tio rico, o  anterior proprietário e director  do  “diário Popular” um jornal  vespertino respeitado que, no antigo regime, concorria com o “Diário de Lisboa mais à “esquerda” (no possível(. E o resto também era verdade.

Todavia, a personalidade Balsemão, na altura já director e proprietário do “Expresso”,  ia bem mais além do que a “boutade” do Vasco.

Fora um dos membros da chamada “ala liberal”, que Marcello Caetano chamara à Assembleia Nacional e aí, com duas escassas dúzias de companheiros,  fizera o “caminho das pedras”. Aquele pequeno grupo de jovens políticos, de pendor democrático e liberal fora, desde o primeiro momento, acossado pela turbamulta conservadora, radical, salazarista que não se conformava com aqueles “rapazes”  pouco respeitosos que tentavam modernizar na medida do possível um regime que já dava fortemente de si.

Em verdade, bem que poderia aparecer uma boa história dessa tentativa corajosa de reformar por dentro  algo que já era, convenhamos, irreformável.

Nem Caetano servia para o efeito: Mesmo aureolado pela sua defesa, enquanto Reitor da Universidade de Lisboa, das Associações de Estudantes, Marcello que honrosamente se demitiu perante a repressão de 1962, tinha a seu (des)crédito várias posições políticas radicais , fora ministro, chefiara a Mocidade Portuguesa, era, digamos, um fiel entre os fieis mesmo se, ao contrário de outros próceres do regime do Estado Novo, tivesse sempre tentado  - e conseguido – manter a aparência de alguém relativamente independente dentro do serralho salazarista.   

(Atenção: quando digo “relativamente independente” apenas quero distinguir Marcello de um Casal-Ribeiro, por exemplo ou de uma multidão de criaturas do Estado Novo, inteiramente devotadas a Salazar, incapazes de qualquer elaboração política, incluindo ideológica, que fugisse ao pântano “situacionista”)

Marcelo, porém, chegou tarde se é que alguma vez pudesse ter chegado a tempo. Em 1968, o antigo anti-liberal, anti-democrático e anti-moderno,   ex nº 2 do regime, ex-presidente da Câmara Corporativa, não tinha força para vencer o “bunker”   reaccionário nem, tão pouco ultrapassar as suspeitas de Américo Tomaz que o chamara a contragosto.

Marcelo era prisioneiro voluntário  do regime do Estado Novo, da continuação da guerra de África. Mais do que modernizar, actualizou um par de instituições desde a polícia política à censura sem tocar no essencial, chamou alguns tecnocratas ao Governo mas sem permitir grandes audácias. Era, antecipadamente, um político fora do tempo e do lugar, vencido, isolado e, pior, convencido de que poderia mudar fosse o que fosse no país. 

Conseguiu porém convencer alguns portugueses e entre eles os  jovens políticos da ala liberal ou António Alçada Baptista, um homem prestigiado, fundador e director de “O Tempo e o Modo”, revista que congregara católicos progressistas, socialistas e jovens esperanças esquerdistas que mais tarde o tomaram e converteram numa espécie de porta voz intelectual do MRPP (a coisa durou uma dúzia de números e desapareceu sem saudade nem glória).

 

Temos pois Balsemão, ainda sem “Expresso”, mas deputado, ao lado de Sá Carneiro, Miller Guerra, Mota Amaral, Pinto Leite, Magalhães Mota ou Pinto Machado. O primeiro líder do grupo, Pinto Leite, morrerá num desastre aéreo (de contornos estranhos pois há quem afirme que o aparelho em que seguia teria sido abatido pelo PAIGC) na Guiné logo em 1969.

Durou pouco, como muitos dos que logo criticaram este passo, a aventura liberal. Em 1971 começam a sair do parlamento e, cada vez mais, a apresentar-se como elementos da ”oposição”.

Para isso muito irá contribuir o “Expresso” que Balsemão  construirá  de cabo a rabo. Leitor, desde o primeiro número (e até hoje, aliás) acompanhei com simpatia, curiosidade este semanário onde vários amigos meus (desde o Zé Quitério até ao Francisco Belard) colaboraram sempre. Julgo-me uma boa testemunha de algo que, na altura do aparecimento, era absolutamente inédito na imprensa portuguesa. Não que faltassem tentativas jornalísticas entusiasmantes e progressistas  desde o “Jornal do Fundão” o “Comércio do funchal”  (cito os mais interessantes e mais inovadores ) mas o “Expresso” conseguia ser mais abrangente, mais bem informado e mais profissional. E, de certo modo, essa é a principal razão da sua longevidade e do lugar central que ainda hoje ocupa na imprensa portuguesa.

Com a Democracia, Balsemão e amigos  irão criar o PPD, que eles queriam ligado à social Democracia Europeia e à Internacional Socialista, desiderato que não conseguiram graças à recusa terminante de Soares e às amizades que este criara em França e na Alemanha. De todo o modo, e até ao advento de Cavaco Silva, foram eles – mesmo após a morte de Sá Carneiro – quem tiveram as rédeas do poder no partido. E foram eles, aliados ao PS e a pequeníssimas forças radicais de extrema esquerda, quem constituiu a aliança que se opôs a Vasco Gonçalves, ao PCP e ao grupo militar que saiu derrotado em 25 de Novembro.

E será Balsemão, na sua breve função de 1ª Ministro, um dos elementos chave para o fim da tutela militar e do Conselho da Revolução. Terá ainda desempenhado um papel central nas negociações para a entrada na Comunidade (agora União ) Europeia.

A partir daí a história é diferente porquanto é com ele que se inicia a televisão privada em Portugal, via SIC.  E o império de comunicação social que se chama Impresa

Um longo percurso político, empresarial, cultural e democrático. Insisto nesta última particularidade: democrático. Por razões várias,  provavelmente por feitio próprio, Balsemão  nunca teve a política como forma única e última de realização pessoal mas, mesmo sem querer, deixa uma pegada profunda na História da Democracia e da Liberdade entre nós.

E é isso que se lhe agradece, agora que o tempo é de homenagens justíssimas.

Este leitor do Expresso,  este usuário ocasional da SI,  tem memória e sabe ser grato. Não o apoiei nem aos seus amigos em 1969  dado que a minha barricada era mais radical, mais intransigente e mais natural pois estava metido de corpo e alma na luta universitária, mas confesso que vi com a simpatia que se adivinha o reforço que a ala liberal trazia a um oposição onde eu militava desde 1958 ou, melhor e mais verdadeiramente, desde 1960.

Parabéns, Francisco Balsemão!

