do uso reiterado da falácia e da confusão
mcr, 9-4-22
Há, entre nós (e provavelmente em muitos outros lugares) o hábito de tentar desviar os termos de uma discussão para fazer valer os nossos argumentos.
Na vida política (nacional ou internacional) o abuso é quase um hábito. Deixemos, entretanto, os argumentadores estrangeiros e fiquemo-nos pelos indígenas que já dão pano para mangas.
Agora, o que está a dar é a situação de guerra que se vive no leste europeu e as suas repercussões em Portugal.
O que, a principio pareceria normal e evidente era apenas a verificação de uma situação: quem agride e quem é agredido. Este é o ponto fundamental. Depois, evidentemente poderá discutir-se se houve ou não razões para se ser agredido e para agredir. Todavia, uma agressão armada com as dimensões a que se assiste, e com a qualificação de mera “intervenção especial” parece ultrapassar toda e qualquer norma ética que, em princípio, deveria ordenar a vida internacional.
Se, ainda por cima, as justificações apontadas para uma intervenção violenta (uma invasão ou um bofetão) forem de uma pobreza franciscana, então, a tomada de posição na questão torna-se ainda mais urgente. E a condenação da agressão ainda .mais se justifica
Todavia, além disto que é, insiste-se, o fundamental, há que pesquisar os efeitos dentro de portas, nossas. E é aí que as surpresas (se de surpresas se trata) surgem. E as confusões, as falácias, as mentirolas e a tentativa de atirar poeira para os olhos dos outros, sobretudo dos que, desde o primeiro momento se indignaram, se sentiram ameaçados e se solidarizaram com as vítimas das agressões.
Qualquer português tem o direito de pensar pela sua cabeça, de estar ou não de acordo com a opinião esmagadoramente maioritária dos seus compatriotas. Mesmo se, notem bem, a sua atitude derive mais da compaixão do que da fria análise dos factos e das razões que os motivaram.
É obviamente mais fácil, mais humano e mais decente comovermo-nos perante uma cidade em ruínas, uma fuga maciça de populações espavoridas, um cadáver insepulto e abandonado, do que perante uma coluna de tanques a avançar, uma esquadrilha de aviões a bombardear ou o voo temível de misseis disparados de longe às vezes a centenas de quilómetros para cair perto de um alvo que nem sempre é militar ou estratégico.
Ver mulheres e crianças com uma pobre mala por equipamento, um cão ou um gato dentro de uma transportadora, comove vinte, cem, mil vezes mais do que uma parada militar arrogante.
Ver pais a levarem até à fronteira os familiares, despedirem-se para voluntária, ou involuntariamente, regressarem à frente de combate de onde poderão ou não escapar vivos, torna a situação muito mais dramática do que ouvir um autocrata, ex-pide soviético a bramir teses raciais inconcebíveis, comentadores ao seu serviço a garantir que havia a ameaça de criação de vírus específicos anti-eslavos (como se os ucranianos o não fossem...), manifestantes anti guerra a serem presos, a arriscarem-se a condenações que podem chegar aos 15 anos de prisão, outros em maior número a abandonar as casas, os empregos e o país que os viu crescer (e tudo isto a ser classificado como “purificação” da pátria eterna!!!...) leva multidões, cada vez maiores a condenar o agressor e a pedir satisfações a quem os apoie.
Ora, e é aqui que a porca torce o rabo, apareceu ultimamente, entre nós, a ideia peregrina de que anda por aí uma multidão sedenta de sangue a querer excluir o PCP, o BE e um par exíguo de “bem pensantes” da vida política e social; a impedir estas organizações e pessoas de se pronunciar sobre o que muito bem entendem.
A favor desta tese inverificada, afirma-se que, na análise dos acontecimentos na Ucrânia, existe uma conspiração a misturar os dois partidos (que singularmente divergem fortemente quando não absolutamente)) com a Extrema Direita (que, no caso português e diferentemente do que se passou noutros países europeus, da Grécia à Holanda, também condenou a agressão russa).
É provável, mas ainda não tive oportunidade de o comprovar que algum arrebatado tenor tenha tentado trautear esta ária, só que o público, pelos vistos, não a aplaudiu ou sequer acompanhou.
