Recordando os dias em que voávamos
mcr, 24-4-23
Lembrar algo em que participámos há praticamente 50 anos é algo que só acontece a quem chegou a esta idade. Digamos que já vamos rareando. Quem em 25-4-74 tivesse 18 anos e se interessasse pela coisa pública, andará agora pelos 67/68 o que já significa que está reformado ou à beira disso.
Quem como eu vem de outras guerras (as crises académicas de 62 e 69, em Coimbra) já arrumou as botas se é que ainda por cá anda.
De qualquer maneira, aqueles foram dias de vinho e rosas, planávamos a metro e meio do chão, não dormíamos e o mundo parecia aberto a tudo.
E é dessa rapaziada de 69 que embarcou alegre e rapidamente em todas as conspiratas que desaguaram em Abril, águas mil que queria falar.
Não para vir descer qualquer metafórica Avenida da Liberdade porque nós descemos e subimos essas ruas vezes sem conta, com a polícia atrás e muitas vezes à frente quando já estávamos embarcados nas carrinhas que nos havima de levar para os vários calabouços que a minha geração e eu próprio conhecemos.
Coimbra, dizia eu. Coimbra em 69, outra festa que marcou toda uma geração que “ousou lutar, e, espanto dos espantou, ousou vencer” se é que posso usar um slogan do quase esquecido mrpp. Convem lembrar que lá ousar lutar, ousámos mas nunca nos passou pela cabeça que iríamos vencer. Contra todas as espectativas foi exactamente isso que ocorreu, pela primeira e única vez na história das revoltas estudantis. Não vale a pena tentar, mais uma vez, explicar o facto pois mesmo a esta distância a coisa ainda parece do domínio da fantasia, coisa que dá muito na malta nova.
Apenas chamo a crise de 69 à colação porque no meu caso e no de mais muita e boa gente, aquilo criou laços fortíssimos e, melhor ainda, deixou em centenas de companheiros, colegas e amigos uma inquietação que se transformou em inúmeras acções, em grupos mais ou menos estruturados que nesses cinco anos de intervalo “pintaram a manta” contra o regime.
No caso que agora me ocupa, trata-se de recordar que o grupo eclético que, de certa maneira, conduziu a greve, se manteve mais ou menos unido malgrado o facto de, acabada a universidade, começada a vida profissional, nos espalhamos por vários sítios. De todo o modo, umas largas dezenas de companheiros de 69 continuaram a reunir-se, a conspirar, a tentar fazer coisas (por exemplo a editora Centelha que durou uma boa dúzia de anos e editou mais de duzentos títulos mormente poesia e política, claro, sempre com a polícia a meter o bedelho, a apreender livros, enfim o trivial na altura)
Ora, aqui no Porto, juntaram-se duas dúzias de “coimbrinhas” que naturalmente se encontravam, reuniam, conspiravam e recebiame enviavam mensagens de toda a ordem para outros grupos em Braga, Viana, Coimbra Lisboa, sobretudo. A polícia fariscava, recebia informações de uma filha da puta mulher de um dos nossos que, felizmente, era de uma pasmosa ignorância. (Mesmo assim ainda me acusou de profeta do bombismo durante uma imaginária reunião conspirativa em Cantanhede, terra que ainda hoje não conheço)
Cá, um dos centros ais activos do nosso grupo que nunca teve nome era o escritório de jovens advogados onde eu estava com mais cinco outros do mesmo tempo e mesma geração. Éramos todos advogados de sindicatos, tínhamos uma mão cheia de clientes estudantes que se metiam onde não deviam ee que defendíamos pro bono e para além disso cada um fazia o que podia por ajudar à festa que, em boa verdade, de festa nada tinha, pois o perigo estava diariamente presente.
Entre outas actividades, um dos meus antigos companheiros de estudo iniciou-me na “passagem de fronteiras” ali para os lados de Melgaço. Logo que fiquei mais experiente no esquema de levar gente para o outro lado, comecei fazer as passagens sozinho pois como qualquer leitor percebe o risco de ser apanhado ou pressentido como passador é muito mais quando há vários intervenientes.
À conta disso, nas vésperas do 25 A, mas já depois das Caldas da Raínha, um dos nossos colegas que prestava serviço militar no Porto e obviamente estava metido na conspiração, encarregou-me de preparar um grupo de pessoas que, caso o 25 A falhasse pudesse rapidamente levar os vencidos para fora do país.
