o leitor (im)penitente 273
Duas épocas
(1921-1974)
Que diferença!
mcr, 27-9-24
A velhice é uma doença, assevera a minha Mãe que vai nuns garbosos 102 anos (isto de garbosos diz apenas respeito à cabeça que no resto as coisas não estão especialmente famosas_ os olhos atacados pela mácula que ela nunca tratou, os ouvidos a depender do que ela chama os ouvidores, ou seja os aparelhos que a incomodam, irritam e saem do sítio quando mastiga; os pés "gastos" mesmo que a excelente Senhora ainda palilhe a casa toda num afã lento que a cansa mas não a demove. tudo isto junto à inabalável decisão de não querer ter ninguém em casa durante boa parte do dia, melhor dizendo entre as cinco da tarde e as dez da manhã. Nós tentamos convencê-la mas ela responde que ainda é senhora dos seus actos e decisões e que ainda não precisa de uma ama seca! ...)
Eu que, começo a suspeitar que lhe herdei a maleita ocular e a dureza de ouvido que começa a dar sinal que já não tem a agudeza de outros tempos, não vou tão longe mas consinto em dizer que a velhice é uma valente chatice. Faz rima e é verdade sobretudo quando nos damos conta da lentidão com que levams a cabo tarefs que dantes se faziam "numa fervurinha".
A leitura começa a cansar-me se insisto muito e eudantes era criatura para ler em qualquer sítio, durante horas a fio. Agora, preciso das lupas electrónicas, de luz forte se apenas me fio nos óculos. E sorte tenho porquanto, se me falta a lupa milagreira na altira da bicae do jornal ou há luz forte na esplanada ou tenho de me limitar aos títulos da gazeta!
Agora começo a compreender melhor o Jorge Luís Borges, esse escritor portentoso (e porteño), porventura um dos maiores do século passado que sobretudo tinha uma cultura imensa e uma memória prodigiosa
No que toca, começo a rodear-me de caderninhos e papéis avulsos onde anoto tarefas ou apontamentos para o dia a dia, blog incluído. Porém, o que antigamente era uma escrita legível foi-se transformando numa espécie de linear B , uma série de gatafunhos que, volta e meia, não consigo decifrar!
rudo isto vem a propósito de um par de livros adquiridos recentemente e especialmente de duas obras de pequena dimensão: "A noite sangrenta (João Miguel Almeida, Manuscrito ((grupo Presença)) 2024) e "A revolução do 25 de Abril" de José Medeiros Ferreira, Shantarin, 2024. redição de "ensaio Histórico sobre a revolução do 25 de Abril"
O Zé Medeiros Ferreira, meu amigo desde o º(e único) Encontro Nacional de Estudantes, Coimbra 1961, foi um dos mais brilhantes dirigentes estudantis dos sessentas, aliás de 62 e mais tarde viu-se forçado a exilar-se . Fez parte do grupo da Suíça e só regressou depois do 25 de Abril. Foi também um dos mais destacados poííticos da primeira fase da Democracia e um ensaísta de reconhecido mérito Deixou um par de pbras que ainda hoje, uase 50 anos depois, se lêem com proveito e, acrescento eu, prazer pois escrevia bem.
Esta reedição teve o apoio de alguns historiadores de reconhecida competência que enquadram um par de aspectos que com o tempo merecem agora comentário discussão. Do que, em tempos tinha lifo, e já lá vão largos anos, fiquei com a ideia de um texto inteligente e original e, de certo modo, muito contra a corrente. Irei de novo lê-lo mas apresso-me a chamar a atençao para o livro, quanto mais não seja pelo facto de durante largos anos a produção teórica dos nossos políticos no activo não merecer atençao e menos ainda comentário dada a pobreza manifesta (incluindo a estilística...) que demonstram.
Com o Sé (e também com a Maria Emília Brederode, sua mulher na altura namorada) ocorreu nesse 1º´ENE, algo que só muito mais tarde terá tido a sua pequena importância. Estávamos os três à conversa na Praça da República, em Coimbra à espera do início dos trabalhos quando um agente da PIDE nos abordou dando ao Zé e Mªa Emília ordem de imediato regresso a Lisboa. Lá explicaram que teriam de ir buscar a sua bagagem à sede da Associação Académica e com a minha ajuda para lhes indicar o caminho, recolheriam os pertences e abandonariam a cidade. Claro que nada disso aconteceu e só partiram no dia seguinte. Nunca mais me lembrei desse caso até verificar que um dos 14 processos que a PIDE me dedicou vinha toda essa aventura "provando-se assim a minha perigosidade de elemento desafecto ao regime e de conluio com agitadores lidboetas". Como só fui à Rorre do Tombo à procura do meu miserável cadastro, já não tive oportunidade de informar o Zé desta singular jornada oposicionista em que ambos coincidimos.
