au bonheur des dames 598
Dar a volta ao bilhar grande
ou nem isso!
mcr, 30-5-23
Cresci numa terra abençoada por uma grande enseada, um rio e uma serra não demasiado alta que se prolongava por um cabo e protegia a praia dos ventos do norte.
Naquele tempo, a cidade vivia muito do turismo estival pelo que o seu centro estava pejado de cafés com esplanadas que se enchiam pelas tardes e noites. Alguns tinham mesmo pequenos palcos onde tocavam as jazzbands em voga naqueles anos quarenta e inícios de cinquenta.
Porém, o meu encantamento de menino eram as salas de bilhar onde cavalheiros disputavam longas, longuíssimas partidas de bilhar livre. E havia sempre um bilhar maior, de competição, com tabelas aquecidas onde era obrigatória a competição às três tabelas.
O fascínio desses anos de cuidadosa atenção ficou-me para toda a vida e resistiu mesmo ao aparecimentos dos bilhares de snooker que entretanto fizeram quase desaparecer os “livres”.
Há uns anos, resolvi dar a mim próprio como prenda de anos um bilhar ( o que está na vinheta) pois a sala de estar dava para isso e muito mais.
O meu desaparecido e querido amigo Manuel Sousa Pereira, escultor, marceneiro, homem para todo o serviço de mãos foi convocado para parceiro mas, uma doença ocular impediu-o de continuar a jogar. Mal eu sabia que outra maleita semelhante me havia de atingir e tornaria o bilhar numa presença acusadora do inicio da velhice sem apelo nem agravo. O bilhar pede precisão, pontaria, bom olho e, já agora, inteligência e muita geometria aplicada. A pontaria e o olho deram sinal de si, a inteligência deu para perceber que assim as coisas já não funcionavam e chegou a altura de, muito pesarosamente, me desfazer daquela peça que, pessoalmente, acho bonita. Uma amiga minha, acrescentava que aquilo dava “estatuto” e “qualidade” a qualquer “boa” casa.
E comecei a tentar vender o bilhar. Não fiz demaiao esforço porquanto, logo ao primeiro contacto, um amável comerciantede bilhares me desenganou: que os bilhares livres já não tinham procura! Agora ó os snookers e ”mesmo esses” (tom desolado...) tinham uma saída discreta.
Entretanto, apareceu alguém interessado. Ao ver o bilhar jurou que era mesmo aquilo e ter-se-á desfeito em elogios e entusiasmo. Todavia, láfoi murmurando que a vida, os estudos dos filhos, patati, patata, enfim a choraminguice habitual. Em vista disso, e porque vinhm recomendados por pessoa amiga, propus-me oferecer o bilhar desde que o retirassem daqui a expensas deles. Ou seja, teriam deprocurar uma empresa de bilhares que desmontasse e voltasse a montar a mesa porquanto, não só aquilo é pesado como obriga mesmo a alguma técnica que só as casas fabricantes sabem utilizar.
E fiquei à espera que se concretizasse a trasfega. Um inteiro mês sem novas nem mandados! Ao fim desse tempo, consegui que alguém comunicasse cm os eventuais beneficiários da minha generosidade e, com já previa, o entusiasmo esfumara-se ou a falta de dinheiro para a remoção do bilhar tornara a doação impossível.
Hoje, tirei-me dos meus cuidados e consultei uma empresa fabricante (e vendedora de bilhares. Virão cá desmontar o bilhar e transportá-lo para a cave do prédio onde ficará a aguardar melhor sorte.
A mesma empresa informou-me que há alguma procura sobretudo para um bilhar no estado (“absolutamente impecável”, sic) do meu. Ao que acresce a oferta do candeeiro específico, do carrinho de baixo, e de várias outras peças assessórias bem como de uma cobertura.
A CG jurou ter encontrado nesses sítios internéticos que frequenta de ofertas de bolhares a preço bastante simpáticos para um eventual vendedor. A empresa que cá virá ofereceu-se para ficar com o meu contacto” em carteira para o que eventualmente aparecesse. A minha fé é nula ou perto disso. Nunca fiz grandes negócios, aliás nem sequer os tentei.
Limito-me a constatar o avanço da idade, ao galope da velhice, a perda gradual das coisas que me alegravam.
De certo modo, perante o inexorável avanço do tempo, pouco mais me resta do que, num outro tempo, se chamava ir dar uma volta ao bilhar grande.
Estou a caminho...