Rapidamente, consegui reunir uma flotilha de entusiastas que poderia de um pé para a mão arrancar para o alto Minho onde eu os passaria por uma ribeira que dava pelo pomposo nome de rio Trancoso. Aquilo sempre fora local de contrabando, quem o conhecia era a Laurinda, mulher do Manel Simas, meu companheiro de estudo nos 4ºe 5º anos. A Laurinda além de bonita era intrépida mas cuidadosa. Ela própria também tinha a sua freguesia de fugitivos, aliás.
Reuni, portanto gente da máxima confiança. Da geração coimbrinha alistaram-se entusiasmadíssimas a Teresa Feijó e a Maria João Delgado, na altura casada comigo. Depois, uma segunda formação de gente mais velha, os meus sogros Alcinda e Jorge Delgado com largo passado e cadastro oposicionista (o Jorge fora militante comunista com uma prisão em cima enquanto a Alcinda estivera metida no “socorro Vermelho”) Para completa a meia dúzia foram mobilizados o Rui Feijó (na altura membro da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos e hospedeiro frequente de fugitivos- entre muitos o Manuel Alegre- enquanto a Margarida sua mulher amotinava camponesas e artesãs da região criando uma espécie de sindicato. A Margarida mais tarde tornou-se uma ardente defensora de várias causas ecologistas ao ponto de em Espanha a chamarem “la abuela revolucionaria”)
Seis condutores e cinco automóveis era a minha pequena organização. Da malta do nosso escritório tirando o militar conspirador, o resto andava noutras e semelhantes actividades. Disso falava-se pouco justamente para não criar problemas se, porventura, a prisão acontecesse. De todo o modo, recordo que a Fernanda da Bernarda, antiga dirigente da AAC em 1969 tinha o sonho voluptuoso de ser a carcereira do general comandante da região militar. Ela e o Zé Ferraz, na altura seu marido, garantiram ao Zé Afonso, o nosso homem no MFA que a casa em que viviam tinha as melhores condições para numa das casas de banho interiores permitir a um general todas as comodidades que um preso de elevada hierarquia militar necessitaria!
A Joana Neves, outra jurista e hospedada em casa da Fernando e do Zé estava de serviço aos telefones porque padecia já de uma doença degenerativa que não permitia acções demasiado movimentadas.
Em boa verdade, ninguém preciso da minha brigada autobilistica. Todavia, na madrugada do 25 A A Teresa e a João, o Rui Feijó e eu não aguentamos estar em casa e fizemos horas de carro pelo porto, vigiando os quartéis e, decepcionados, não vislumbrando nenhuma acção, salvo o facto de as janelas de vários quartéis estarem iluminadas.
“A coisa está sobre ridas” murmurava o Rui, um veterano da “rede Shell”, e de variados episódios da resistência cultural para não citar o seu papel de hospedeiro de fugitivos políticos. Pose dizer-se que entre as quatro da manhã e as nove fomos a todos os sítios mas a únca acção que vimos nem era exactamente acção. Havia um pelotão de soldados de arma aperrada a cercar uma emissora. Ficámos confortados!
Os três restante membros da brigada, embora avisados do que se passava, entenderam continuar na cama a dormir. “Se for preciso vens chamar-nos mas para já aproveito e descanso”.
“Nervos de aço”, pensei . “Ora, ora, ele gosta é de dormir” respondeu a João.
Depois foi o que se sabe, ou se adivinha. A nossa patrulha recolheu a quartéis mas eu não desisti de ir meter o nariz na baixa. Pela tarde fui visitar o dr. Sá Carneiro Figueiredo, meu antigo patrono que depois do meu relato entendeu dever telefonar ao primo Francisco Sá Carneiro para novamente eu contar o que sabia. Finda a minha conversa, o velho senhor, pegou no telefone e disse (sic) “Francisco, agora o menino vai ser só política. Só política, ouviu?”
Além de excelente advogado, o dr. Sá Carneiro Figueiredo era um democrata de provas dadas e, como se vê, adivinhava o futuro.
Vai o folhetim para uma infinidade de pessoas, ou seja os sobreviventes de 69, e em pespecial a Teresa e a João.
E com uma comovida lembrança, para Alcinda e Jorge Delgado, Margarida e Rui Feijó. Naquele tempo, não eram muitos os exemplos de coragem . Claro que a 26 de Abril o país estava cheio de democratas de toda a vida para não falar do revolucionários de brotaram do solo fértil e empedrado das avenidas urbanas...