estes dis que passam 589
Fugir é o melhor remédio
mcr, 1-10-21
Vamos imitar aquele pitoresco e brilhante Secretário de Estado e dar uma de politicamente incorrecto.
Eu também me poria ao fresco, “abriria”, “lancetaria” (termo usado na velha república dos 1000-y-onarius nos anos 60 , época em que a malta de África, movida pela ideia de independência das colónias, desandava para outras terras mais hospitaleiras) se estivesse na iminência de ”ir dentro”.
Explicando-me melhor: quando alguns amigos meus me disseram que eu deveria escrever as minhas memórias (como se elas valessem a pena!...) eu lá me desculpava com a preguiça com que Nosso Senhor, a Natureza, ou a soma das minhas fraquezas, me brindou e atirava-lhes para cima com o encargo de recolherem estas trivialidades que vou dando à estampa internética e depois lhes limparem as adiposidades, as excrescências, os narizes de cera. Se algo sobrasse poderiam publicá-las a expensas deles. Só os obrigava a um título que me parece óbvio e adequado: “A pisão é uma chatice e ainda por cima come-se mal”
Trata-se de um título longo (mas sugestivo, parece-me) e é fruto de uma experiência diversificada, colhida nos anos 60 e 70 durante o Estado Novo. Conheci alguns calabouços, desde Caxias ao Tribunal de Coimbra (onde estagiei durante alguns meses, à conta da crise de 69 e dos extremosos cuidados da Polícia Judiciária). A estadia mais confortável, se de conforto se pode falar, foi a última em Caxias (quartinho pequeno com “vistas” para a auto-estrada e rio, águas correntes quentes e frias e o inolvidável espectáculo dominical do içar da bandeira aos domingos (um pelotão de patuscos guardas prisionais que não acertavam com as ordens, um cão que uivava zangado com a desafinação do clarim, a bandeira que ou subia depressa ou devagar chegando mesmo ao ponto de, por mera perrice, não subir, enfim um momento único onde a glória da pátria, a situação d preso, o cinzentismo nacional e o ridículo se conjugam para me fortalecer na fé contra a ditadura).
Portanto, um saber de experiência feito!
Quando, mais tarde, mas ainda antes do 25A, me dediquei a evadir fugitivos da pátria madrasta (anos 72-74) era ainda a velha ojeriza ao sistema prisional que me animava. Exerci essa tarefa pro bono como, aliás, também pro bono, advogava e defendia presos políticos, mormente estudantada apanhada nas guerrilhas estudantis (até obtive, com mais três colegas, e no Tribunal de Polícia, uma absolvição de uns rapazolas que tinham cometido vários desacatos numa faculdade, invadindo salas de aula, resistido a contínuos e beleguins, convidando a rapaziada menos ousada a fazer greve. Um êxito único e irrepetível...)
Tudo isto para afirmar, preto no branco, que o sr. Rendeiro, ex-banqueiro, condenado, com transito em julgado, a uns anos de cadeia e candidato a mais duas condenações do mesmo teor e espécie, daria provas de absoluta estupidez se se deixasse engaiolar. Sobretudo quando, como é o caso, há de ter fartos cabedais passados aos direitos, em paraísos fiscais.
Ir para a “choldra” em vez de gozar o tempo de vida que lhe falta numa praia de águas coralinas, um “daiquiri” bem fresquinho, alguma companhia feminina e local, nova e tenra de preferência, não era opção. Era incompetência catatónica, ortorrômbica a roçar o genial da burrice. Ora um cavalheiro que aliviou uma instituição e vários particulares de umas dezenas de milhões pode ser um bandido, um gatuno, um escroque, um gangster, um cabrão mas estúpido seguramente que não será.
Convenhamos que o Tribunal, os tribunais e toda a restante e perra engrenagem que em Portugal se toma por Justiça, também fez o que pode.
Parece, ouvi na rádio enquanto me barbeava que uma meritíssima Ju´za, terá dito que nada no passado do condenado evadido fazia crer que ele se atrevesse a furtar-se à justa punição. Sem ofensa, permito-me declarar que isso, essa afirmação judicial, a ser verdadeira é de uma candura descomunal e revela bem que quem anda pelos pretórios desconhece as pulsões da vida real.
Ei, excelentíssima e meritíssima, se soubera que iria ser preso, mesmo naqueles tempos, de pouca pecúnia e de dificuldades sem fim, teria dado “às de Vila Diogo”. De resto, isso mesmo fiz, durante o longo e glorioso Verão de 69, escapando sem demasiados trabalhos e canseiras, a uma matilha de agentes da Judite que ardorosamente me procuravam pelas praias do país (eu e o João Bilhau e o Orlando Leonardo, cada um por si e todo pelo fito de não perderem a praia, os banhos de mar, as férias merecidas depois das fadigas da greve em que nos empenháramos).
Poderia, mesmo, atrever-me a sugerir que, mesmo no caso de futuros condenados de boa fé, talvez tivesse valido a pena, caçar-lhes o passaporte. Isto não os impediria de, pela fresca passar a fronteira e outras, comprar um documento mais falso do que Judas e retomar a peregrinação pelo vasto mundo até encontrar aconchego num local discreto onde a mão incerta da Justiça (que ainda por cima é cega e eventualmente maneta) não o pilhasse de calças na mão.
Parece que o sr. Rendeiro, num auge de boa vontade terá informado o Tribunal de que não tencionava regressar tão cedo à pátria que o injustiçava. Eu, encontrei uma vez este cavalheiro, na altura presidente de um banco e se não erro de uma fundação (Elypse”?)
Uma amiga minha e artista de mão cheia fizera um filme sobre as aventuras fronteiriças a que acima me refiro. Aí, o casal Laurinda e Manuel Simas Santos, o o Zé Teixeira Gomes, e este que se subscreve lá diziam de sua justiça sobre o tema evasão de desertores, refractários, oposicionistas vários e restantes malfeitores segundo a polícia. A coisa ganhou um belo prémio, a realizadora, Filipa César, continua de vento em popa a mostrar o que vale. O filminho chamava-se “Le passeur”, já agora.
No dia da vernissage, lá jantei com um punhado de críticos, gente vária da fundação e o dr. Rendeiro que era quem pagava. Trocámos breve palavras e cada um foi à sua vida. Pelos vistos a dele, era, nessa época, bem mais aventurosa do que a minha, cavalheiro já na reforma, descansando dos trabalhos levados a cabo numa outra e mais antiga vida.
Duvido que o tenhamos inspirado, porquanto o filme, mesmo com o pano de fundo da passagem do rio Minho, abundava sobretudo no que nós pensávamos sobre vários e menos excitantes assuntos, situações e visõs do mundo.
Todavia, se o agora prófugo lusitano (apanhem lá esta ó ignorantes da Eneida!) entender que, de algum modo, o influenciei, cá espero uma viagem paga até alguma ilha perdida e coralina, cheia de jovens e entusiásticas musas de Gauguin a dançarem o hulha com empenho, convicção e glmour.
“A boi velho erva tenra” e eu, mesmo quase desdentado faria os possíveis e os impossíveis para não desfear a fama da pátria imortal dos egrégios avós.
o título inspira-se numa secção de uma antiga revista, as "Selecções do Reader's Digest" (rir é o melhor remédio) e, aqui para nós, esta penosa história dá uma certa vontade de rir. Para não chorar!