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O que une e o que fractura
mcr, 24 de Março de 2022
Há sessenta exactos anos, dia por dia, apanhei no lombo pela medida grande. No Campo Grande, ainda por cima, ia eu incauto a caminho de uma jantarada que o Reitor da Universidade de Lisboa ofereceria, à estudantada expulsa da zona universitária pela polícia de choque. Inda por cima nem sabia para onde fugir pois não conhecia Lisboa. Valeram-me duas raparigas de que perdi o rasto que me guiaram até ao CUJ (Clube Universitário de Jazz, onde escutei pela primeira vez gravações de uma nova música africana, o “Kuela” ou (Kwela). Tenho a ideia de que o conferenciante seria Jorge Calado mas a tantos anos de distância é-me impossível confirmá-lo.
Depois foi o que se sabe (ou não) e durante anos continuei a peregrinar até Lisboa e a sofrer as consequências dessa minha pequena audácia.
Já na altura, a resposta estudantil coimbrã à repressão foi mais do que notável mesmo se os historiadores foquem sobretudo os acontecimentos de Lisboa. Todavia, à conta da revolta malhei com os costados em Caxias por algumas semanas, o que me salvou de duas coisas: não fui expulso de Coimbra porque me perderam o rasto (estava preso!) e não fui reinspeccionado pela tropa por alguém, bendito seja!, ter entendido que, um rapazola preso “não era digno de pertencer ao brioso corpo de oficiais milicianos! (sic) Pouco tempo depois, os “indignos” eram despachados o batalhão disciplinar de Penamacor e enviados para a guerra como simples soldados ou cabos já não recordo.
Safei-me da guerra mas não das prisões que me foram caindo em cima com alguma regularidade e cada vez por mais tempo. De todo o modo, acho que tive sorte mesmo se de certeza e se fosse chamado para o serviço militar, “daria o salto”. Não foi preciso mas, em compensaçãoo, nos últimos anos do regime defunto, fui “passador” ajudando um par de desertores ou de simples opositores políticos a sair clandestinamente de Portugal.
Ontem, pelos vistos, bateu-se um record: já há mais dias de democracia do que de ditadura. Como sou da década de quarenta essa contabilidade não me apanha pois há uma boa dúzia de anos que tenho mais tempo de vida em liberdade do que em “estado novo” (que aliás tresandava a velho).
Celebrado que está esse dia também “inicial e luminoso”, vamos as futuras celebrações.
Pelos vistos, o nóvel e esperançoso ministro da Cultura provou estar à altura dos seus antecessores. Esse imberbe político, nascido em 74, nunca tendo vivido e, muito menos, percebido o que é viver sob a ameaça da perda de liberdade, entendeu achar que não se devem celebrar as datas fracturantes (a palavra pegou...) e deu como exemplo o dia 25 de Novembro (que em Coimbra, e no seio da Academia, celebra a “tomada da Bastilha”, ou seja a ocupação da primeira sede da Associação Académica, sendo considerado o “dia do estudante de Coimbra”).
Convenhamos que o sr dr. Adão e Silva, meteu a pata na poça. Vê-se que nada sabe, nada aprendeu desses dias tumultuosos que correram entre Março e Novembro de 1975. Não faz a mínima ideia do clima que se respirava, os tumultos diários, dos assaltos às sedes dos partidos de “esquerda” fossem eles o PC ou a UDP, nunca passou, nem podia, por Rio Maior da terra dos tipos com mocas, não viu um país partido ao meio, com as tropas de todo o Norte prontas a caçar os esquerdidatas e similares, as manifestações gigantescas, a começar pela da Fonte Luminosa e a terminar no cerco ao quartel de Gaia. Não sabe de vários militantes comunistas ou aparentados que fugiram a meio da noite de muita terra do interior por se sentirem ameaçados. Não viu, nem sequer na Tv, as tontas e tresloucadas afirmações dos que juravam ser a “muralha de aço” e que desapareceram como o orvalho da manhã em dia quente logo nas primeiras horas do 25N. Ninguém lhe terá contado do cerco da Assembleia constituinte, da palhaçada doa manifestação do “é só fumaça”, da greve de um Governo, das ocupações selvagens,, do pobre Duran Clemente a titubear tontices na TV e a ser desligado, do ataque ao jornal “República” dos expurgos noutros órgãos de comunicação social, da destruiçãoo à bomba do emissor da Rádio Renasceça, da frenética procura e aquisição de armas, de quaisquer armas, de um par de embuçados que juravam ser muitos e desapareceram também eles na manhã de 25 de Novembro (refiro-me a uns alegados SUV, “soldados unidos vencerão” que não venceram coisa alguma se é que sequer tenham existido em número suficiente para formar um pelotão...)
