Estes dias que passam 733
De Vladimir Ilitch a Mikahil Sergueievitch
Ou
as desventuras do marxismo-leninismo
(com intervalo stalinista num fundo de gulag)
mcr, 31 de Agosto, 2022-08-20
Corbatchov nasce num dos anos terríveisda história quase sempre terrível da URSS. 1931 é eventualmente o pico da campanha contra os kulaks (camponeses ricos, ou seja camponeses que conseguiam produzir para o seu sustento e colocar o que pouco que sobrava no mercado). Estes, e respectivas famílias foram desapossados dos seus escassos bens e eliminados como classe e individualmente via deportação para outras (piores) regiões da URSS. Estima-se que centenas de milhares pereceram antes de chegar ao local de confinamento.
A esta primeira campanha seguiram-se duas medidas que acentuaram prolongadamente a crise agrícola: a obrigatória inscrição dos camponeses em kolkozes e sovkozes, criando uma nova espécie de servos da gleba muito semelhante à que subsistiu durante o Império. Estas medidas conduziram a dois anos de catástrofe absoluta, de fome que, por du aves terá feito um mínimo de cinco milhões de vítimas na Ucrânia e de mais alguns milhões no resto da URSS.
A estes anos dramáticos sucederam os anos de intensa perseguição política a tudo o que se assemelhasse de perto ou de longe (ou mesmo de muito longe) a dissidência. Os processos de Moscovo onde foi eliminada a maioria dos velhos bolcheviques, os membros das primeiras direcções do PCUS, a quase totalidade dos principais camaradas de Lenin. Foram também liquidados uns largos milhares de membros do Exército Vermelho o que mais tarde, no início da guerra teve desastrosas consequências militares.
Prtanto, e como se pode deduzir, Mikahil Serguievitch é já um puro produto do sistema soviético. Da educação soviética e pode, durante a sua adolescência, conhecer bem os desastres da guerra, o fim (??) do stalinismo, os anos da guerra fria. Tudo isto no interior do sistema partidário e único. É um militante desde os anos de juventude, passados no Komsomol. Graças a isso, à origem de classe, e ao seu esforço e inteligência, licencia-se e começa a sua actividade dentro do PCUS exercendo cargos políticos de crescente importância. Tem ainda por cima a ajuda de uma mulher inteligente de espírito arejado que mais tarde se tornará um dos trunfos do Gorbatchov dirigente supremo da União Soviética.
Quando acede ao poder, já é um quase ET na política russa. Também é verdade que sucede a uma série de caáveres políticos, saídos de um mausoléu ainda mais fechado do que o de Lenin. A URSS que herda está esgotada financeiramente, atrasada numa série de campos, com uma população que vegeta entre a indiferença e notória falta de esperança no futuro. À volta os satélites desmoronam-se vagarosamente. É a Polónia com o Solidarnosc, a Tchecoeslovaquia com a primavera de Praga esmagada mas nõ esquecida, a Hungria que tenta pequenas reformas, uma Roménia onde o Conducator, a Estrela do Danúbio leva a cabo uma política indescritível e se ceva na população assustada. E há a tremenda sombra da derrota no Afeganistão, o slogan “Wir sind das Volk” que ecoa por toda a DDR. Nada corre bem nooriente que se presume de vermelho. Aliás o vermelho que existe é mais de sangue que de amanh\as que cantam.
Junte-se-lhe o cisma sino-soviético ue é algo que rebenta com internacionalismo proletário e com o movimento comunista internacional.
Convenhamos, Gorbatchov recebe um presente envenenado salpicado de dissidentes cada vez mais audaciosos, mais numerosos e ...mais escutados.
Inaugura duas políticas também elas audaciosas sobretudo no deserto de ideias em que caíra o “marxismo-leninismo”. Por um lado tenta reestruturar uma sociedade, uma economia e uma cultura envelhecidas e sem perspectivas de futuro. Por outro, abre a porta à discussão pública e à troca de opiniões com a glasnost. Não é “uma revolução na revolução” (para citarmos um título importante que analisava outros comunismos, mas é uma violenta reviravolta no conformismo.
O problema é que, eventualmente, isso teria sido importante nos tempos de Krutschov, vinte anos antes. Nos anos 80 vinha tarde e sabia a pouco.
Todavia, e pela primeira vez, Gorbatchov teve no Ocidente quem o escutasse e quem se dispusesse a tratar com ele como nunca antes acontecer. E mais um problema: torna-se mais popular fora do que dentro da URSS.
Os primeiros a aproveitar este novo clima, esta forte distinção política foram os países satélites e, em menor grau (mas com maiores consequências) os países bálticos anexados pela URSS durante os anos da 2ª guerra.
E é aqui que começa a derrota política de Gorbatchov. A URSS implode minada pela secessão e pela resistência interna e conservadora.
Até o aliado mais fiel, mais submisso (e também o que mais dependia do Exército russo) cai com estrondo quando o muro abre uma milagrosa brecha. Convirá aqui lembrar que, na DDR as manifestações eram já semanais e multitudinárias. Às sextas feiras era certo: multidões alvoroçadas e cada vez mais ousadas saíam à rua, enfrentavam os Vopos, destratam a Stasi. Outros, e aos milhare,s fugiam para o Ocidente via Hungria e Tchecoslováquia Com a cumplicidade destes governos de países irmãos.
Gorbatchov era vitoriado pelos leste-alemães e o poder via isso com crescente indignação e maior pânico. O “bloco” socialista estava minado.
É difícil perceber-se Gorbatchov tinha uma clara consciência do peso das seus actos e das suas palavras mas de uma coisa estou certo: ele tinha uma certa ideia de liberdade que honrou até ao fim. Tentou dialogar com os bálticos (há extraordinárias imagens televisivas dele no meio de lituanos se não estou em erro que o enfrentavam. Poderia ter ocorrido um morticínio ( e de facto, na curta marcha para a total independência uma dúzia de cidadãos lituanos pereceram frente à polícia do regime ) mas essa imagem de um homem só que discute mereceria ser passada por uns bons momentos nas elevisões.
Gorbatchov caiu não só perante os conservadores russos (que serão os pais dos apoiantes de Putin) mas também perante exaltados modernizadores que, na senda de Yeltsin queriam mais sem perceber que isso concorria para a desagregação da URSS.
Provavelmente, as tentações independentistas e autonomistas sucederiam à mesma mas é quase certo que isso ainda demoraria um bom par de anos.
No entanto, o que se deve salientar é que, no plano económico a URSS estava em frangalhos. Um desastre absoluto que ainda hoje mostra alguns dos seus mais trágicos aspectos.
Tirando a China e o Vietname que mantem um partido comunista a dirigir o país e ao mesmo tempo inauguraram um capitalismo de Estado desenfreado e sem regras, o mundo dito socialista desapareceu. Aliás estava morto desde há muito, soque a certidão de óbito demorou anos a ser passada.
A História já se esqueceu de Brejnev, Andropov Ielsin e tutti quanti mas curiosamente Gorbatchov que ontem morreu permanece na memória de todos inclusive na raiva dos seus adversários.
Ganhou merecidamente o prémio Nobel da Paz. Algum dia, assim o espero, dedicar-lhe-ão uma estátua, uma praça, um jardim um nome de rua no seu país agora envolto nas trevas de uma guerra que ele condenou mesmo se tivesse afirmado a sua concordância com a anexação (e só com esta) da Crimeia, essa região “ensopada em sangue russo” (por acaso em sangue tártaro e ucraniano pois foram esses sobretudo os que combateram nessa península desde os tempos de Potenkine ou da Carga (estúpida) da Brigada Ligeira)