liberdade vigiada 122
Liberdade vigiada 122
Balsemão (pagar uma dívida antiga)
mcr. 31 de Agosto
Conta-se, mas é quase certo tratar-se de um “lenda urbana” que Vasco Pulido Valente ao ser sondado por Sá Carneiro para um posto governamental à sua escolha terá respondido que queria ser “Balsemão”
Sá Carneiro que tinha um certo sentido de humor, foi na conversa e pediu-lhe que se explicasse. Eis a resposta de VPV: “mulher bonita, tio rico e Porsche à porta”
VPV acertava em cheio. Francisco Pinto Balsemão era (por parte do pai) sobrinho único de tio rico, o anterior proprietário e director do “diário Popular” um jornal vespertino respeitado que, no antigo regime, concorria com o “Diário de Lisboa mais à “esquerda” (no possível(. E o resto também era verdade.
Todavia, a personalidade Balsemão, na altura já director e proprietário do “Expresso”, ia bem mais além do que a “boutade” do Vasco.
Fora um dos membros da chamada “ala liberal”, que Marcello Caetano chamara à Assembleia Nacional e aí, com duas escassas dúzias de companheiros, fizera o “caminho das pedras”. Aquele pequeno grupo de jovens políticos, de pendor democrático e liberal fora, desde o primeiro momento, acossado pela turbamulta conservadora, radical, salazarista que não se conformava com aqueles “rapazes” pouco respeitosos que tentavam modernizar na medida do possível um regime que já dava fortemente de si.
Em verdade, bem que poderia aparecer uma boa história dessa tentativa corajosa de reformar por dentro algo que já era, convenhamos, irreformável.
Nem Caetano servia para o efeito: Mesmo aureolado pela sua defesa, enquanto Reitor da Universidade de Lisboa, das Associações de Estudantes, Marcello que honrosamente se demitiu perante a repressão de 1962, tinha a seu (des)crédito várias posições políticas radicais , fora ministro, chefiara a Mocidade Portuguesa, era, digamos, um fiel entre os fieis mesmo se, ao contrário de outros próceres do regime do Estado Novo, tivesse sempre tentado - e conseguido – manter a aparência de alguém relativamente independente dentro do serralho salazarista.
(Atenção: quando digo “relativamente independente” apenas quero distinguir Marcello de um Casal-Ribeiro, por exemplo ou de uma multidão de criaturas do Estado Novo, inteiramente devotadas a Salazar, incapazes de qualquer elaboração política, incluindo ideológica, que fugisse ao pântano “situacionista”)
Marcelo, porém, chegou tarde se é que alguma vez pudesse ter chegado a tempo. Em 1968, o antigo anti-liberal, anti-democrático e anti-moderno, ex nº 2 do regime, ex-presidente da Câmara Corporativa, não tinha força para vencer o “bunker” reaccionário nem, tão pouco ultrapassar as suspeitas de Américo Tomaz que o chamara a contragosto.
Marcelo era prisioneiro voluntário do regime do Estado Novo, da continuação da guerra de África. Mais do que modernizar, actualizou um par de instituições desde a polícia política à censura sem tocar no essencial, chamou alguns tecnocratas ao Governo mas sem permitir grandes audácias. Era, antecipadamente, um político fora do tempo e do lugar, vencido, isolado e, pior, convencido de que poderia mudar fosse o que fosse no país.
Conseguiu porém convencer alguns portugueses e entre eles os jovens políticos da ala liberal ou António Alçada Baptista, um homem prestigiado, fundador e director de “O Tempo e o Modo”, revista que congregara católicos progressistas, socialistas e jovens esperanças esquerdistas que mais tarde o tomaram e converteram numa espécie de porta voz intelectual do MRPP (a coisa durou uma dúzia de números e desapareceu sem saudade nem glória).
Temos pois Balsemão, ainda sem “Expresso”, mas deputado, ao lado de Sá Carneiro, Miller Guerra, Mota Amaral, Pinto Leite, Magalhães Mota ou Pinto Machado. O primeiro líder do grupo, Pinto Leite, morrerá num desastre aéreo (de contornos estranhos pois há quem afirme que o aparelho em que seguia teria sido abatido pelo PAIGC) na Guiné logo em 1969.
Durou pouco, como muitos dos que logo criticaram este passo, a aventura liberal. Em 1971 começam a sair do parlamento e, cada vez mais, a apresentar-se como elementos da ”oposição”.
Para isso muito irá contribuir o “Expresso” que Balsemão construirá de cabo a rabo. Leitor, desde o primeiro número (e até hoje, aliás) acompanhei com simpatia, curiosidade este semanário onde vários amigos meus (desde o Zé Quitério até ao Francisco Belard) colaboraram sempre. Julgo-me uma boa testemunha de algo que, na altura do aparecimento, era absolutamente inédito na imprensa portuguesa. Não que faltassem tentativas jornalísticas entusiasmantes e progressistas desde o “Jornal do Fundão” o “Comércio do funchal” (cito os mais interessantes e mais inovadores ) mas o “Expresso” conseguia ser mais abrangente, mais bem informado e mais profissional. E, de certo modo, essa é a principal razão da sua longevidade e do lugar central que ainda hoje ocupa na imprensa portuguesa.
Com a Democracia, Balsemão e amigos irão criar o PPD, que eles queriam ligado à social Democracia Europeia e à Internacional Socialista, desiderato que não conseguiram graças à recusa terminante de Soares e às amizades que este criara em França e na Alemanha. De todo o modo, e até ao advento de Cavaco Silva, foram eles – mesmo após a morte de Sá Carneiro – quem tiveram as rédeas do poder no partido. E foram eles, aliados ao PS e a pequeníssimas forças radicais de extrema esquerda, quem constituiu a aliança que se opôs a Vasco Gonçalves, ao PCP e ao grupo militar que saiu derrotado em 25 de Novembro.
E será Balsemão, na sua breve função de 1ª Ministro, um dos elementos chave para o fim da tutela militar e do Conselho da Revolução. Terá ainda desempenhado um papel central nas negociações para a entrada na Comunidade (agora União ) Europeia.
A partir daí a história é diferente porquanto é com ele que se inicia a televisão privada em Portugal, via SIC. E o império de comunicação social que se chama Impresa
Um longo percurso político, empresarial, cultural e democrático. Insisto nesta última particularidade: democrático. Por razões várias, provavelmente por feitio próprio, Balsemão nunca teve a política como forma única e última de realização pessoal mas, mesmo sem querer, deixa uma pegada profunda na História da Democracia e da Liberdade entre nós.
E é isso que se lhe agradece, agora que o tempo é de homenagens justíssimas.
Este leitor do Expresso, este usuário ocasional da SI, tem memória e sabe ser grato. Não o apoiei nem aos seus amigos em 1969 dado que a minha barricada era mais radical, mais intransigente e mais natural pois estava metido de corpo e alma na luta universitária, mas confesso que vi com a simpatia que se adivinha o reforço que a ala liberal trazia a um oposição onde eu militava desde 1958 ou, melhor e mais verdadeiramente, desde 1960.
Parabéns, Francisco Balsemão!