Reflexões sobre os cordões sanitários
mcr, 24-9-22
Chega pra lá
Eu não quero mais te ver
Já cansei de te aturar
Maria Creuza, “chega pra lá”
Um texto do meu colega e amigo JCP aqui em baixo, sobre o PSD e o Chega, dá-me oportunidade para revisitar algo que parece estar longe dos focos político-partidários.
Antes de entrar na questão, convirá explicar que nunca votei à direita do PS, e apenas uma única e solitária vez votei à esquerda deste partido, mais concretamente numa europeia e a favor do BE (por lá constar como candidato Miguel Portas, pessoa que eu sempre considerei culta, inteligente e eventualmente dialogante). Quando não encontrei razões para votar no PS, refugiei-me na abstenção mas, nunca por nunca, deixei de ir à messa de voto. Andei demasiados anos a lutar pela democracia, pelo direito de votar, fui mesmo, em 1969, fiscal da oposição numa eleição (e obviamente ganhei mais um processo na PIDE por esse feio acto). Por duas vezes arrastei-me até à assembleia eleitoral carregado de febre para exercer o que eu julgo ser mais do que um direito, um dever!
Acompanhei desde os alvores de sessenta todas as votações europeias e americanas com especial incidência nas europeias mais importantes (França, Alemanha, Itália ou Reino Unido) nas americanas e no Brasil. Sempre pelos democratas e sociais democratas, claro que me davam a sensação de vingar a triste situação vivida até meados de 74.
Tenho assistido com algum pesar à queda de votação na esquerda liberal e social democrática na Europa e à ascensão da diferentes direitas umas mais ou menos conservadoras, ouras retintamente populistas e/ou saudosistas se é que este termo explicita com mais rigor aquela velha e não demasiadamente inteligente (e menos ainda critica) acusação de fascista.
A palavra fascismo serve para tudo e denota em quem a brande a torto e a direito um absoluto desconhecimento do que o fascismo foi. Na esmagadora maioria dos casos é mal aplicada, pior mesmo do que uma outra acusação que passa bem melhor na comunicação social, a de “comunismo”.
Em tempos que já lá vão, todos nós, os “oposicráticos”, os que viveram o Estado Novo (ou seja gente com mais de sessenta anos pois não conto a infância nem a adolescência como idades em que se percebe a res política) eram acusados de comunismo! Era fácil, permitia prisões a esmo, assustava muita gente e excitava outra tanta que via bolchevistas até na sacristia.
E agora vamos ao que interessa. HCP congratula-se por mais uma vez o Chega, 3º partido mais votado, não ter chegado à mesa da AR.
É verdade que não há norma constitucional ou regulamentar expressa que mande distribuir os lugares pelos partidos mais votados e dando sempre a presidência ao que ficou em primeiro lugar.
Mas também é verdade que durante dezenas de anos a prática foi essa e, neste capitulo de costumes constitucionais a coisa tem (ou tinha...) significado.
Pessoalmente, preferia que houvesse um regulamento claro porquanto este “cordão sanitário” à volta desse vociferante agrupamento populista e de direita imbecil e radical, me parece inadequado pouco legitimado pela tradiçãoo e pelos costumes constitucionais e pela prática pregressa da AR.
Pior, o boicote dá ao Chega uma arma: mostra-o como vítima do “sistema” (coisa que ele proclama a torto e a direito, como se sabe.
Depois, um lugar naquela augusta mesa que hoje se nega aos amigos do senhor Ventura será para futuro um lugar que se poderá negar a qualquer outra agremiaçãoo partidária desde o BE ao PC ou a qualquer outro mesmo os actualmente maioritários se, porventura e à semelhança do que se passa em França ou Itália se evaporarem coisa que como se sabe ocorreu há já um largo par de anos em Itália onde nada sobra dos partidos socialistas com assento parlamentar, nem do PC (mesmo que uma pequena parte del, a melhor, ainda subsista na base do PD. A DC desapareceu igualmente e, convenhamos, os que tomaram o seu lugar são bem piores, bem menos democráticos e mais perigoos nas ligações à sub-sociedade civil que em Itália controla muito mais coisas do que em ualquer outro lugar.
Em França o PS esvaiu-se, o que dele resta, é um cadáver à espera de certidãoo de óbito ou encantado por cair na garra adunca e pouco recomendável de um aventureiro político capaz de tudo e do seu contrário (refiro obviamente o sr Melenchon, uma criatura que de vermelho apenas terá a gravata e de progressista ainda menos).
E entretanto, nestes dois países eis que a Direita pura e dura cresce, desabrocha, venceu os cordões sanitários e ameaça não só os respectivos equilíbrios nacionais mas também os internacionais. Vê-se que em matéria de cordão sanitário, a medida durou pouco e produziu, como o sono da razão, monstros!
