Tarde e a más horas
mcr, 29-04-22
Este é o género de textos que detesto escrever. Todavia, faço-o por imperativo ético e porque ouvi algo que me pôs os cabelos em pé.
E começo por aí: ontem, o sr. Secretário Geral da ONU afirmoiu que “este é o momento certo para vir a Moscovo e a Kiev”.
Sª Ex.ª deve estar a zombar de nós e sobretudo dos seus hospedeiros ucranianos.
A guerra tem dois fartos meses, leva largas dezenas de milhares de mortos civis, um ror de cidades destruídas, cinco milhões de fugitivos, outro tanto de deslocados e este foi o momento certo?
Eu já não digo que ao primeiro tiro, ao primeiro morto, aos primeiros mil refugiados, o sr. eng. Guterres largasse tudo e se metesse no primeiro avião para Moscovo, Kiev, Vladivostoque ou Cabeceiras de Basto. Dou-lhe aliás as duas primeiros semanas mesmo se ao terceiro dia já se adivinhasse a sangueira que iria ter lugar, as destruições gigantescas que desde logo a invasão bárbara começou a provocar
No entanto, ao fim de dois longos meses, depois de uma dúzia de chefes de Estado ou de Governo terem estado no terreno, depois de alguns outros se terem deslocado à Rússia ou tentado entrar em contacto com Putin, vir dizer que este é o momento certo, suscita uma série de perguntas e nenhuma delas benévola.
Deixemos de lado todas quantas apontam para uma súbita (ou não) incapacidade de discernir o que, desde o primeiro momento ,estava em causa mesmo se já houvesse declarações insensatas dos russos sobre a inexistência da Ucrânia, sobre a “não invasão” sobre a “libertação” de territórios e de pessoas que se recusam (viu-se ainda ontem em Kersten ocupada, uma manifestação - a quinta ou sexta desde a tomada da cidade – contra o ocupante) a se libertadas, desnazificadas, des-ucraneizadas”.
Quando todos pensavam (e eu com eles) que, numa semana, máxime dez dias, a Ucrânia morderia o pó,, eis que está de pé, entre ruínas, luta, não se rende, tem alguns sucessos militares apesar da terrível desproporção de forças frente ao agressor em todos os aspectos (população, riqueza, armamento etc...).
Até os filhos de Putin, apoiantes do autocrata, arautos dos pensamento múltiplo e da paz a qualquer miserável preço, incluindo a servidão, já andam por aí calados como ratazanas, jurando que nunca simpatizaram com a Rússia, com a balalaika, com os cossacos do Don mesmo quando cantam a “Kalinka” ou com o ballet do Bolshoi. Eles os bondosos, os mais puros que a água destilada (e tão insossos como ela) apenas querem uma discussãoo séria, objectiva, tendo em conta todos os factores, incluindo o mirífico “Rus de Kiev”, e todas as patacoadas que, partindo do facto incontroverso da agressão ter início em 2014 (e já aí de haver clara intromissão no Donbass e ocupação pela força da Crimeia), afirmam que o “conflito” tem duas partes que ambas terão os seus pecados ao mesmo tempo que esquecem , os inocentinhos, que há um claro agressor e um claro agredido, ponto final, parágrafo.
A missão de um Secretário Gral da ONU não é a ficar a ver a televisão, a pensar intensamente no que se passa, à espera da Primavera para finalmente se decidir a ter duas palavrinhas com os contendores. E tê-las depois de toda a gente perguntar vezes sem fim para que serve a ONU e sobretudo o cavalheiro que a secretaria geralmente.
O sr Secretário Geral espera que da sua ida a Moscovo, mesmo depois do que ouviu não só de Putin mas sobretudo dos seus porta-vozes e da canzoada que ladra ainda mais alto, suceda um milagre: um corredor humanitário de Mariupol para o território ucraniano não ocupado.
Prometo ir a Fátima com o sr engenheiro, ou a outro santo da devoção dele, se isso acontecer. Infelizmente para os ucranianos todos, civis e militares, para as mulheres, crianças e idoso na Azovstal, para os feridos civis ou militares, julgo que será preciso um milagre bem maior que o das Rosas, o de Ourique, ou os do sol a fazer piruetas em Fátima, para isso acontecer.
O sr. Secretário Geral foi aos trancos e solavancos até Moscovo e Kiev, empurrado pelo tsunami de vozes que, de há semanas a esta parte, o acossavam pela inacção.