 

Autárquicas no Tâmega e Sousa - Debates

José Carlos Pereira, 30.08.21

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Tem hoje início o ciclo de debates entre os candidatos a autarquias do Tâmega e Sousa promovido pelo jornal A Verdade. Amarante será o primeiro concelho em análise. A convite do jornal, farei a moderação do debate que reunirá os candidatos à presidência da Câmara Municipal.

Na próxima quinta-feira decorrerá o debate com os candidatos de Baião.

Os debates serão emitidos às 21h00 nas páginas de Facebook, LinkedIn e You Tube do jornal.

liberdade vigiada 121

d'oliveira, 30.08.21

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Liberdade vigiada, 121

“Tudo vai pelo melhor...”

mcr, 30 de Agosto

 

Permita-se-me dar, como título, a primeira parte de uma citação do dr. Pangloss, mestre de Cândido, segundo Voltaire.  

A frase inteira, verdadeiro manifesto do citado mestre filósofo, eminente introdutor da metafiso-teologo-cosmolonogologia, continuava assim  “no melhor dos mundos”.

Eu, leitor antigo e devoto de Voltaire, tendo-me justamente iniciado ainda rapazola com o “Cândido”, apesar de ser optimista esforçado, sempre tive a ideia que neste mundo nem tudo são rosas e que uma pitada de pessimismo permite evitar desilusões e, eventualmente, ter uma visão mais certeira da realidade.

Vem tudo isto a propósito do congresso do PS realizado, caso não saibam ou não tenham dado por isso, este fim de semana.

Congresso partidários em Agosto dão sempre azo a desatenção. Está-se em plena “silly season”, as pessoas estão mais interessadas na temperatura da água do mar, nos romances estivais narrados pela imprensa cor de rosa, ou noutro tema candente. Os meandros de um congresso, as subtis manobras de bastidores, a análise das votações, do sobe e desce de certas figuras no xadrez partidário são matéria obscura, ingrata, movediça que requer demasiado esforço sobretudo nos tempos de calor.

Quando  o congresso é de um partido no poder, a tarefa é ainda mais difícil porquanto das duas uma: ou há a previsão de grandes modificações ou não. No caso vertente, nada, rigorosamente nada de previa a esse nível. Nem era de prever, a um mês das eleições autárquicas. Os partidos terão muitos defeitos mas não se dão ao luxo de manobras suicidárias na iminência de prélios eleitorais.

Quando isso acontece, trata-se de agremiações amadoras, pequenas, descartáveis que não pesam no panorama político. Tais formações podem dar-se ao luxo da polémica, sobretudo da polémica bizantina que, de todo o modo, apenas interessa aos seus reduzidos militantes que não tem preocupações de gestão política seja do que for, sindicatos, juntas de freguesia, câmaras municipais, lugares no parlamento. Como não tem isso, também não tem a gesto de empresas públicas, agências estatais e assimilados.

Portanto, não se esperavam deste magno ajuntamento novidades de maior, sequer novidades, aliás. O que aconteceu, malgrado a tentativa de televisões e jornais de enfatizar diferenças, rivalidades, novidades.

A menos que se considere novidade a filiação da dr.ª Temido, que assim se protege de algumas brotoejas políticas dada a sua condução dos assuntos de saúde, a sua visão ultra-centralista do SNS, o seu estado de negação perante a evidência da existência crescente de privados no sistema de saúde. A senhora Temido poderá ter alguma vez afirmado que estava farta, que queria voltar a ser “a Marta” (lembremos José Mário Branco e a sua Marta que só irá com “o maganão... dentro de um caixão”) mas a verdade é que com esta entrada radiosa na família socialista deixa a ideia que está pronta  para “mais uma voltinha, mais uma viagem” até porque “menina não paga” se é que me lembro desta lenga-lenga.

Havia um tabu, diz-se. Que era o da sucessão de Costa. E apontavam-se presuntivos herdeiros desde o famoso inimigo dos banqueiros alemães (cujas perninhas até tremeriam...!!!), Pedro Nuno a duas senhoras (Mariana Vieira da Silva, Ana Catarina Mendes) que, pelos vistos o tempo é das mulheres mesmo se elas apenas representam um terço dos militantes (ou um pouco menos, nem sei).

Em suma os comentadores, os jornalistas, alguns círculos de ociosos tentaram encontrar um pouco mais de azul , um pouco mais de sol no monótono acontecimento. Em vão.

A época é de cerrar fileiras e lá temos um quarteirão de amigos do sr. Adrião (uma espécie de opositor de Sua Majestade que o país ignora e os militantes idem, aspas, aspas) votados na lista única do generoso líder que assim se vê coroado por noventa e muitos por cento, número norte coreano  agora muito em voga por cá.

Que o sr. Adrião não é um Tino de Rans já se sabia. Faltam-lhe espontaneidade, berço, convicções. De resto, só existe nestes momentos congressionais...

Mas pior, bem pior do que esta morna reunião,  este mormaço político.

António Barreto, no último sábado (Público, p.3) apontava ao PS uma série de faltas, desde programáticas até ideológicas, um fatalismo pouco criativo  que não tem substância cultural, orgulho ou compaixão). Em boa verdade, e dado o estado vegetativo da oposição, nem precisa. Basta-lhe o poder para mobilizar as energias de uns centos de militantes mais em vista, a falta notória de credibilidade política  da Direita, e a complacência (por fraqueza manifesta) da Esquerda a que se encosta. Chega a ser penoso, ouvir o sr. Jerónimo de sousa, regatear na praça pública apoios que finalmente concederá depois de umas migalhas  que ele transformará obviamente em vitórias do “povo”. O secretário geral do PC sabe que o seu partido está desde há muito em perda. Em perda lenta mas segura. E nisso apenas difere de antigos e quase inexistentes congéneres europeus por a queda desses ter sido muito mais abrupta. A massa militante do PC envelhece como o país (mais de 50% dos militantes está acima dos 65 anos!)

Aliás o mesmo fenómeno se passa com o PS. Entre os 26 e os 40 anos são 13300. Em contrapartida, acima  dos 65, passam ligeiramente dos 22.000. E 50& anda entre os 41 e os 64 anos. Desconheço os números dos outros partidos mas basta-me este para me apoquentar um pouco. Aliás, o número total de militantes não chega aos 75.000 o que diz muito da penetração do partido entre os portugueses. E note-se que estes números (Público,28 de Agosto, p.8) são números de um partido que está no poder desde 2015...E que por isso pode distribuir benesses a quem tenha o cartão e, eventualmente, as quotas em dia.