Eu, sobre esta criaturinha muito televisiva, nunca senti especial simpatia. Sempre o achei enfático, pomposo a namorar o poder. Como agora se vê e comprova.
Devo, entretanto, dozer que assisti ao 25 de Novembro sem surpresa, sem agrado e sem desagrado. Previa aquele desfecho desde Agosto.Escrevi-o na longa, longuíssima carta com que anunciava ao partido onde militava a minha desvinculação. Nunca pensei em abandonar o país mas preparava-me para eventuais tempos dificeis. Aliás, amigos italianos do grupo “Il manifesto”, com quem partilhei alguns dias em Roma, aconselharam-me a ficar por lá pois as notícias (e eles estavam excelentemente informados, como informado e alarmado estava o PCI que mostrava as mais fundadas reservas ao que se passava em Portugal) Uma grande revista italiana, onde pontificava, entre outros Umberto Eco titulava num dos números de Agosto, na capa: Portogsllo: colonello , falce e martelo”.regressei à pátria suspeitando que os dias difíceis iam regressar mesmo se, duvidasse da eficácia dos radicias na construção de um qualquer socialismo.
Estas coisas tem de ser vividas e eu, por razões profissionais, tinha de ir constantemente a Lisboa pelo que assisti a tudo, participei em reuniões (incluindo uma a convite de Jorge Sampaio e amigos sobre o que eles chamavam “o golpe de Lisboa(a exemplo do anterior e temível de Praga..Recordo que nessa altura, teria dito que Praga era longe e que, de onfe vinha, se tal golpe se desse serviria de rastilho a uma guerra civil pois a “revolução” estava confinada a Lisboa arredores e nem aí a tropa parecia muito convencida, ou sequer convencida a embarcar em aventuras. O que, aliás, se verificou: no 25 N nem Otelo, nem ninguém resistiu os sequer fez menção de resistir. O 25 N foi apenas o rebentar de um abcesso mais que localizado.
Nesse exacto dia, convenci um velho amigo meu, mais próximo dos vencidos, a ir almoçar a um restaurante chamado Ziriguidum onde se pavoneavam vários dirigentes de partidos moderados encantados com o desenrolar dos acontecimentos. Alguns que eu conhecia ter-se-ão espantado (pelo menos foi o que me contou um deles) com a nossa presença pois éramos conotados com o MES mesmo se, e no meu caso, eu já tivesse dito adeus a esse carnaval político em inícios de Setembro. O MES fora a todas, integrara algo extraordinário chamado FUR (acho que aquilo se chamava frente de unidade revolucionária) que num primeiro momento federava grupúsculos revolucionários e contava com a bênção do PC que entretanto se afastou pois percebeu a inanidade daquele amontoado. Se não erro, o MES também apadrinhava imenso os SUV ou seja algo de fantasmático e/ou inexistente ou insuficiente.
Dizer que o 25 N foi fracturante (que inclusive dividia gente do 25 A, o que sendo verdade nem sequer é significativo dada a crecente e imparável deslocação de meia dúzia de “revolucionários” para as FP25 e quejandos) é uma tontice. Desde Costa Gomes a Eanes, de Melo Antunes a esmagadora maioria do MFA, do PS e de Soares a todo o leque político à direita, incluindo muito provavelmente alguns esquerdistas (a começar pelo MRPP e a terminar nos rapazes do “castelo de Guimarães, “uma espinha na garganta de Cunhal” ((sic)) e vários militantes do MDP ou até do PC que nem tugiu nem mugiu e por isso foi premiado pelos vencedores), o 25 foi o modo mais económico e mais pacífico de cortar um nó górdio que em boa verdade também não passava de um castelo de cartas.
Ver o nascido em 74 a alardear estes patacoadas e, ao mesmo tempo, a aceitar pressuroso uma pasta num governo PS partido que foi o pilar do 25 N é entusiasmante. temos um fartote à nossa frente!
Previdentemente, António Costa convidou-o para um lugar onde se tem comprovado o intrínseco valor de uma série de luminárias todas piores umas que as outras desde Santana Lopes ou Carrilho até hoje. Está no sítio certo, já disse as palavras certas e seguramente apreciará os concertos de violino de Chopin de gloriosa e lusitana história.
Ou como dizia o outro: a História repete-se... Etc...
* na vinheta: o heroico cerco da Assembleia constituinte, um momento alto do ano de 1975 cuja histtória o fracturentee e traiçoeiro 25N veio miseravelmente interromper.