estes dias que passam 812
Iluminados/as, como de costume
mcr, 4/7/23
“Vamos ver o povo
Que lindo que é
Vamos ver o povo
Dá cá o pé!”
(Mário Cesariny de Vascncelos)
Lembrei-me de Cesariny ao ler mais um texto de uma criatura que, a falta de estado novo puro e duro (que nunca conheceu e jamais compreenderá), se vê a si própria como uma heroína se uma inexistente revolução e porta voz de um exercito de sombras imaginado.
Este tipo de criaturas, órfãs de uma época heroica que nunca viveram, atolados no dia a dia burguês de uma democracia que já leva quase 50 anos e, por isso, parece chata e rotineira, logo que deparam com um conflito em qualquer parte do planeta (mas de preferência longe do sítio que todos os dias palmilham) entram em órbita. Neste momento é a trágica morte de um adolescente magrebino na coroa de Paris. Que estupidamente entendeu passear-se de “Mercedes” (presumo que roubado) numa zona reservada a autocarros. Tal facto, já de si incongruente, despertou a curiosidade da polícia que mandou parar o veícuo. Por razçoes que se desconhecem não só não parou como por eventual e natural inépcia ou falta de experiência docondutor foi embater num poste antes ou depois deste ser atingido por um tiro que ”apontado para a perna” (!!!, arre que desculpa tão imbecil...) o atingiu no braço e depois no peito.
Não vou qualificar a acção do polícia mesmo se me espante com a sua “falta de pontaria” se é que a falha não será outra e bem mais grave e criminosa.
Atá à data, depois de vários dias de manifestações ultra-violentas, não se registou mais nenhum “assassínio” policial muito embora a dimensão das desordens tenha atingido proporções gigantescas.
De resto, e justamente por isso, começaram a ser visíveis contra mamnifestações (até agora absolutamente pacíficas) de cidadãos que começaram a perceber que a morte do adolescente é apenas um vago pretexto para a acção de grupos violentos que pilham, destroem, incendeiam tudo o que lhes aparece à frente.
Quem viveu os últimos sessenta anos lembrar-se-á de toda uma série de episódios que aproveitando as ondas de contestação dos anos sessenta acabaram no mais puro terrorismo (“action directe” em França, “rote armée fraktion” na Alemanha federal, “brigate rosse” em Itália sem falar na vizinha Espanha onde o “franquismo” justificava todos os excessos e num punhado de atentados tardios e infames em Portugal já depois do 25 de Abril)
- Note-se” e que neste último caso nunca houve castigo dos responsáveis mesmo depois de identificados e postos à disposição da justiça. Sobre as vítimas caiu, com o apoio das autoridades e o silencio cobarde dos “compreensivos” comentadores da época. Tivessem os actos sido praticados pela Direita e a gritaria ainda hoje se ouviria, ou pelo menos os seus ecos.
Deixemos, porém, esta singularidade ideológica nacional para outra altura e vejamos como o actual resultado da “justa cólera popular” tem sido dramático para a vida das comunidades de onde surgiram as hostes manifestantes. O relato temendo de estragos (escolas incendiadas, equipamentos colectivos, transportes urbanos, comércio pilhado e destruído...) faz temer cidades dormitório ainda piores, ghettos racializados ainda menos atraentes (se alguma v o foram), mais miséria, menos serviços comunitários, piores transportes, enfim um desastre.
E, já que se fala de racismo, estrutural ou não, é previsível que a situação piore, que a direita radical prospere em votos e mandatos que a oferta de empregos diminua pelo menos para todos quantos pareçam de um modo ou de outro estrangeiros, de cor ou religião diferente.
A nível europeu, húngaros polacos, búlgaros eslovacos mais e mais se negarão a acolher emigrantes asiáticos ou africanos, amparados nas reportagens que lhes chegam de França.
E nesse país que, curiosamente, foi sempre um porto de acolhimento para estrangeiros de toda a espécie, a situação destes tenderá a ser mais periclitante, o acolhimento menos generoso e obviamente as forças da ordem menos tolerantes se é que alguma vez o foram.