Tudo visto e respigado, fica-se com a sensação que no PS há um certo estado de espírito “lorquiano” no pior sentido da palavra. Refiro-me claro, a um frase de “Bernarda Alba”, uma peça que pode não ter a a poesia e a  força de “Assim que passem cinco anos”.

Quando tudo se desmorona à sua volta a velha matriarca Bernarda grita num paroxismo de raiva “en esta casa no pasa nada!” exactamente o contrário do drama terrível que atinge aquela família.

Enfim foi um fim de semana de Agosto, sem festas nem romarias, sem festivais de Verão (mas com uma vitória, outra!, da task force :  já teremos atingido 85% de população vacinada. Um prodígio de logística e de trabalho insano e de dedicação extraordinária de centenas ou milhares de enfermeiros e outras profissionais anónimos de saúde.

(não quero ser cruel mas fiquei com a ideia que a transferência de Ronaldo teve mais ouvintes e mais interessados do que o vago monólogo socialista.

Sinal dos tempos!

E do país...)

 

 

 

liberdade vigiada 120

d'oliveira, 29.08.21

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Liberdade vigiada 120

Há cinquenta anos éramos assim

mcr, 29 de Agosto

 

O tempo passa quase sem percebermos. Agora os jornais e a televisão garantem-me que Vilar de Mouros foi há cinquenta anos, data redonda que merece sempre referência.

A esta distância os festivais de Vilar de Mouros misturam-se-me na memória. Ou melhor, tenho vários flashes de momentos especiais, de Verões especiais, de amigos, encontros, desencontros. Do mar de Moledo, de vivermos quase acampados na casa do Manel Simas, melhor dizendo nas casas pois primeiro havia uma de pedra, antiga e com um jardim, melhor dizendo um terreno com umas trepadeiras e três árvores, numa das quais pendurávamos um balde furado por baixo para servir de chuveiro.

Éramos novos, tínhamos pouco, tínhamo-nos uns aos outros, fazíamos ceatas de um chouriço espanhol que a Laurinda jurava que era o melhor do mundo e rematávamos com uns chocolates também passados aos direitos que era, ela outra vez, que era o único que não sabia a mofo. E dávamos-lhe forte e feio na cerveja, umas bazukas de litro e meio que se finavam num ápice, o Carlos Cal Brandão dizia que a bebida se evaporava, o Manel sousa Pereira que Deus tem à sua direita, contentava-se com leite pois jurava que padecia de uma úlcera que ele tratava com violentas cachimbadas e namoros em cascata. Se havia alguém que merecia um harém era ele sempre perdido de amores, sempre correspondido (o grande sacana!) incapaz de se meter nuns calções de banho para ir à praia. A filha, em viagem pela estranja, mandou-lhe uma vez um postal: Pai Maravilhoso   Moledo do Minho

Texto: viagem maravilhosa, beijos maravilhosos, filha maravilhosa.

O postal chegou à casa do Manel direitinho. O carteiro justificou-se: os senhores usam todos barba, vi logo que era um de vossemecês!...

E o Festival, claro.

Numa tarde, eu e o Manel resolvemos subir o Coura de canoa até às Azenhas, uma piscina natural mesmo em Vilar de Mouros, melhor dizendo mesmo junto ao recinto das festividades.

Acabados de chegar, um mariola que se armava ao pingarelho, junto dumas garinas que se banhavam em topless ou mesmo nuas, já não me lembro, atirou-nos: “Ó meus, vindes aos cracodilos?” num tom definitivamente tripeiro e da Ribeira (o Manel só para me contradizer jurava que ele usava a variante do Amial).

As atrevidas riram deliciadas. Nós extraímo-nos das canoas e o graciso ao ver a figura gigantesca (e gorda a atirar para o robusto) do Manecas engoliu em seco. Razõ tinha pois o meu amigo era enorme e pesado.

Entretanto, enquanto nos aprestávamos a descansar e ver as vistas, um sólido camponês de meia idade, chegou à margem com a mulher a tiracolo. Esta trazia um cesto lancheiro enorme e uma cadeira enquanto o marido trazia uma mesa desmontável. A mesa foi posta e do csto surgiram acepipes de toda a ordem, uma garrafa de vinho, pão, um copo, uma navalha respeitável. Uma vez armada a mesa, a mulher foi despedida e regressou sei lá para onde. E o aldeão mirou as raparigas.

Ao ver-nos tão perto, perguntou se éramos servidos enquanto com a navalha cortava fatias fininhas de um presunto, maravilhoso, desses que vem de um porco criado em casa, como se fosse família e abatido na devida época e submetido nas partes convenientes a um fumeiro largo e benfazejo.

Claro que éramos servidos. O aldeão generoso extraiu um segundo copo do cesto, desculpou-se por sé ter um mas respondemos que beberíamos à vez. E vá de trincar uma lasca de presunto, outa rodela de chouriço, uma taleiguinha de  salpicão, aquilo não era um lanche, era um deboche de sabores, dava para um regimento, ou quase.

E o vinho? Ai o vinho era um alvarinho, leitores e leitoras, que o alvarinho de Monção e Melgaço ainda atira mais para baixo algumas vezes. E não confundam o “nosso” alvarinho  com o albariño galego  que também se bebe com entusiasmo e respeito mas que é diferente. E pede sobretudo marisco. Muito marisco das Rias Baixas, e do Grove, capital do marisco. Ai que saudades. O raio da pandemia está-me a atrasar as expedições anuais a Sanxenxo e ao Grove para me fartar de marisco.

Voltando à vaca fria: lá lanchamos, lá lavamos o olho atrevido nos peitinhos juvenis e atrevidos que naqueles anos prodigiosos, naquela década prodigiosa, a nudez recentemente inaugurada era como Deus mandava e os tempos exigiam.

E havia a música, claro. Era um festival caseiro, feito de boas vontades, o primeiro de todos e com músicos que vinham tocar para gente que gostava de música,

Em Vilar de Mouros, onde, suspeito, nunca nenhum sarraceno pôs o pé, terra encantada, com uma lagoa sem crocodilos mas com melgas, em dias quentes num verão que não volta, que não volta.

 

Vai esta em memória de dois escultores, dois amigos, duas saudades: Jaime Azinheira e Manuel Sousa Pereira.

E um abraço ao novel pai Carlinhos Cal Brandão que também ele apanhou verões nestas terras à beira Minho.  Agora é a vez deles

liberdade vigiada 119

d'oliveira, 28.08.21

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Liberdade vigiada 119

“este parte, aquele parte...”

mcr, 28 de Agosto

 

 

Sirvo-me do poema de Rosalia, musicado pelo Zé Niza, e cantado pela primeira vez por Maria João Delgado, na altura minha mulher, excelente actriz, boa voz, animosa, corajosa, lindíssima e inteligente. Estávamos a tentar montar um espectáculo teatral sobre “Castelao e a sua época” com encenação de Ricardo Salvat em 1969.

