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Incursões

Instância de Retemperação.

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Estes dias que passam 115

d'oliveira, 25.06.08

efeméride

Foi o blog do João Tunes, um dos meus vícios diários, que o relembrou. Faz sessenta anos que Berlin foi bloqueada. Em poucas palavras o que ocorreu foi o seguinte: uma vez derrotados os nazis, a Alemanha foi dividida em quatro partes. O sector soviético ficava a leste e englobava a cidade de Berlin que, por sua vez, também estava dividida em quatro sectores.
O sector soviético ocupava também a zona leste da cidade e, curiosamente, a sua parte mais antiga e central (Mitte). Os três sectores ditos aliados não se distinguiam porquanto não havia quaisquer barreiras entre eles. As passagens para o sector soviético estavam relativamente guardadas mas em 1948 não existia nada que se assemelhasse ao sinistro Muro que depois se construiu. De todo o modo, o clima dentro da antiga capital do Reich milenário, que só durara escassos onze anos, era de cortar à faca. Por razões óbvias, e apesar das privações por que todos passavam, aqui ou no resto da Europa, os sectores “aliados” exerciam uma forte atracção e eram os preferidos da população. A guerra fria só ajudava a tornar mais forte esse sentimento e terá sido essa uma das razões por que Stalin entendeu proibir o trânsito terrestre entre a Alemanha Ocidental e Berlin. Com essa medida estrangulava economicamente a cidade e sobretudo cortava-lhe drasticamente os víveres e o carvão, essencial para o aquecimento durante o longo, frio e seco Inverno berlinense.
Todavia, os ocidentais, melhor dizendo os americanos (que eram quem tinha meios aéreos, combustível e logística) criaram uma ponte aérea que ainda hoje é um exemplo de organização e eficácia. Em Berlin quase que aterrava um avião a cada minuto. Aviões que traziam comida, vestuário, combustíveis, brinquedos para os meninos berlinenses (e isso foi um dos pontos importantes do programa) enfim tudo o que era necessário para manter uma aparência de vida normal na cidade sitiada.
Convém aqui relembrar os habitantes da cidade que não só se portaram com uma enorme calma mas que também rapidamente criaram sistemas de entre-ajuda exemplares. Os berlinenses são gente bem humorada e expedita.
A situação durou praticamente um ano e terminou surpreendentemente com o recuo dos soviéticos. Foram restabelecidas as ligações ferroviárias e por estrada, nos três famosos eixos de acesso à cidade.
Anos mais tarde, o Muro reeditaria, de certo modo, esta tentativa de isolamento da cidade.
Foi já nesse contexto que vivi em Berlin durante dois meses, em 1970. Vivia, aliás, num Studentenheim, em Wedding a poucas dezenas de metros do muro.
O ambiente, obviamente menos carregado do que o de 48, era todavia especial. As pessoas sentiam-se numa ilha em que um muro sinistro e ameaçador fazia as vezes de mar. Havia fortes restricções ao trânsito dos berlinenses e mesmo os estrangeiros tinham de se sujeitar a pequenas humilhações (e longas demoras) para atravessar o check-point Charlie, perto da Friederichstrasse. Nós, alunos do Goethe Institut, tínhamos por hábito ir de quando em quando ao “outro lado” para comer (era mais barato, sobretudo se se conseguia contrabandear os marcos orientais comprados nos cafundós do Zoogarten à taxa de quatro por um, ou seja quatro vezes melhor do que a taxa oficial da DDR que trocava os marcos um por um. Claro que havia o risco de se ser caçado na passagem da fronteira onde não era raro revistar as pessoas de alto a baixo. E disse para comer porque em Berlin oriental não havia nada que se comprasse. Ou melhor, o que havia era de tão fraca qualidade e tão feio que nem o preço por mais barato que fosse era atractivo. E quando digo que havia coisas para comprar convém explicar que eram poucas. Berlin oriental era, para qualquer pessoa com dois dedinhos de testa uma prova provada do falhanço do sistema “socialista” (era assim que os do leste chamavam à tremenda e ineficaz bagunça que tinham criado e que, dizia-se, era, apesar de tudo, a menos má de todo o bloco oriental. Quando uma vez, já regressado, me perguntaram pelas lojas de Berlin oriental apenas pude murmurar que me pareciam piores e menos fornecidas do que as do Buarcos da minha infância. Ou seja, em 1970, os berlinenses, habitantes da capital da DDR, farol da paz e do “socialismo”, tinham menos produtos à sua disposição do que os pobres habitantes de um arrabalde piscatório da Figueira da Foz no imediato post-guerra.
Berlin oriental para um português habituado ao sufoco salazarista parecia um susto. Nem a ideologia conseguia suprimir aquela sensação de tristeza morna, de falta de tudo, inclusive de ar, aquele bafio que se respirava numa cidade cinzenta e ainda com visíveis sinais da guerra. Berlin oriental era deprimente. Era uma antecipada confissão de derrota, de falta de futuro, uma falácia que nem sequer a lembrança do odioso regime anterior desculpava. Nem os museus sumptuosos, o teatro da Weigel, a ópera e a música em geral conseguiam disfarçar o espectáculo acabrunhante duma imensa esperança perdida.
De certo modo, poderia pensar-se que Stalin tinha ganho a partida. Perdera o ocidente mas criara entre a sua distante capital e as fronteiras do inimigo, uma imensa zona morta, uma terra de ninguém em que nem sequer os fantasmas que a percorriam poderiam evocar o do “Manifesto”.
A resposta, mas quem a conheceria em 70?, seria dada quase duas décadas depois no dia em que um equívoco fez afluir aos postos fronteiriços do Muro uma imensa multidão que, de facto, o destruiu. Nem os alemães de leste estavam mortos, nem o Muro era eterno. E muito menos aquela temível corruptela de palavras antigas e justas (revolução, socialismo, liberdade) que diariamente e durante décadas foram cuidadosamente dessoradas por uma clique de funcionários para quem a palavra povo soava a algo de pernicioso.

* na gravura: um pedaço de "muro" nos seus primórdios

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