au bonheur des dames 578
Sempre há um poço sem fundo: o da estupidez
mcr, 11-3-23
Escrevi aqui que não há poços sem fundo. Referia-me aos dinheiros da cultura que são sempre a fundo perdido mesmo quando não tem essa finalidade.
Todavia, desta feita, lá termos que referir a nova censura livresca que é um dos pontos altos (eu diria baixos, muito baixos) da nova “cultura” (se é que esta palavra pode ser usada...)
Agora, pelos vistos, as sensibilidades do politicamente correcto, ficam aflitas com alguma expressão lançada num romance. Temem que isso ofenda uma qualquer minoria. Há uns anos a vítima da nova censura cretina foi “Hukleberry Finn” desse extraordinário Mark Twain. A questão, na altura era a palavra “nigger”, expressão injuriosa que em português, ao contrário do que vi escrito, pode perfeitamente ser traduzida por “escarumba”. Parece que o tradutor português só sabia a palavra “preto” que obviamente não tem a mesma densidade ofensiva. De todo o modo, Twain usou propositadamente o “nigger” pois só isso traduzia correctamente a situação descrita no Sul.
Uma luminária americana, seguida por outras de diferentes nacionalidades todas tão supinamente burras quanto a primeira, achou que isso ofendia a minoria negra (agora mais “correctamente” afro-americana!....). Como “cego” é péssimo quando se pode dizer “invisual” (!)
Até há pouco, a coisa não chegava a Portugal nem talvez à Europa. No entanto, a burrice (para citar enviesadamente o Professor Teixeira Ribeiro quando descrevia a inflação) “alastra como mancha de azeite”. E já aportou ao torrãozinho de açúcar.
Agora estão na berlinda palavras tão inofensivas como “feio” ou “gordo” usadas por Roald Dahl. Ao pobrinhas das crianças leitoras ao lerem isso devem sentir arrepios horrendos na espinha ...
Todavia, os previdentes editores, temerosos da ira de um leitor analfabeto e analfabruto, já “traduziram” esses termos por outros tão neutros como a água destilada que é ou era insípida, inodora e incolor.
Esta “moda” de cirurgicamente amputar palavras (mas virá o tempo dos períodos, dos capítulos e do resto, não duvidem) faz lembrar em mais hipocritamente o tempo m que os livros eram queimados (nem vale a pena ir mais longe: na Alemanha nazi, estudantes nazis fizeram gigantescas fogueiras só com autores contemporâneos. De todos porque ainda mais surpreendente só vou citar o autor de “Emílio e os Detectives” de seu nome Erich Kastner!)
Por cá a coisa foi menos brutal mas tentou ser igualmente eficaz. A Censura proibia os livros inconvenientes. Em boa verdade, alguns mereceriam o esquecimento do público apenas por mal escritos. Porém a operação censória dirigida por militares reformados e ignorantes não se preocupava com a qualidade, longe disso.
Claro que, em Portugal, graças ao paupérrimo estado da arte repressiva, havia uma conspiração geral par trocar s voltas à Censura e à polícia. Lembro-me, mesmo de livreiros (e eram bastantes...) que, `à cautela, escondiam grossas quantidades de livros que adivinhavam ser futuramente perseguidos. Aliás o mesmo se passava com os discos do Zeca Afonso e de outros. S vendedores, escondiam largas quantidades e tinham mesmo uma lista de fregueses prontos a comprar o material proibido ou em vias de o ser.
Ou seja, houve sempre gente que, com maior ou menos êxito, toureava os agentes da repressão intelectual. Direi mesmo que alguns dos meus amigos, e eu próprio, comprávamos qualquer coisa que cheirasse a proibido. Uma pequena editora que, com muitos outros amigos, companheiros e camaradas, fundei nos finais de sessenta (a “Centelha” ((“uma centelha pode incendiar a pradaria”, se é que alguém recorda “o Homem do Lena”)) tinha mesmo uma estrutura paralela de edição e salvamento de livros produzidos!
Não éramos os heróis de “Farenheit 451” (do admirável Ray Bradbury) mas, na medida do possível, traduzíamos, editávamos, distribuíamos e escondíamos os livros que, de resto, se vendiam como pãezinhos.
A vinheta deste folhetim reproduz um curioso livrinho (382 páginas) com o esclarecedor título “Romans a lir et romans a proscrire” da autoria de um sr padre pároco em Sin-le Noble.
O subtítulo, “ensaio de classificação do ponto de vista moral dos principais romances e romancistas da nossa época (1800-1908) com notas e indicações práticas”. O meu exemplar é da 4ª edição (!!!)
Traz 1280 autores (perigosos) e cerca de quatrocentas obras recomendadas (para meninas de 20 a 25 anos; paraos jovnes das “patronages”, para as senhoras mundanas; para os adultos ávidos de emoções ou, pelo menos, de sao realismo; e finalmente para os estudantes e letrados que dtem de estar ao corrente das matérias)
Consta que, numa sessão do parlamento da primeira república, um deputados (que se chamaria João Camoesas) este político discursou durante catorze horas ininterruptas porquanto estava-se à espera do comboio do Porto onde viriam deputados suficientes para ganhar uma qualquer votação. Dele alguém disse que podia não se lha admirar a eloquência mas tão só a bexiga.
Do mesmo modo, é mister respeitar este senhor cura que terçou uma tão longa batalha com mil e muitos autores e três ou quatro vezes mais obras .
Em seu abono, apenas posso dizer que ele não propunha a amputação de palavras, parágrafos ou capítulos mesmo se, no íntimo a criatura ansiasse pelo desaparecimento de tantos autores e obras. De certo modo, o futuro fez-lhe a vontade. Dos amaldiçoados resta um par de dúzias. E dos abençoados ainda menos
Sic transit gloria mundi....