O segundo livro de que quero dar notícia é uma descrição detalhada e recentísima do singular caso da "camioneta fantasma" que na violentíssima noite de 19 de Outubro percorreu Lisboa, raptando políticos adversários do partido Democrático. Foram assassinados três importantes republicanos, antónio Granjo ex-primeiro ministro de um dos 51 governos dessa época caótica, Machado dos Santos o herói da Rotunda e o verdadeiro fazedor do 5 de Outubro e Carlos da Maia, companheiro do anterior e elemento fundamental na insurreição da marinha de guerra.
Terá havido mais mortos, para além de gente espancada, maltratada ou meramente ameaçada.
Este episódio infame nunca foi bem explicado e, sobretudo nunca se chegou a conhecer os mandantes da sinistr tarefa. Para a história ficou um capanga violento conhecido como o "dente de Ouro2, marinheiro ou arsenalista que foi preso mas que nunca denunciou os seus verdadeiros chefes.
A história dos agitadíssimos 16 anos da 1ª República regista um numero impressionante de violências de toda a ordem, desde atentados bombistas, assassínios, ataques a sindicatos e a jornais s, golpes de Estado, perseguições religiosas e fraudes eleitorais. Aliás convém recordar que na mesma época, e por essa Europa fora, os tempos não eram também especialmente pacíficos mesmo se Portugal se tenha destacado, melhor dizendo antecedido
De todo o modo. a 1ª República já estava agónica em 1921 .A "revolução" sidonista, o assassínio do Presidente Rei já tinham dexado marcas profundas na destruição das instituições e revelado o pouco apreço das milícias radicais lisboetas pelos governantes em particular e pela classe política em geral. A instituição militar , depois da fraca figura demonstrada na Flandres e nas colónias, dedicava-se com etusiasmo a hipóteses de intentonas quando não assistia à ivasão de civis nos quartéis. Estes desconfiavam da oficialidade e esta pagava na mesma moeda e quando era chamada julgar militares sediciosos ou dados como tal transformava os processos em caricaturas e exculpava os oficiais do quadro de todas as formas e feitios.
Acrise financeira campeava, o país não tinha crédito externo decente e tudo prenunciava uma crise que se tornou evidente com o 28 de Mio cinco anos depois. Vale a pena lembrar que o sr general Gomes da Costa foi tranquilamente para Brga, montou num cavalo eventualmente branco e foi descendo do Norte lentamente de modo a permitir que todas as guarnições militares se fossem rendendo e juntando a essa marcha patétic. Uma vez chegao a Lisboa, passou a pena aos reestantes conspiraores e assumiu o poder. Depois foi o que se viu: um cavalheiro de Coimbra, misógin e deconfiado, puro prosuto da ruralidade e da sempre reaccionária faculdade de Direito foi tomando paulatinamente o poder, abençoado pela Igrej e, pior, por uma esmagadora maioria de cidadãos que fartos das confusões apenas queria um poder forte que os livrasse dos sobressaltos que tinham passado durante quase década e meia.
Todavia, o livro que recomendo não vai tão longe nem era esse o seu fito. Retrata tõ só um par denoits infames e selvagens que produziu várias vítimas mortas à ordem de aguém que até hoje se desconhece. As três principais vítimas dessa camioneta fantasma eram o que se poderia chamar "republicanos modeados" que se opunham aos "democráticos" nome dado às facções nem sempre unidas que genericamente se reclamavam de Afonso Costa. Representavam na desolada paisagem política lusitana, uma certa Esquerda que, todavia, n\ão via com bons olhos as organizações sindicais, sobretudo a CGT anarco-sindicalista, nem tinha a anção das elites intelectuais democráticas, por exemplo o grupo Seara Nova.
Vale a pena ler o que sobre este acontecimento se escreve na "Ilustração Portuguesa" um suplemento vistoso e recheado de fotografias do "século". ao longo de uma boa dúzia de anos foi comprando e juntando os 947 fascículos semanais desta publicação que desapareceu em 1924.
E é, justamente da "Ilustração Portuguesa" que retiro a vinheta que acompanha este post (Il . Port., nº 821 de 12/11/1921) Obviamente os númerosa anteriores estão recheados de fotografias, artigos e declarações sobre este crime.