Claro que a Censura, a polícia, a crise de 69 e a fama cada vez mais “sinistra” do CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra), tudo se conjugou para que a peça nunca chegasse ao palco, mesmo se partes dela tivessem sido mostradas durante as noites de brasa das guerras estudantis.

Depois, o Adriano (também do CITAC) pegou na cantiga e tornou-a conhecida por toda a parte.  A dupla Adriano/Niza (também do CITAC, claro) deixou um rasto luminoso na música portuguesa. Um rasto de heroísmo, dedicação, qualidade que ainda se mantém.

 

Se eu peguei neste primeiro verso é, infelizmente, po outra causa. Morreu o Rui Oliveira, um amigo mais velho, desde meados de 64 mesmo se nós só nos tivéssemos dado com mais intimidade, depois do 25 A.

O Rui Oliveira era engenheiro civil e arribou ao Porto, depois de algumas desventuras políticas no tempo de estudante. Como era de Esquerda e, também ou sobretudo, um excelente profissional entrou na empresa “soares, Magalhçaes e Delgado” onde pelo menos o primeiro e o terceiro sócio tinham já um percurso de resistência conhecido e reconhecido. Jorge Delgado passara mesmo pelo Tribunal plenário, apanhara os costumeiros dois anos de prisão mais medidas de segurança. Como já era conhecido como engenheiro cumpriu a pena numa espécie de campo prisional em Trás os Montes onde estava a ser construída uma cadeia civil. Delgado penou portanto a sua condenação em Izeda, uma aldeia de Mogadouro. Tinha a seu cargo, pelos vistos, a tarefa de garantir tecnicamente a obra. A mulher aa filha passaram ali, também, o tempo de prisão do Jorge que mais tarde, como calcularão pelo nome se tornaria meu sogro.

O Rui Oliveira terá entrada na empresa mais tarde mas rapidamente conquistou um nome como engenheiro e outro, mais perigoso, como militante oposiocionista.

Todavia, e curiosamente, não o conheci nessas vestes mas apenas como amador de Jazz.

De facto, na Associação Académica criou-se nos anos 60 uma secção de jazz e nela um quinteto  onde pontificavam o Niza, sempre ele!, Daniel Proença de Carvalho, José Cid, Rui Ressurreição e Joaquim Caixeiro.

Este grupo, a quem devo os meus primeiros momentos de jazz ao vivo, realizava umas Jam-sessions ma AAC e a elas comparecia um jovem casal (de todo o modo bem mais velho do que nós) que descobrimos vir do Porto.

Era o Rui Oliveira e a primeira mulher, uma artista plástica talentosa e de que perdi o nome.

Já advogado no Porto, voltei a encontrar o Rui desta vez animador de uma cooperativa cultural da oposicrática e aí reatei relações, desta feita, mais fortes sobretudo porque ele sabia de um par de prisões minhas ,a última das quais recentíssima.

Com o 25 A, acabámos por nos juntar no MES, uma aventura esotérica, absolutamente condenada ao fracasso, dada não só a concorrência desenfreada na margem esquerda da política do momento mas também , e muito, pela confusão programática e estratégica em que, cedo o2movimento” caiu. Ao fim de cerca de uma no lá saímos, mais velhos, mais desiludidos, mais cansados e talvez mais experientes.

Depois, lá fomos intervindo, individualmente em diversas iniciativas, seguindo de perto a tentativa de Jorge Sampaio e amigos mas, no caso do Rui, pelo menos, sem cair no PS.

E ao longo de todos estes anos lá nos encontrávamos , algumas vezes profissionalmente. De facto a “soares Magalhães e Delgado” foi a empresa que a Delegação Regional de Cultura do Porto  encontrou para uma série de obras  na sede e sobretudo no restauro da “casa Queimada” dos Távoras onde se instalou primeiramente o efémero Museu Nacional de Literatura e depois a delegação do IPPAR. E era o Rui o nosso interlocutor, ou melhor o meu interlocutor a partir do momento em que integrei a pequena equipa da DRN.

Ainda trocámos um par de discos de jazz e obviamente nos encontramos sempre que ao ANCA (Auditório Nacional Carlos Alberto) vinha uma formação de jazz. E vieram algumas  graças a uma colaboraçãoo excelente com o consulado americano enquanto este durou no Porto.

Agora, pensando bem, já não nos víamos há quatro ou cinco anos.

Ontem, o Zé Dias, uma espécie de notário implacável do antigo MES (e meu colega e companheiro de aventuras em Coimbra (chegámos mesmo -em 1970-) a pertencer aos mesmos corpos directivos da AAC) mandou-me a notícia da morte do Rui. Não o poderei acompanhar à sepultura pois estou longe mas nem por isso quero deixar aqui esta nota.

Esta geração, ou estas, a dele e a minha, estão a desaparecer com naturalidade e rapidez. É a lei da vida. Ou da morte, tanto faz.

Dele, com toda a justiça, pode dizer-se que foi um resistente e um cidadão exemplar. É mais do que muitos, a maioria, a imensa maioria que ainda permanece. Didn't he ramble?
Didn't he roam?
Didn't he wander
So far from home?
Didn't he teach us?
Didn't we learn?
Didn't he reach out
Beyond all return?
Didn't he ramble?
And didn't he stray?
Didn't he wander
So far away
?

Até sempre, Rui, caro amigo e camarada. 

*na vinheta: um funeral em New Orleans

o excerto em inglês é de uma tradicional canção também usada em enterros na mesma cidade.

liberdade vigiada 118

d'oliveira, 27.08.21

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Liberdade vigiada 118

Júlio Dinis, o subvalorizado

mcr, 27 de Agosto

 

Abre hoje a feira do livro do Porto, no verde cenário dos jardins do Palácio de Cristal o que permite ao leitor dar um pequeno passeio entre árvores quase (ou mesmo) centenárias beber qualquer coisa à sombra e reencontrar livreiros conhecidos, incluindo vários alfarrabistas de Lisboa que, pelos vistos, entendem ser esta feira uma boa oportunidade.

A feira do Porto andou por diversos sítios desde a rotunda da Boa vista (também com árvores) até à Avenida dos Aliados sítio abrasado pelo calor.

Deve-se à actual gestão camarária de Rui Moreira esta mudança de poiso que ainda tem a seu favor um extenso parque de estacionamento mesmo por baixo do pavilhão Rosa Mota.

