missanga a pataco 10

Falo hoje de dois homens já maduros, que tinham visto outras, sempre desagradáveis, mas que nem hesitaram quando fui pedir-lhes ajuda e colaboração, contando o mínimo indispensável e pedindo o máximo (im)possível. Falo de Rui Feijó e de Jorge Delgado.
Que um rapazola, enfim, um tipo de 33 anos (essa era a minha idade) se metesse nestas conspiratas era coisa fácil. Mas eles já tinham passado os cinquenta, já tinham conhecido a prisão e o rosário de coisas de desagradáveis que acompanhava qualquer democrata que desafiasse o poder. Tinham posição, família, negócios, e os anos não ajudavam. Ora bem. Acreditem ou não, nem pestanejaram. É para já, responderam. Com uma diferença: o Rui ficou em pulgas enquanto o Jorge, mais experimentado, disse que o chamassem só quando fosse necessário pois entretanto dormiria o sono dos justos (e ele era-o) dos habituados (idem, aspas, aspas) e dos decididos. E assim foi. Por isso não se meteu às ruas da noite e da madrugada connosco, enquanto o Rui fervilhante dizia que não podia estar em casa.
O Jorge morreu já, deixando entre amigos e conhecidos uma rasto luminoso de um militante critico e ponderado da liberdade. Faz falta, muita falta.
O Rui vai nos oitenta e cinco se não estou em erro, tem os achaques da idade, e dos rins a desfuncionar, da vista já cansada, das pernas que pouco lhe obedecem, mas a cabecinha continua fresca como no primeiro dia. Costumamos falar-nos neste dia, mas hoje ele teve de ir para a sua diálise e sai de lá desfeito. Amanhã também é dia, é sempre o primeiro dia de uma outra coisa que por muito desgostante que esteja, é melhor do que o 24 de Abril de 1974.
E o meu recado é simples: a democracia é coisa que está sempre em obras, o que é uma chatice. Mas mais vale viver entre andaimes do que entre grades sejam de ferro ou tão só tecidas de medo. E é isso que não é fácil de ensinar a quem nessa altura tinha dez, doze quinze anos para já não falar nos outros ainda mais ovos. E todavia foi por eles, para eles que alguns se arriscaram. Não estou a pedir grande meditação sequer um minuto se silêncio. Prefiro mesmo que o dia tenha sido passado como qualquer outro feriado porque isso é o verdadeiro sinal da vitória: viver na normalidade.
E por isso, só por isso, digo in imo pectore: viva o vinte e cinco de Abril, sempre!
a ilustração de hoje: cerejas. Lembrando a velha canção de combate:
essas cerejas, pastor?
São de cor vermelha,
vai pintá-las de outra cor.