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Incursões

Instância de Retemperação.

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Carta ao meu Amigo Manuel

d'oliveira, 15.12.05
Meu Caro Manuel
Parece que alguém te atirou á cara com os teus quase “jubilosos setenta anos”, como se ter setenta anos fosse uma coisa do outro mundo. Há quem tenha mais anos porventura menos jubilosos ainda que seguramente intensos.
Setenta anos, dão para aí cinquenta de vida política, mesmo que se saiba – e eu sei – que bem antes já andavas metido (como na época se dizia) no reviralho. De quarenta e cinco bem contados sou eu testemunha que te apanhei em Coimbra naquele risonho ano de 1960, o primeiro ao fim de uma longa série, em que a esquerda ganhou as eleições para a Associação Académica.
O caloiro que conhecia Rilke (terás sido tu ou o Assis a dar-me tão honroso qualificativo?) depressa se aproximou de um grupo de estudantes mais velhos que pontificavam nas Assembleias Magnas, nos cafés, na via Latina e na Associação. E, com um punhado de outros, foi recebido quase como um igual apesar da sua juventude. da timidez e da sua imensa ignorância. E conheceu a emoção das Magnas onde se discutia acaloradamente, se votavam moções e protestos, e as rodas de cafés onde se lhe revelaram horizontes insuspeitados, se conspirava e se conheciam diariamente novos poetas Neruda, Guillen, Hikmet, Celaya, Éluard, Char, Guillevic.
E as primeiras pequenas tarefas políticas, uma eleição de delegado de curso a disputar, uma manifestação pelas ruas da cidade, os primeiros encontros de estudantes anunciadores já do Dia do estudante de 1962, essa viagem sem regresso às raízes da fraternidade e duma quase entrevista liberdade.
Quarenta e cinco anos Manel! E uma noite, nas ruas frias e desertas de Coimbra, ias tu para Angola, e com um pequeno grupo batemos ruas e calçadas e tu recitavas ou cantarolavas qualquer coisa que misturava capas negras e roseiras negras, como é que me vou lembrar... era já tua despedida a certeza que África te traria mais do que a guerra, a prisão e a tortura.
E os versos, aqueles sonoros primeiros versos que antecipavam a Praça da canção, versos como punhos, versos para cantar, como depois o Adriano e o Portugal tão bem souberam interpretar.
São esses versos, Manuel, essa sonora mensagem que tenho de te agradecer em primeiro lugar. Porque numa época de prisões, de ressaca política de fuga e semi-clandestinidade, trazíamos esses versos na boca, e o simples facto de os dizer, às vezes em coro, afugentava o medo, calava a desgraça, evocava a esperança e redobrava a coragem.
E víamos o futuro: não é indiferente que tenhas sido tu o primeiro a falar em país de Abril uma boa dúzia de anos antes de Abril se cumprir.
Esta é uma segunda razão para te escrever.
E como não há duas sem três, passando por alto a voz que nos vinha de Argel e que se ouvia entre mil cuidados e dificuldades, deixando para algum dia esse limpo percurso político começado no exílio, continuado no parlamento e na rua, gostaria, tão pessoalmente como me for possível de agradecer essa menção sempre presente ao país que somos, que fomos que sonhámos e que queremos. Numa época de palavras cansadas senão gastas pelo mau uso, pela ignorância ou pelas fanfarronadas de alguns é bom voltar a ouvir a palavra pátria irmanada com a palavra povo, provando aos filisteus que uma sem a outra nada significa. Isso, essa mensagem, essa ousadia que te tem custado não poucos dissabores literários e críticos, essa corajosa insistência, é a terceira razão que me leva desta mesa de café, ás dez da manhã, deste dia 15 de Dezembro e com uma pobre esferográfica vermelha e emprestada, a escrever-te.
Escrever-te para te dizer que, independentemente do facto de sermos amigos há mais de quarenta anos, vou votar em ti para te agradecer, para te pagar uma dívida antiga de fraternidade e de exemplo cívico e político. Uma dívida que começou como já disse nas assembleias de estudantes, continuou na leitura dos teus versos, me acompanhou nas prisões que me couberam em sorte e nos momentos em que celebrávamos a esperança, a luta e as pequenas vitórias que fomos acumulando.
Provavelmente é esta a última vez que publicamente me dirijo a ti, usando este tu de tantos anos. Há que ter contenção quando nos dirigimos a um presidente da República como espero que venhas a ser.
E se a loucura da sorte assim o não quiser, gostaria, apesar de tudo, de te dizer que este é, e será sempre um belo combate. Que te honra e nos honra a todos quantos entendemos dever propor o teu nome. E essa vitória já ninguém no-la tira.
Aceita como no teu verso, estas palavras simples e fraternas. Também elas carregam um alqueire de esperança. Não tenho outras, senão estas decoradas há quarenta anos: palavras livres , livres como um homem.
Recebe um abraço do
mcr

O meu amigo João Rodrigues pediu-me há tempos um texto para o site do Manuel Alegre. Prometi enviar-lho logo que o escrevesse mas nada me saía que valesse sequer a pena de o escrever a lápis (como diria Eça, o imenso). Hoje ao ler o jornal, pedi duas filhas de papel e uma esferográfica que afinal era vermelha, e escrevi atenazado pela raiva esta carta que só tem, se tiver, esta virtude: foi escrita com o coração e de jacto. Quando a ia mandar para o tal site, lembrei-me que foi aqui que um punhado de pessoas que nada sabiam de mim me acolheram galhardamente. Espero que esses agora meus amigos me perdoem o publicar aqui o texto prometido ao João. Ele se quiser que o copie para o tal site. Este é o meu posto por muitos ou poucos leitores que tenha. Esta é a minha casa.

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