Outra característica simpática é cada edição ser ded icada a um escritor vivo ou morto, organizando-se diversas conferências e colóquis sobre a obra e o tempo do homenageado.

Desta feita, é Júlio dinis, um autor que morreu demasiado cedo para se poder aquilatar do que poderia ter sido a sua marca no universo das letras portuguesas.

De todo o modo, JD deixou meia dúzia de romances escorreitos, inteligentes, que, como hoje argumentava alguém no jornal, são lidos demasiado cedo por jovens demasiado novos que não apreenderão toda a qualidade da intervenção do médico-escritor.

Júlio Dinis é uma testemunha sagaz da sua época e nos seus livros perpassa muito claramente a grande mudança social que Portugal vive, a ascensão de novas classes no meio rural com o declínio dos velhos e descuidados grandes proprietários (algo bem evidente em “Os fidalgos da Casa Mourisca”) e o fortalecimento mesmo que incipiente da burguesia citadina.

Numa mesa habitual dos meus tempos de Coimbra, ouvi algumas vezes Joaquim Namorado e Orlando de Carvalho perorarem sobre o que poderia ter sido um Júlio Dinis sobrevivente. Namorado apostava numa espécie de Balzac, feroz retratista das novas classes em ascensão o que, aliás, suscitou a admiração de Marx e de Engels que o consideram como uma das vozes mais interessantes do ramance mesmo se, como se sabe, Balzac fosse, do ponto de vista político, um reaccionário de primeira ordem. Todavia, para já não falar do seu estilo, das suas qualidades de efabulador, ele conhecia a sociedade em que se movimentavam as suas personagens e não escamoteou nada do que via mesmo o que detestava. Vai bem mais longe do que muitos escritores coevos que hoje chamaríamos progressistas mas que eram incapazes de ver o mundo como ele era mas apenas como gostariam que fosse.

Infelizmente, Júlio Dinis, por sobre ter vivido pouco (31 anos como Cesário Verde e menos um do que António Nobre), foi quase que relegado para escritor para a juventude e os realistas viram nele sobretudo o romantismo sem curarem de perceber a força que o movimento tinha naquele tempo e a argúcia com JD pintava algumas personagens que nunca se apagam da memória dos leitores.  

Uma das críticas mais comuns a JD reside no que muitos chama o seu “optimismo esforçado”, esquecendo que ele escreve na época em que o país gozou de grande estabilidade política e se notava uma intensa tentativa de modernização de Portugal. algo que Eça, quase sempre longe, não valorizou tanto mais que, nas suas visitas à pátria, quase não saiu de Lisboa e sobretudo não percorreu a “província”.

  

liberdade vigiada 117

d'oliveira, 26.08.21

 

 

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Liberdade vigiada 117

Viva o pensamento de Xi Jinping

mcr, 26 de Agosto

 

A novidade é fresquíssima, desta manhã, via “Público” de hoje, p.23

O Governo da China, via Ministério da Educação, vai introduzir (ou já introduziu) o pensamento do sr Xi Jinping (presidente que arrisca eternizar-se no poder graças a uma norma constitucional recentemente aprovada pelas mais altas instâncias.) como disciplina obrigatória no currículo escolar desde a instrucção básica até ao ensino superior.

Trata-se, ao que parece, de reafirmar e robustecer a “crença marxista”  pelo estudo atento “do socialismo de características  chinesas para uma nova era”.  Segundo a notícia a medida tem como objectivo “cultivar os constructores e os sucessores do socialismo “com uma completa base moral, intelectual, física e estética”, pretendendo-se fortalecer “a determinação de ouvir e seguir o Partido comunista Chinês” ao mesmo tempo que os novos manuais escolares devem ter por objectivo “cultivar sentimentos patrióticos”

Estas disposições não são novidade nem na China nem no mundo. O século passado viu florescer propósitos idênticos na Alemanha nazi, na Itália de Mussolini e na União Soviética onde o “homem novo” também aparecia resplandecente num horizonte pejado de tratores, camponesas robustas, operários viris e electicidade, muita electricidade (Lenin, aliás, afirmava que “o comunismo era o poder dos sovietes mais a electificação do país”. A electrificação lá se foi fazendo em proporção absolutamente inversa ao poder dos sovietes que rapidamente passaram a elementos decorativos).

Sobre esta construção frankensteiniana da nova e aberrante criatura há uma abundante literatura ensaística e ficcional de origem russa mas também ocidental.

À época, o pensamento que urgia sublimar era o do camarada Yossif Vissarionovitch Djugaschivilli que, no século, se chamou Stalin. A coisa durou até meados dos anos cinquenta e começou a esboroar-se no famoso XX Congresso, depois de um discurso (mantido secreto enquanto foi possível) de Nikita krutschev. As consequência da sua publicitação foram tremendas na “crença” que englobava o “Pai dos povos" os avanços do plano quinquenal, o povoamento da Sibéria graças aos milhões de felizardos que escaparam à pena de morte nos milhentos processos e expurgos e a promessa sempre adiada dos amanhãs que cantariam.

Desaparecido o georgiano, abaladas as estátuas dos dirigentes comunistas nacionais que também gozavam de um quinhão de religioso respeito e admiração, urgia um novo farol para o ”horizonte” que era, ou deveria ser , “vermelho”.

E Nao Tse Tung (ou Zedong) apareceu, refulgente, para gáudio e esperança dos milhões de fieis desamparados e órfãos. A Grande Revolução Cultural e Proletária somou a anteriores e exóticas aventuras de engenharia social chinesa e revolucionária (grande Salto em Frente; Cem flores/cem escolas, etc. ...) mais outros muitos milhões de mortos.

Na Ásia, a sua estrela foi copiada por Kim Il Sung, iniciador de uma dinastia comunista que já vai no neto e cuja duração é exactamente paralela ao empobrecimento da Coreia do Norte, e da população que é mantida em completo isolamento do mundo exterior.

No Cambodja houve uma tentativa vagamente colectiva de direcção absoluta do país levada a cabo pelos Kmer vermelhos que se traduziu num verdadeiro genocídio e que foi derrubada ao fim de um par de anos por uma invasão vietnamita, onde um partido comunista governava.

Na Europa, os anos sessenta produziram duas sinistras criaturas em dois países periféricos do socialismo, a Albânia e a Roménia, respectivamente Enver hodja e Nicolae Ceausescu, o Conducator, a Estrela do Danúbio e mais vinte imbecilidades ditirâmbicas  que não lhe evitaram a morte por fuzilamento em 1989.

