Diário Político 40
Se S. Bento fosse um campo de futebol e o Senhor Primeiro Ministro um comentador desportivo de algum jornal de províncias, ainda se perceberia a rude elegância da apóstrofe. O futebol, quando não chafurda no escândalo continuado da compra de árbitros e na especulação de jogadores, tem direito a tiradas deste género, qualificado de “viril” por quem desculpa alguma jogada mais violenta, uma carga num adversário perigoso, um empurrão e meiguices semelhantes.
Todavia o Sr. Primeiro Ministro não estava num recinto desportivo, numa feira semanal, numa discussão à mesa de um “sueca” puxada entre quatro cavalheiros amigos que vão jogando as cartas segundo um rito antiquíssimo que pede berros ao parceiro, desafios aos adversários, uma piscadela de olhos, vá lá uma canelada. Depois, acabado o jogo, vem uma garrafa de bom tinto (Mouchão nunca, a pedido de uma senhora brasileira e médica que nos frequenta o blog e não permite consumo de álcoois de qualidade na sua ausência!) umas fatias de presunto recém cortado, alguma rodela de salpicão e pão que acompanhe. E a zanga da jogatina logo se desfaz porque, como bem ensinava o imortal Terence Reese (a propósito do bridge mas a regra pode alargar-se à sueca), o melhor de uma partida é no fim podermos insultar o parceiro. Faz parte do jogo.
Mas, como ia dizendo, Sexa não estava no futebol, nos touros ou numa sala fumarenta a bater a cartolina. Estava no Parlamento. A responder à Oposição. Como Primeiro Ministro de dez milhões de criaturas. E dizer que uma proposta de um senhor deputado do seu próprio partido, sobre questões que afligem a sociedade portuguesa, que estão na boca de todos, que concitam as criticas unânimes da opinião pública, é uma asneira pode ser deselegante. E mais deselegante se tal proposta já tiver sido retirada pelo proponente. Ou seja: dizer que a proposta “X” é uma asneira, sabendo perfeitamente que tal proposta já não existe, significa apenas uma tentativa de desqualificação do pacote de propostas entretanto mantidas pelo mesmo deputado.
E, já agora, quem é esse cavalheiro, esse engenheiro João Cravinho, alvo deste façanhudo substantivo?
Pois nem mais nem menos do que o mesmíssimo homem que o governo presidido pelo Sr. Primeiro Ministro entendeu ser o homem ideal para ocupar um alto e honroso lugar numa importante instituição europeia. Mas há mais: este deputado, autor da defenestrada asneira, foi Ministro em vários governos nos últimos anos, é apontado unanimemente como um distinto especialista, um homem de uma seriedade a toda a prova, um político que nunca precisou da política para criar um currículo invejável desde muito antes do 25 de Abril. E mais ainda: um homem de coragem que, com mais uma ínfima minoria da população portuguesa, se bateu pela democracia e pela liberdade quando isso significava arrostar perigos que o Sr. Primeiro Ministro nunca afrontou e de que não deve fazer a mínima ideia.
Os actos ficam com quem os pratica. E com quem silenciosamente os vê perpetrar e não se sente capaz de sequer se indignar, de dizer “alto e pára o baile”. É por isso que este blogger eleva aqui a sua fraca voz, perante um pequeno auditório, sem grandes esperanças que a sua atitude comova demasiada gente.
Convém para finalizar, fazer aqui o chamado registo de interesses: conheço o João Cravinho há mais de trinta anos. Sou amigo dele e honro-me da sua amizade. Não conheço nem me interessa conhecer o Sr. José Sócrates. A meu ver não honra o nome helénico que tem mas isso é outra conversa.
Estava este texto pronto quando li a notícia da morte do Professor Doutor Oliveira Marques. Nunca o conheci excepto por leituras. Tenho, todavia, uma dívida pendente com ele. Entre outros livros, a “História de Portugal” esse manual em dois volumes gordos saída ainda antes do 25 A. Curiosamente, tinha a ideia que estes dois volumes substituíam um outro gordíssimo também com o mesmo título e publicado meses antes mas já não me lembro. A “História...” de Oliveira Marques foi um acto de coragem e de cidadania, num tempo fosco em que, como acima disse, “apareciam raros navegantes no mar vasto*”. A comoção entre os meus amigos com o aparecimento deste livro foi enorme. Finalmente, uma luz ao fundo túnel. Finalmente uma História com H grande. E que vinha até ao consulado de Marcello Caetano! Um manual que nos permitia tentar perceber qualquer coisa no meio da louvaminha historiográfica geral. Obrigado Professor Doutor Oliveira Marques. Foi bom tê-lo lido nesses anos de chumbo e cinza.
* “aparent rari Nantes in gurgite vasto” Virgílio, Eneida, I, 118.