Não tenho quaisquer dúvidas que o PC está sem razão e desacompanhado. Isso nunca me inibiu nem inibirá de pensar que, tem e teve um papel na vida política portuguesa mesmo que esse papel nem sempre tenha colhido a minha aprovação (e pelos vistos a da maioria dos cidadãos portugueses, como é mais que sabido)
Portanto a pedra atirada clandestinamente contra quem desaprova a posição do PC não tem, neste específico ponto, qualquer sentido nem corresponde à realidade. Ninguém quer, prop~ee ou se lembra proibir o PC, coartar-lhe a liberdade de organização e acção, expulsa-lo da AR ou das Câmaras que possui. É o PC que se tem encarregado de lenta mas seguramente ir desaparecendo da vida política nacional, eleição pós eleição.
Uma segunda questão é a comparação dos dois campos em confronto. Lamento ter de dizer que nem o sr Putin é um fascista e muito menos o sr Zelensky , mesmo se em determinadas circunstâncias específicas e facilmente verificáveis, haja gente de extrema direita, ou meramente ultra-nacionalista a apoiá-los. A ambos! Claro que esse apoio é facilitado se o país em causa for o agredido. O chamado patriotismo é sempre o primeiro sinal. E não é por acaso que na URSS, depois do namoro firme e durável, com a Alemanha nazi, se entrou na era da “grande guerra patriótica” logo que a invasão se concretizou. Nessa altura até a quase clandestina Igreja Ortodoxa foi chamada a santificar a guerra da “santa Rússia” contra o inimigo alemão. Ou de como um regime ateu pôs em surdina o seu afã anti-religioso para melhor mobilizar um povo que nunca perdera a fé.
(este pequeno ponto é apenas para relembrar ou ensinar alguma comentarista que desconhecia este pormenor Desvantagens de ser novo e não estudar, não tentar perceber ).
Um terceiro ponto é o que toca a liberdade de informação: Basta abrir a televisão para notar que em todas as frentes de batalha ucranianas há nuvens de repórteres, de jornalistas. Basta tentar aceder às redes sociais para verificar que na Ucrânia se mantém todas ao invés do que se passa no país agressor que as eliminou rapidamente.
Ou seja, as situações não são iguais, semelhantes ou sequer vagamente parecidas.
A tentativa grosseira de igualar os dois campos também aqui falha miseravelmente.
Uma guerra nunca é uma cortês troca de tiros. Nunca! Porém alguma diferença há entre o espectáculo de centenas de corpos de civis a apodrecer nos territórios apressadamente abandonados pelo exército russo e o facto já noticiado pelo Governo ucraniano de um seu soldado estar a ser alvo de inquérito por ter assassinado um soldado inimigo que jazia ferido. Pode até acontecer que o soldado ucraniano seja ilibado mas, pelo menos, o Governo reconheceu o facto. Do outro lado, como se sabe, se vê, se ouve, nunca houve quaisquer abusos de militares. Os mortos são encenações, os roubos e as pilhagens são meras difamações e a invasão é uma simples operação especial.
Eu sei que estou a insistir em algo que mais cedo ou mais tarde cansará quem me faz o favor de me ler. Nem sequer sinto qualquer gosto ou apetência por me referir à guerra. Só que fingir que tout va bien madame la marquise me indigna mais do que é suportável.
Também sei que a Rússia nunca levou a bem o facto de haver na Ucrânia uma igreja ortodoxa autónoma (com a aprovação aliás das congéneres ortodoxias); que a Ucrânia tenha tornado a língua russa uma língua segunda, o que é natural dada a distribuição da população; que o país reivindique algo que desde a fundação do regime soviético é um dado político claríssimo, a saber, a existência de uma “república” independente da Rússia moscovita ou da Bielorrússia, facto aliás reconfirmado no fim da 2ª Guerra Mundial quando a URSS apresentou e conseguiu três nacionalidades como membros de pleno direito da ONU; como, depois de Gorbatchev, o império soviético implodiu, como igualmente morreu a tentativa da CEI para dar lugar a uma vintena de países unanimemente reconhecidos inclusive pela Federação Russa.
Fingir que isto nunca sucedeu, que foi imposto por inimigos internacionais, que ameaçam a Rússia, o país com o maior número de ogivas nucleares, e por isso afirmar que há sólidas razões para justificar uma guerra que já leva oito anos e que durante quase todo esse tempo foi ignorada pelo mundo quase todo, é agora a arma e o argumento de quem, fingindo-se equidistante, teima em considerar os dois lados igualmente culpados.
E ao fazê-lo legitima a agressão, critica os que se indignam, mostra o parco valor em que tem as instituições internacionais, o Direito e a Justiça. Apenas e só. Tudo o resto é fantasia, falácia e desrazão.