Depois da morte de Mao, e na sequência de várias e divergentes direcções do PCC que geriram com violência a herança da época maoísta, apareceu finalmente e, pelos vistos triunfantemente, o actual Presidente Xi Jinping, cuja permanência em vários cargos fundamentais do Estado se viu reforçada depois de ter sido abolida a limitação (teórica) de mandatos presidenciais.

Agora, a acrescentar aos seus múltiplos e poderosos cargos temos esta consagração do seu “pensamento”.

Convenhamos: no universo comunista, houve sempre a tentação de admirar toda e qualquer baboseira desde que fosse convenientemente revestida pela “langue de bois” em uso desde Lenin. Mas é a partir deste líder de primeira grandeza que o hábito de publicar em grossos tomos todo e qualquer texto, mesmo os de circunstância, que se começou a falar do “marxismo-leninismo". Se é verdade que cabe a Lenina  a duvidosa honra e responsabilidade de ter conseguido fundar o primeiro Estado “socialista” não menos verdade é que é desde ele que começou a reverenciar-se o pensamento dos dirigentes comunistas. E a publicarem-se as obras deles (escolhidas ou completas) em quantidades industriais. Cá por casa (ou melhor lá, no Porto) jazem em prateleiras pouco alcançáveis varias edições deste tipo. Num momento de lucidez optei pela modalidade “obras escolhidas” conseguindo assim alguma economia de espaço. Tirando Marx (doid volume mais uma dezena de títulos diversos, os restantes cavalheiros estão em repouso desde há muito. E de Lenin fiquei com a ideia de que os textos que realmente ainda valem a pena, sobretudo como documentos históricos, não ultrapassam a meia dúzia. Ou seja cabiam num único volume. Mas as editoras dos países socialistas nunca se atreveram a fazer escolha tão radical. E publicaram milhões de volumes a preço da uva mijona e que, regra geral, apenas serviam de viático para que o militante fosse olhado como um fiel entre os fieis. (como o "Mein Kampf" em casa dos aterrados ou entusiásticos cidadãos alemães que punham a obra provavelmente nunca lida, em evidência naala de visita. Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém)

Com o sr. Li IJinping  vai passar-se o mesmo: os seus elaborados pensamentos vão ter honras de edições múltiplas, em todos os formatos e sempre encadernadas em percalina vermelha e sobrecapa de papel lustroso.

Alguma vez lhe sucederá algo do género a que assisti com estes que a terra e degenerescência macular hão de comer: Nos anos sessenta, aterrei por razões que já não recordo num clube de emigrantes espanhóis em Bruxelas. Era, claro, um clube republicano e controlado pelo PCE. Havia uma tômbola cujos prémios eram rigorosamente estes:  1º um meio faqueiro normal, corrente de marca indefinida; 2º um “magnífico relógio de mesa” (sic) com motivos pastoris; 3º as “obras escojidas de V I Lenin, en três lujuosos tomos”  (sic).

Quando os prémios foram atribuídos, o feliz contempldo com o terceiro prémio ofereceu-o à organização alegando que já tinha um exemplar. Um dirigente do clube, explicou-me candidamente que era a terceira vez consecutiva que o prémio voltava à casa, “temos associados muito instruídos” confidenciou-me. Assenti respeitosamente mas permiti-me desconfiar que na realidade ninguém queria os três calhamaços...

E, deste cantinho onde veraneio sem grande convicção, confesso que vinda da China esta novidade não me impressiona. O maoísmo mesmo dissimulado de modernidade e algum progresso material popular, está vivo, recomenda-se e defende-se com cerca de vinte anos de estudo obrigatório do pensamento excelso do presidente. E ai de quem não souber, na ponta da língua, a lição. Só me perturba o facto de não conseguir discernir – mas o defeito é seguramente meu – onde é que naquele cérebro seguramente prodigioso há matéria para vinte anos de ensino....

* na vinheta:  o novo farol da verdade recolucionária. Repare-se  nafigura do fundo e perceber-se-á como as coisas evoluem ou não naquele bastião da revolução

 

liberdade vigiada 116

d'oliveira, 25.08.21

 

 

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Liberdade vigiada 116

Ajudar só quem se ajuda a si próprio

mcr, 25 Agosto 

 

 

Desde há dias que as páginas de opinião do “Público” (e provavelmente de outros jornais)estão cheias de artigos sobre a “imperiosa” necessidade de “acudir às irmãs afegãs”.

Fico ligeiramente perplexo porquanto, no Afeganistão também haverá homens  a necessitar de ajuda. Pelo menos aqueles que vemos nas imagens, outros que, entretanto, se abalançaram a uma perigosa viagem pelas mais ínvias rotas até tentar chegar à Europa e os muitos que, terão ficado pelo caminho.

E, já agora, muitos outros pis creio que naquele desgraçado país, muito boa gente não se sentirá em segurança com os novos (velhos) dirigentes.

Isto não significa que, eventualmente, não haja uma sólida maioria de habitantes que se revê em maior ou menor grau nos actuais vencedores.

Não basta o exército ter-se desvanecido, liquefeito, mudado de campo. A fulgurante progressão das guerrilhas taliban nunca teria êxito sem um claro apoio popular. E isso não significa apenas homens mas também mulheres. 

As poucas reportagens sobre o Afeganistão, que de longe em longe passavam na televisão, mostravam – sobretudo fora de Cabul, mas também aí – multidões de mulheres encafuadas em burkas.

Hoje, uma colunista. A economista Maria João Marques, intervém com um título perturbador: “E as mulheres muçulmanas na Europa? Ajudamos?” 

E é aqui que a porca torce o rabo. As (melhor dizendo algumas, muitas) mulheres muçulmanas na europa têm à sua disposição um farto arsenal jurídico igualitário, aguerridos grupos feministas, políticos de quase todos os quadrantes (incluindo os de Extrema-Direita que levam o seu descaramento ao ponto de apontarem a situação de inferioridade das muçulmanas para melhor poderem criticar as políticas migratórias dos países europeus)

Até, entre nós, mesmo se raramente, se vem nas ruas mulheres de véu, cabelos cuidadosamente escondido, roupas mais que austeras, apregoando a sua pertença e a sua desconfiança sobre a indumentária mais ligeira das europeias cristãs ou nem isso. 

Também, mas mais raras ainda são as judias ortodoxas que marcham atrás dos maridos também elas vestidas com uma sobriedade que claramente as distingue. Pelos vistos, o remorso de séculos de inquisição ou de pogroms impede os críticos de se pronunciar. 