Poderia, apesar de tudo, para além dos narizes de cera que usou nas cidades destruídas ao ver uma realidade que tem também ela dois meses de infâmia, ter dito algo no género, desculpem só agora ter vindo mas não sabia o que fazer, ou tentava em segredo conciliar os inimigos irreconciliáveis, enviar mensageiros secretos aqui e ali, enfim o que lhe desse na real gana. Porém, dizer que este é o momento certo não é só uma mentira rotunda, uma burrice supina, um descaramento impensável. É uma desculpa de mau pagador, uma confissão de impotência que roça a desumanidade.
Vir dizer que naqueles prédios esventrados poderia estar a sua família, os netinhos, seja quem for é quase obsceno. Porque não estavam nem estariam, porque estão longe, porque quando os que lá estavam e já não estão entre os vivos, não houve uma voz de um secretário geral, ou de uma secretaria de pinho, a dizer isto é um crime de guerra. Ou se houve foi tão em surdina que de nada serviu excepto para fazer rir os russos que entretanto o brindaram com um par de misseis como quem diz "se quizessemos, ias desta para melhor" (isto no caso de terem mesmo apontado para ali e não para o local do encontro com as autoridades ucranianas ,pois já se sabendo que em questões de pontaria os russos não são propriamente uns génios)
A ONU com o seu conselho de Segurança de opereta que faz o que quer e veta como quer (e até nisto há um sinistro record de vetos onde a URSS, primeiro, e a Russia, agora, são responsáveis por mais de 80%), corre o risco de implodir. É como um barco muito grande cheio de rombos em alto mar. Só ainda se não afundou porque, justamente, é muito grande. E mesmo assim é bom lembrar o Titanic, insubmersível, que se foi no espaço de dois suspiros...
Eu nada tenho de especial contra a criatura Guterres. Até o apoiei quando se candidatou a primeiro ministro. Estive mesmo no Conselho Coordenador dos Estados Gerais, troquei um par de palavras com ele. Ele não se lembrará de mim, coisa que, de todo, não me incomoda , e eu, em boa verdade, não vejo razões para o lembrar como primeiro ministro. Via-se, viu-se ao fim de dois, três meses, que não tinha estofo para aquilo, que era uma clara demonstração do “princípio de Peter” que ultrapassara bastamente o seu nível de competência. Quando se demitiu, denunciando o “pântano” provou isso mesmo, tanto mais que contribuíra, e de que maneira, para o mesmo terreno alagadiço. A carreira internacional veio provar uma coisa: dá imenso jeito ter umas personalidades que já não servem no próprio país, para preencher uns cargos que não devem ser atribuídos a pessoas oriundas dos países mais poderosos. A campanha para Secretário Geral provou exactamente isso. Ele era o candidato mais cândido possível, o que pisaria menos calos, o que menos ondas faria. E foi reeleito exactamente por isso, por ter feito da mansa resignação e do não movimento um princípio de acção. Imóvel, claro.
Tudo isso pode não ter especiais e gravosas consequências se as coisas correrem normalmente. Todavia uma guerra na Europa, e não nos confins da Ásia ou nos sertões distantes de África, é uma maçada. Mexe com tudo a começar com uma imprensa livre e combativa, com opiniões públicas esclarecidas e habituadas a vociferar. E com a NATO, a UE e os aliados ocidentais...
E isto, o que se passa, já não é uma guerra local, nem a Ucrânia é um Kossovo qualquer. Há a sombra temível da antiga URSS ou até do antigo império dos czares. Há uma clara ameaça a vários países a começar pela Moldova e a continuar nos bálticos que sabem de que farinha são feitos os vizinhos russos. Não é por acaso ou por uma súbita e inusitada paixão que a Suécia e a Finlândia de repente discutem a sua adesão a um bloco que as defenda (e aliás a Rússia, pela voz de um par de criaturas fora do Kremlin mas claramente “his master’s voice” já abundam em avisos ameaçadores. Ainda ontem, e por muito menos, alguém da banda russa se indignava por o Kazaquistão não querer celebrar o 9 de Maio!... E, entredentes, ameaçava...
Tudo isto para reforçar a ideia deste texto que nunca pensei ter de escrever: O sr Secretário Geral ainda não percebeu em que mundo vive, para que serve e, muito menos, quão inqualificável é a sua frase “vim no momento certo”. E das duas uma: ou está convencido disto e então é um perfeito incapaz, ou usou esta desculpa de mau pagador e então não é pessoa séria e muito menos adequada para o cargo que ocupa.
A terceira opção, falta de coragem (ética, política, moral) também poderá ter o seu quê de verdade.
Mas não apaga as duas anteriores. Antes se lhes acrescenta!