Todavia, as madames progressistas, as compreensivas sobretudo quando tudo se passa longe, essas continuarão a espetar o dedinho acusador, a augurar amanhãs que cantam trazidos pelos incendiários, pelos que saqueiam, por aqueles em quem elas, estrabicamente, veem os anjos anunciadores da revolução, ão, ão.
Eu, por razões óbvias e históricas não estimo especialmente a(s) policia(s). Conheci cárceres vários, por demasiado tempo, senti nos lombos cacetadas portuguesas, espanholas, francesas e italianas (consegui com sorte, muita sorte, evitar as alemãs) , pratiquei, sem nenhuma vontade, o “sono” e a “estátua” no último andar da António Maria Cardoso, vi alguns empregos serem-me proibidos, escritos censurados enfim o trivial, o normal, o habitual dos anos 60 a 74 quando já adulto me defrontei com o Estado, o Regime e as ditas polícias que prolongavam os seus inúmeros braços por uma sociedade civil medrosa, cobarde, silenciosa e, finalmente conivente com a “Situação.
E vi, “claramente visto”, muito progressista ruidoso e apocalíptico, vergar à primeira ameaça de bofetão, “falar” pelos cotovelos, logo na primeira hora da verdade, diante de agentes que os desprezavam. E li, sobre mim, em autos que estão abertos à curiosidade pública, na torre do Tombo, choverem sobre mim, as mais espantosas acusações incluindo a de ser adepto do bombismo, da luta armada (logo eu que nem um canivete decente sei usar) e de estar mancomunado com a fina flor da agitação estudantil internacional.
Dessa fama não me escapei mesmo depois de licenciado e longe da universidade. Advogado de sindicatos, defensor pro bono de presos políticos para além de outras actividades mais discretas nas fronteiras por onde “passava” desertores e “desafectos ao regime”, só parei no dia 25 de Abril depois de uma noite em sobressalto, no pequeno apoio à conspiração juntamente com muitos companheiros, amigos e camaradas de anteriores carnavais políticos.
Perdi ou ganhei quinze anos da minha vida num labirinto de raiva, combate, punhos cerrados, boca fechada à polícia e esperando algo de melhor. Sei que isto, esta vaga democracia liberal, não é um paraíso celestial mas olhando para trás, não há comparação possível. Não sei se, enquanto privilegiado vivo melhor, mas não tenho quaisquer dúvidas que “isto” mudou imenso e para melhor, muito melhor. E neste melhor está a vida dos mais desfavorecidos, dos meninos com quem fiz a escola primária, dos que nessa altura não sabiam o que era um sapato (e algumas , bastantes, vezes, um tamanco), dos meninos que não comiam manteiga, menos ainda marmelada; dos que usavam sacas de serapilheira para trazer livros, cadernos, lousas; dos que tinham por destino serem tripulantes de uma bateira, uma lancha, por vezes uma traineira, excepcionalmente um lugre bacalhoeiro. E quando não era assim, o seu destino era a mina de carvão ali ao lado. No fim da minha quarta classe fui para o liceu. Sozinho. Apenas outro menino, o João SMA foi para a Escola Industrial e acabou como desenhador, mestre de trabalhos na mesma Escola, e fez mesmo pequenos projectos para casas lá na terra. Dos restantes fui perdendo a pista inclusivamente de um que chegou à Armada e foi cozinheiro no navio almirante!!! Comi feita por ele a mais memorável caldeirada da minha vida. Quando lhe agradeci, respondeu-me que fora o meu pai quem ajudara a sua mãe a parir os dois irmãos mais novas e que isso ninguém na família dele esquecia.
É daqui que eu venho, de uma terra entre serra e praia, desafiando o mar que, tantas vezes, “é um cão”. Deste povo sofrido cujos filhos e netos vão calçados para a escola, sonham ser médicos e juízes ou capitães de navios de longo curso que não ém vão que aqui se nasce.
É por isso que quando leio as parvoejadas desta gentinha muito “prafrentista” logo me vem mais do que a indignação, a cólera ou um imenso nojo.
Pobre adolescente Nahel que pouco teve na vida, curta e estúpida, mas que não merecia ser vingado por quem saiu para a rua e menos ainda por quem, ao longe, puxa do computador para explicar o inexplicável, para falar do que desconhece .