Pessoalmente, distingo mal um judeu ortodoxo de um muçulmano também ortodoxo pelo menos no que respeita às relações homem/mulher e, sobretudo à atitude em relação aos “infiéis”. Todavia, basta-me passar os olhos sobre reportagens em Israel (Jerusalém ou territórios ocupados por colonatos) para perceber que os palestinianos, todos eles, estão em maus lençóis com tais vizinhos. E que os partidos destes radicais religiosos têm sido os mais ardentes sustentáculos de uma política ultra-nacionalista.

Isto para significar que a nossa concepção de Direitos Humanos, de Liberdade, de Política de Género, esbarra em convicções, costumes, hábitos, mundivisões que nos são estranhas para não dizer mais.

Os adeptos do multiculturalismo  a outrance dão uma mãozinha, melhor dizendo uma manzorra, à continuação deste estado de coisas, desta auto-segregação, sempre em nome de “culturas” próprias que os europeus deveriam respeitar. 

Junte-se a isto, o facto de na maioria dos casos as comunidades emigradas na Europa serem constituídas por pessoas com baixos índices de escolaridade, fraco ou nulo conhecimento da língua do país que  (de bom ou malgrado) os acolhe e omeça-se a perceber como é que certos fenómenos de rejeição  aparecem nos ghettos onde por necessidade, por solidariedade, se acumulam os recém chegados. Junte-se-lhe, no caso dos muçulmanos, a forte influência de um Islão rigorista apoiado nas mesquitas que a Arábia Saudita paga por todo o  lado. O “clero” muçulmano educado nas madrassas sauditas e dificilmente regulado pelos poderes civis dos países de acolhimento contribui em latga medida para que os fieis não conheçam outra cultura mais liberal e aberta. 

Cabemos isso desde as erupções de violência dita islâmica que tem já uma larga tradição nos países ocidentais (desde a Espanha à Alemanha, com forte incidência na França ou na Bélgica). O que eventualmente pode surpreender é o facto de muitos dos autores e comparsas dos mais violentos atentados serem já “segunda geração” com passagem, mesmo se relativamente curta, pela escola pública.

Pode dizer-se que é no seio das comunidades emigradas que se reproduzem as ideologias que dão voz a uma recolta que pode ser mais ou menos mobilizada por factores de exclusão, de racismo, de desconfiança. 

E, convenhamos, essa desconfiança não se atenua com a constância dos atentados, com as violências nos territórios do Magrebe ou do Médio Oriente. E menos ainda com os desafios inflamados que vêm das mesquitas radicais, das escolas corânicas, das autoridades civis e religiosas  (por todas as do Irão, mesmo se, neste caso elas tragam o selo dos chiismo que por sua vez, vide o Afeganistão, é vítima dos sunismos mais radicais).

É neste pano de fundo que a pergunta (não direi exactamente o mesmo da resposta ou da sugestão de resposta) de Maria João Marques faz todo o sentido.

Finalmente, cada vez que oiço clamar que a Europa tem de, “deve”, intervir pergunto-me como é que isso se pode fazer sem que, logo de seguida, apareçam os habituais “anti” (colonialistas, imperialistas, racistas, capitalistas e o que mais der).

As mesmas criaturas que agora choram o “abandono” do Afeganistão, gritavam ainda há bem pouco contra a intervenção imperial dos EUA (dos restantes nem falo porque não faziam peso).         

Não vou sequer debruçar-me sobre a famosa tese de entregar à ONU este ripo de intervenções. A ONU já se mostrou suficientemente impotente em dezenas de ocasiões em que os Direitos Humanos foram alvo de ataque. E então num país encravado entre Paquistão, China, Irão e antigos territórios soviéticos, a coisa parece ainda mais absurda.

Parece e é!

*na vinheta: mulheres muçulmanas em Paris

liberdade vigiada 115

d'oliveira, 24.08.21

Liberdade vigiada, 115

África, longe

mcr, 24 de Agosto

 

Enquanto Portugal e grande parte da União europeia andam acima dos 70% de vacinados, a África, globalmente considerada, vegeta em menos de 10%. 

As boas consciências, sempre em busca de uma causa longínqua que as não obrigue a agir mas lhes permita perorar, acusam o “Ocidente”, sempre esse medonho monstro, de privar o continente negro de vacinas. Por acaso, há grandes países que não são “ocidente” que também não se esforçam por mitigar a escassez africana. A China, que fabrica vacinas, a Rússia que faz o mesmo, a União Indiana que nem sequer consegue acudir aos seus muitos milhões (centenas de milhões!...) de pobres, camponeses, miseráveis das grandes cidades  e o que mais se lhes aproxima) não são mencionadas et pour cause.

O mal e a caramunha estão só, como é hábito, nos EUA e aliados europeus, um pouco também no Japão e Canadá. Mas os europeus são de longe os piores. Foram (apenas alguns, mas tanto dá) colonialistas, são eles que acolhem a grande maioria de imigrantes das antigas colónias, são eles que estão na linha da frente dos actuais hospedeiros de fugitivos de toda a espécie e de quase todos s lugares desde a Ásia à  África.

Conviria que, quando se fala de África, distinguir cuidadosamente entre os países que, detendo grandes riquezas naturais, pouco ou nada fazem pelos seus cidadãos (pela esmagadora maioria dos seus cidadãos), outros que são pobres desde sempre e se debatem com naturais dificuldade, e, finalmente os “Estados falhados” que pura e simplesmente não conseguem chegar à maioria dos seus habitantes. 

É bom lembrar que há elites africanas (e nem vale a pena citar as que nos são mais próximas) que confiscaram boa parte da riqueza nacional. A isso corresponde em grande medida o desastre da pobreza africana e o escândalo da vacinação. Esta, de resto, não apresenta diferenças substanciais do sistema de saúde “normal”. É m África morre-se de muitas maneiras, já nem se fala da fome, de desastres naturais (lembremos as últimas cheias da zona da Beira/Moçambique), da guerra larvar em variados países. 

Há muitos anos, ainda na década de sessenta, um especialista em agronomia, francês, René Dumont escreveu um livro que causou escândalo: “L’Áfrique est mal partie” onde recordava que a os efeitos da colonização não eram os únicos, sequer (e progressivamente) os mais importantes. Favia uma imensa falha das elites nascentes, erros gigantescos nas escolhas do desenvolvimento que se projectava. Esquerda  e Direita, africanas e europeias, “juntaram-se à esquina a tocar concertina” e a atacar um Dumont por uma vez só. Claro que era ele quem tinha razão como rapidamente se verificou. As independência tem sessenta anos e os resultados estão infinitamente aquém do que se esperava. A África subsaariana perde para a imigração dezenas de milhares de jovens por ano. Os mais decididos, os que arriscam mais, os que querem radicalmente mudar de vida.