Não falo de outras latitudes onde esquerdismos infantis (citemos por uma vez Lenin que, mesmo não o seguindo, convinha, pelo menos, perceber). Ainda há escassos dias os “democratas suecos” defenestraram uma primeira ministra decente, eficaz e social democrata. E como se sabe na Dinamarca sucede o mesmo, no reino Unido a parte mais cavernícola dos conservadores ganha terreno a todo o vapor.
Pessoalmente entendo que o Chega tem de ser combatido e vencido não por truques contabilísticos de votação da assembleia mas por políticas que lhe retirem a indubit´vel base de apoio que conquistou. Não que me apeteça ver um façanhudo cheguista sentado à direita de Santos Silva como não me alegraria ver um “russista” (amador e proclamador de outra ditadura, dita do proletariado sentadinho nesse local privilegiado que eles, todavia, consideram um antro da burguesia ).
Depois, e por mera necessidade de verificar cuidadosamente os factos, não vi, o actual líder do PPD apoiar mesmo que indirectamente a ascensão do Chega à Mesa. Mas posso ter sido míope ou apenas, por razões que acima deixei, não estive especialmente atento a tudo o que realmente afirmou o senhor Montenegro, esse mesmo que ontem fez um mini pacto com o sr Costa com o mudo testemunho do ministro que odeia as perninhas dos banqueiros alemães e que quer um aeroposto na margem sul do tejo ( relembro que ainda há pouco Cravinho, um homem probo, competente, acima de toda a suspeita, afirmava que tal situação para o futuro aeroporto era uma “saloiice”!)
Eu percebo que o meu amigo e colega de blogue não aprecie o espectáculo delirante, esparvoado mas perigoso das contínuas palhaçadas de Ventura. Eu ainda menos por ter na minha já longa vida experimentado durante mais de trinta anos gente parecida ainda que, espantem-se mais educada, mais civilizada menos uivadora e menos populista.
Porém, vivo em Portugal, sou democrata, creio no voto popular e nas suas virtudes pelo que , sem estados de alma (que a política deveria sempre evitar) , discordo do cerco trapalhão ao Chega. Creio que esse partido é apenas um balão soprado por múltiplos descontentamentos, alimentado sobretudo por votos de gente menos culta, mais empobrecida e em vias de se proletarizar. Basta ver a geografia eleitoral da ultima consulta para perceber onde o Chega progrediu e onde as promessas do Poder falharam. Do Poder e de certos contrapoderes como é o caso da alta de votos no Alentejo. Congratular-me-ei com uma eventual e inesperada derrota eleitoral do Chega, coisa para que, apesar de tudo, conto com o CDS libertado daquele rapazola pateta. Creio que ao PPD não interessa de modo algum um Chega como o que cá temos. Suponho que a Iniciativa Liberal não suporta aquele gestcular berrante dos venturas e venturinhas.
Mas, e já agora, vejamos se o Chega ao dividir votos à direita não deu uma ajuda , e das boas, a quem está do outro lado. O PS ganhou o voto útil à esquerda mas beneficiou do roubo de votos naturais aos antigos parceiros durante a troika!
Por umas contas de fraca qualidade que fiz o PPD perdeu à vontade oito lugares de deputado que não foram para o Chega ou não foram só para ele que beneficiou do naufrágio do CDS. É que nos círculos mais pequenos uns centos de votos roubados a um dos dois contendores mais fotes dão uma vitória ao outro... e aí o Chega fez, mesmo não o desejando(!!!???) o frete ao vencedor.
É por isso e só por isso que não entristecendo (bem pelo contário) com a derrota do Chega também não vejo motivos de tão expressa congratulação.
Houve, neste momento, uma mudança de paradigma na eleição da mesa da AR e isso pelos vistos apenas foi uma contabilidade de merceeiro. E, à luz do que vou vendo por esse mundo fora temo as consequências disso. Sobretudo porque esta votação é quase ad hoc e não perspectiva nenhum regulamento mais rigoroso quanto ao preenchimento dos lugares à mesa da AR.
Gostaria de acentuar que isto não é, nem será, um ponto de partida para uma qualquer polémica. O tema específico é menor. Apenas pretendo recordar que a luta contra o(s) populismo(s) e outros ismos se faz com políticas concretas que ajudem as pessoas a sair de situações sociais, económicas e financeiras deprimentes e vergonhosas para o século em que vivemos e para a dignidade cidadã que aspiramos para todos.
E só a Democracia poderá, creio, resolver, sem violência, o actual estado de coisas. Todas as outras maneiras de governar levam a maus caminhos e a consequências que não recomendo a ninguém. E espero que concordem que eu pelos meus primeiros e aventurosos trinta e três anos de vida, sei bem do que falo.
* Os leitores desculparão a citação de uma cantiga da Maria Creuza que eu conheci “mocinha” num espectáculo em Coimbra com Toquinho e o enorme Vinicius de Morais, Naqueles dias cinzentos, aqueles brasileiros, eram uma porta de salvação. Agora, e mais do que nunca, o Brasil precisa de algo do mesmo género mas as possibilidades parecem mais do que escassas...