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Porque é que as mulheres não hão de ser reacionárias?
mcr, 4-10-22
Quando eu entrei para a faculdade rapidamente me meti na Associação Académica e nunca mais perdi uma assembleia que em Coimbra , e no nosso tempo, se chamava “magna”.
Devo, entretanto dizer que entrei no mesmo ano em que os “democratas” reconquistaram a associação que durante longos onze anos fora governada pelos “da situação”, ou seja pelos “fascistas” , pelos monárquicos e genericamente pelos conservadores onde se incluía uma forte maioria católica ligada ao CADC (Centro Académico da Democracia Cristã, se não erro, uma coisa onde militaram Salazar, Cerejeira e contemporâneos ).
É óbvio que a nova direcção associativa teve pela frente a reacção conservadora e, naturalmente, os poderes públicos e religiosos. Neste último capítulo assumiam especial relevo os “lares” femininos que serviam de morada a centenas de raparigas universitárias (provavelmente uma maioria). Enquadradas pelas freiras, educadas quase todas em ambientes conservadores era natural que alinhassem quase todas com os vencidos pela rapaziada da “Oposição”.
As “Magnas” sempre à noite, no gélido pátio dos Grilos , duravam horas e, de certo modo, a nossa malta forçava a discussãoo de modo a que as votações importantes só ocorressem quando, vencidas pelo cansaço e em obediência às estritas regras dos lares a massa feminina, enquadrada por freirinhas estudantes, abandonava ordeiramente a local. Devo dizer, sem qualquer espécie de arrependimento, que foi assim que nos primeiros meses da nova Direcção Geral se obtiveram os primeiros votos favoráveis a uma profunda transformação da Academia e da prática associativa. Pouco a pouco a gens feminina foi-se libertando dos lares, das suas oblíquas regras e fortalecendo a nova situação académica. Muito se deve às primeiras dirigentes do “conselho Feminino” (e cito especialmente Eliana Gersão e Glória Padrão) bem como as raparigas que integraram sucessivamente as Direcções gerais da AAC e dos Organismos Autónomos. Enfrentaram tudo bem mais do que nós rapazes, foram apontadas a dedo, alvo de acusações miseráveis e mesmo de expulsões da Universidade (e cito de novo duas minhas especiais amigas Fernanda Dias e Margarida Lucas esperando que me desculpem fazê-las representantes de muitas outras que só a economia do texto justifica.
Fiz muitas dezenas de amigas nesses anos de vinho e rosas, de medo e esperança, de perseguição e solidariedade. Isso permite-me comentar algo que me irrita sobremaneira e que, no fundo é o seguinte: Um homem é eleito para um cargo político e, mesmo que seja de uma cor política absolutamente nos antípodas da nossa achamos natural a sua opção. Se for uma mulher, por exemplo, a senhora Meloni, ai Jesus, Maria José! ,que ela é fascista.
Eu não simpatizo com a criatura mas relevo como uma vitória civilizacional de enorme alcance político, ético e social, o facto de pela primeira vez a Itália, país bem mais machista que Portugal e Espanha juntos, o facto de ela ter ganho limpamente as eleições.
A criatura é claramente conservadora mas, a atentar nas suas declarações anteriores e posteriores à eleição rejeita a herança fascista e os tempos do presunçoso Mussolini (que por acaso começou como um furibundo redator de jornais socialistas!...).
E direi mesmo que, sendo o voto popular a única coisa atendível, esta eleição é um marco absoluto na “longa marcha” das mulheres italianas e europeias em direcção à igualdade cidadã e política.
É evidente que eu teria preferido ver as minhas amigas Luciana Castellina e Rossana Rossanda (entretanto morta) militantes do “Il Manifesto” serem eleitas como primeiras ministras. Todavia, a realidade é esta e “el horno no está para bollos” (desta feita cito uma madrilena, Maria del Coro, militante sem medo durante o tardo-franquismo que me apresentou a toda a “gauche divine” madrilena durante umas inesquecíveis semanas de Agosto-Setembro de 1975) .
Não chamo à baila os casos francês, alemão ou inglês onde mulheres de diferentes cores políticas já foram eleitas primeiras ministra. Cada uma delas, mesmo perdendo como Liz Truss, merece uma menção que tem muito a ver com a sua ousadia, empenho espírito lutador mais do que com o facto de serem progressistas ou reacccionárias.
Curiosamente, nesse momento, estou diante de uma televisão que mostra, mais uma vez, o recentíssimo congresso unanimista do partido comunista chinês. É preciso ter olho muito atento para discernir naquela multidão de congressistas todos iguais, todos frenéticos no aplauso, uma mulher. “Aparent rari nantes in gurgite vasto”, se é que me permitem citar Virgílio...
Tenho a certeza de que veria algo muito semelhante se o amontoado de cortesãos comunistas fosse na Coreia do Norte. Aqui, os aplausos são ainda mais exuberantes, vistosos, prolongados mas há uma razão para isso: o regime coreano é uma espécie de monarquia que não diz o nome e que já vai na terceira geração.
Eu confesso, muito à puridade, que não sou exactamente um feminista. Nasci noutro tempo e portanto a minha especial atenção pelos direitos das mulheres deriva mais de um esforço para me educar política e eticamente do que algo de natural bebido com o leite materno ou encontrado nos jogos de futebol ma praia ou na aprendizagem difícil mas exaltante de lançar para a roda um pião.
Todavia, discordo tanto de um cavalheiro radical como da sua congénere feminil vá o seu radicalismo para onde for mas percebo que o eclodir de uma mulher na praça pública e política é dez vezes mais difícil e menos toleado do que o aparecimento de um homem na mesma ribalta.
Da mesma maneira que assisti à lenta mas segura, animosa e forte progressão do poder feminino na academia que me formou a pontos de já ter por muitas vezes celebrado a extraordinária energia da minhas companheiras, amigas e colegas de Coimbra 69 a quem muito se deve na vitória da greve contra os poderes universitário e político. O pequeno grupo de 1960 cresceu e tornou-se na arma essencial da resistência estudantil em 69- Num texto que por aqui circula com o título “a dupla gravidez de Amélia B” falo dessas raparigas a quem muito devo. Procurem-no, caso queiram, e leiam-no. No essencial é a história de uma rusga da pide a minha casa e o modo como, nas barbas da polícia, meia dúzia de jovens mulheres conseguiu esconder umas dezenas de publicações clandestinas debaixo de uma delas que estando grávida se fingiu muito mal e se deitou no sofá tapada com uma enorme manta.
Fique claro que não vou à missa da Sr.ª Meloni mas isso não me impede de considerar absolutamente histórica a sua eleição à frente de dois comparsas que não passam mesmo disso (os Srs. Salvini e Berlusconi ) e que, tudo o indica não farão farinha com a primeira ministra que já mostrou, sem escarcéu nem timidez, que vinha ali para mandar.
Só isso já me dá um excelso gozo...