Esta sangria desatada também não melhora a sorte do continente. Nem sequer, na grande maioria das vezes, dá um especial contributo aos países de acolhimento. 

Há na campanha mundial de vacinação  o problema da assimetria notória entre países ricos e pobres (e mesmo entre países ricos: é inexplicável o atraso da Austrália, da Nova Zelândia, entre outros).

E se é verdade que o que vale para um país (imunidade de grupo) vale para o planeta, não menos verdade é que só alguém vivendo na Terra com a cabeça nos asteroides exteriores poderia sequer pensar que os europeus prescindiriam da segunda (e eventualmente da terceira...)dose da vacina. Vai nisso se não a a vida pelo menos o sofrimento de uma infecção que, mesmo não sendo mortal, não é pera doce.

Atrevo-me a pensar que mesmo os mais entusiásticos e solidários amigos do Terceiro Mundo, não cederiam a sua dose se a necessidade se impusesse a qualquer africano perdido entre o Congo e o Ruanda e que obviamente ainda não está sequer perto da primeira toma. 

As boas almas samaritanas poderiam começar a organizar-se para a exemplo dos Bancos Alimentares, se juntarem local, regional e nacionalmente para num esforço cidadão e individual começarem a comprar vacinas e a fazê-las chegar onde são precisas.

Eu sei que os Bancos Alimentares não gozam dos favores de uma certa “inteligentsia” alegadamente de Esquerda.Que aquilo não passa de um subproduto da caridade cristã, que só serve para expandir a influência do “ópio do povo”, do poder clerical, enfim o costume.

Porém, a verdade, a verdade verdadeira, é que, entre nós, o BA matou a fome da dezenas ou centenas de milhares de pessoas, ajudou milhares de instituições e, de certo modo, tranquilizou a consciência de muitos que não tendo muito, tinham pelo menos o suficiente para viver confortavelmente. 

R o mesmo sucedeu nos diferentes países – sempre ocidentais – onde instituições análogas existem e actuam. 

É pouco mas antes pouco do muito pouco do que nada.

Sou um pequeno contribuinte de algumas campanhas de ajuda em certos países africanos. O pouco que dou é, nalguns sítios, uma apreciável contribuição de meses de necessidades de educação. É verdade que a minha contribuição não ajuda a fermentar a verdadeira e única Revolução salvadora porque anseiam algumas senhoras e cavalheiros africanos que preferem o Portugal racista e colonialista às Guinés e Senegais onde a sua capacidade mobilizadora poderia(...???) ser mais bem aproveitada. Mas isso é um outro falar...   

liberdade vigiada 114

d'oliveira, 23.08.21

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liberdade vigiada 114

a imbecilidade não tem fronteiras

mcr  23 Agosto

 

Como não sou um entusiasta da televisão nacional, perdi a reportagem que mostrava um grupo de tristes criaturas, uivando palavras de ordem contra a vacinação.

No meio delas, surgia a palavra “GENOCÍDIO”, brandida contra o vice almirante Gouveia e Melo.

É bom lembrar que, em Portugal, a vacinação é voluntária, pelo que quem não quer não toma e em frente que atrás vem gente.

Por mim, os negcacionistas podem finar-se todos entre estertores e falta de ar que não me tiram o sono.

Conviria, porém, se é que vale a pena, explicar a essas pobres criaturas que usar a palavra genocídio implica que saiba o que isso significa.

E que nada nesta campanha que apela ao voluntariado tem seja o que for a ver com a tentativa deliberada de aniquilar um povo, uma fracção dele unida por especiais condições raciais, religiosas ou outras determinantes de clara diferenciação dos restantes membros da sociedade.

Hoje, alguns cretinos usam a palavra genocídio a (des)propósito de tudo e de nada. Passa-se o mesmo com mais uma boa dúzia de “ismos” de que a ignorância crassa  usa e abusa.

Imaginemos um pouco que o Governo, a DGS ou as sociedades de médicos oftalmologistas iniciavam uma campanha contra certas doenças de olhos que podem e devem ser corrigidas para bem de muitos cidadãos (dos que sofrem e dos que podem ser vítimas da miopia, cegueira dos primeiros)

E imaginemos que um grupo de palermas começa a achar que tratar dos olhos de quem vê mal é um atentado aos mais elementares direitos humanos, no caso o de ficar cego. Serão os iniciadores da campanha profilática genocidas? A recomendação de tratamentos vários, a dispensa de lentes ou de quaisquer poções oftalmológicas será um atentado contra a liberdade individual? A permissão e edição de livros e folhetos em letra  menos miúda ameaça alguém?

E por aí fora.

Por exemplo: aproxima-se o tempo das gripes. Sabe-se que todos os anos morre uma apreciável quantidade de pessoas atingidas por esse vírus. Deverão as farmácias que vendem e administram as vacinas ser vandalizadas, o governo apupado nas ruas e os centros de saúde ser alvo de acções tão idiotas como as que decorreram à porta de um centro de vacinação visitado pelo coordenador da task force?

Tudo isto, aliás, em nome de uns especiais direitos alegadamente humanos que protegeriam  não a pessoa mas o vírus e a sua cruzada.

E, claro, que a estupidez assume várias caras, em nome de uma estranha liberdade que é a de contra vontade se morrer com a cura à mão de semear

Porque é disso que se trata: se porventura o que protesta contra as vacinas se sente vagamente febril, ai Jesus quem me acode e vá de exgir todos os tratamentos médicos existentes e de reclamar alto e bom som que o SNS é para todos,

Eu proporia às criaturas vociferantes, se lhes desse qualquer espécie de crédito, que preenchessem um documento semelhante ao do “testamento vital” (aquele em que o cidadão, em plena posse das suas faculdades, renuncia expressamente a um determinado género de tratamentos que apenas atrasam a morte sem que a vida melhore).Só assim os levaria a sério. Porque eu faço parte das pessoas que, mesmo lamentando-os, não desprezo os pobres de espírito, mesmo se também não lhes atribua qualquer reino dos céus.

Agora, em nome da língua, do dicionário (mesmo o da Academia) do português que ainda nos resta mesmo submetido ao nefasto e nefando acordo ortográfico,      há algo de imperdoável: não saberem o que significa “genocídio” permite pensar que talvez também não saibam o que quer dizer “direito”, “liberdade” ou, até, “vacina”. Ouseja, falam do que desconhecem e isso foi sempre algo de perigoso. Ká os fascistas falavam de “burguesia”, de “capitalismo” de “plutocracia” sem perceberem raspas de qualquer destes temas.

O que, levado à prática, deu no que deu...

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