Au Bonheur des Dames 39
Um estrangeiro, ao ouvir uma destas, caída com a necessária ênfase que soi ser a das governamentais figurinhas, poderia pensar que em Portugal subsistiriam restos de um abrilismo temível, revolucionário, que teria conseguido vergar a empresa e governo de tal modo e com tão inaudita violência que ambos, governo e empresa, para salvarem o coiro, teriam aceitado ser esbulhados de uma quantia gorda sob ameaças inomináveis que iriam desde o corte dos postos eléctricos até atentados contra a vida dos pais e mães da pátria.
Portanto, a secretariante ou subsecretariante criatura, uma vez, passado o perigo teria resolvido admoestar os súbditos e, ao mesmo tempo, avisá-los de um pequeno aumento no preço da energia, que eles durante anos se tinham recusado a pagar. Ai vocês cantaram? Pois agora vão dançar.
Todavia, as coisas não se passaram assim: as turbamultas portuguesas pagaram e não bufaram tudo o que lhes foi pedido em matéria de electricidade. Se alguém entendeu não pagar, rapidamente lhe cortaram o pio e a luz. Até no Teatro Rivoli a luz foi cortada para escarmento dos seus ocupantes.
A EDP e os organismos que a tutelam, directa ou indirectamente, definiu os preços dos seus serviços, todos os anos aumentados segundo critérios que noventa e nove virgula noventa e nove por cento dos portugueses desconhecem. A peonagem, nestas coisas, não tuge nem muge: paga, roga pragas, diz mal da sua vida mas paga. Porque sabe que se não pagar vem aí "os da electricidade" e cortam.
No entanto, dado que os aumentos da EDP não cobriam os custos da mesma, é o que eles dizem, há um buraco do tamanho do buraco do ozono mas mais feio, mais próximo e mais ameaçador. E foi por isso que a secretariante criatura (ou sub, tanto faz) veio agora dizer que se tinha acabado o recreio e que havia que pagar o deficit, tanto mais que se espera que venham os privados fornecer electricidade e que esses não se podem condoer com a aflição malévola dos actuais pagantes.
E pouca treta porquanto a culpa dos aumentos era, como não podia deixar de ser dos pagantes, isto é de nós todos. A culpa, reparem bem.
Não podia, uma vez sem exemplo, estar mais de acordo com a robusta e inteligente tese da secretariante (ou qualquer coisa do mesmo jaez) criatura. A culpa é nossa. Não é do capital, da imperícia dos estrategos governamentais, do populismo de que agora, e sempre, se têm revestido os pais e mães da pátria imortal, nobre povo e nação valente. Também não é de quem na EDP faz contas, gere aquilo, e manda as facturas para nossa casa. A culpa é nossa. E não adianta dizer que desconhecíamos estar a pagar menos do que devíamos. A ignorância desta lei não aproveita a ninguém.
Isto fez-me lembrar os índios das pradarias, esses selvagens que não faziam mais senão caçar bisontes, fumar o cachimbo da paz, viver em tipis e passar a vida a atacar caravanas inocentes de pioneiros, ululando como possessos. Agora já há não índios, claro, mas a culpa disso não é das tropas americanas, do 7º de Cavalaria, do John Waine ou do general Custer. Também não é de Manitu, por razões bem simples: Manitu não era Deus, logo não podia proteger aqueles bandos de facínoras que infestavam o Oeste, e destruíam a natureza, sobretudo os pássaros para lhes roubar as penas que punham na cabeça. A culpa foi mesmo deles: não tinham nada que estar ali, feitos parvos, a caçar o bisonte e a pescar os salmões. O agora chamado extermínio dos índios foi culpa deles e só deles. Eram pagãos, tinham uma cor esquisita, falavam uma língua de trapos e andavam semi-nus. Não cultivavam a terra nem a deixavam cultivar. Eram inúteis e a mão de Deus armou a dos homens que os puniram por um tão largo rol de culpas.
Convenhamos que em comparação estamos mais bem servidos. A verdade é que não somos pagãos, nem andamos por aí a matar bisontes.
Objectar-me-ão que os iraquianos, que ao que se sabe morrem por atacado, não caçaram nunca bisontes, andam vestidos (de djelabah é verdade, mas vestidos) calçados e adoram um deus um tanto ou quanto estranho, mas um deus, apesar de tudo. Dado que a culpa deles é menor, morrem mais devagar. Ao todo ainda não chegaram ao milhão de vítimas, o que prova o bem fundado da tese que venho defendendo.
O Dr. Santana Lopes escreveu um livro o que prova à saciedade que é um verdadeiro intelectual e não o punching ball dos críticos culturais que, durante anos, o atacaram por causa de uns violinos de Chopin. O dr. Lopes foi uma espécie de antepassado cultural do dr. Rio e como ele presidiu a um par de câmaras municipais, tarefa que só os invejosos atacam. De facto combateu a desertificação plantando um par de palmeiras na praia da Figueira da Foz e brilhou em Lisboa quando mandou fazer um buraco chamado túnel maior ainda que o buraco financeiro da capital. Também presidiu a um conselho de ministros, curto mas cheio de actividade onde terá ganho as esporas de menino guerreiro. Contra este formidável pai da pátria conjuraram-se todos os malfeitores políticos de que há memória e mesmo alguns que estavam esquecidos. Cavaco Silva e Sampaio encontravam-se já noite cerrada na “tendinha do rossio” e entre duas “amêndoas amargas” sistematicamente pagas pelo primeiro conspiravam fartamente enquanto o dr Portas e o eng. Sócrates faziam o mesmo mas á volta de uma pratada de tripas à portuguesa na “Ideal das avenidas”. No resto do país é o que se sabe: o dr. Simas Santos e o escultor Sousa Pereira rosnavam ameaças tremendas enquanto tomavam chá com torradas na explanada do bar “venha cá” ao foco, que eu bem os vi. Do Marco vinha expressamente o senhor JCP com um primo que tem em Amarante para aliciarem um tal “carteiro” para a cruzada anti-Lopes. E não esqueçamos um trio de senhoras de que nem ouso pronunciar o nome que, num blog detestável que não nomearei, juraram eliminar o dr. Santana pelo expediente horrendo de lhe enviarem pasteis de nata do dia anterior com o fito absoluto de o envenenarem ou, pelo menos, de o tornarem de tal modo obeso que as mulheres portuguesas o começariam a detestar.
Tudo isto, e muito mais, se passou nas caves e sub-caves da república para abater o recente e laureado escritor que anda por aí. O nefando intuito foi conseguido e ainda hoje, num grito de alma comovente, o dr. Lopes pergunta ao mundo rendido ao seu talento oratório, porque é que este gigantesco exército de criaturas maldosas não é votado às gemónias. E a resposta cínica e atroz tem sido sempre a mesma: não temos culpa.
Nota: este texto estava a meio no cestinho virtual dos “projectos” e só vê a duvidosa luz do dia graças ao depoimento televisivo do dr. Santana.
E vai dedicado aos doutores José Barata e João Vasconcelos Costa que tentaram defender o dr. Lopes com o famoso argumento “ele cai sozinho sem ajuda!”. Era verdade mas o dr. Sampaio é consabidamente um invejoso e quis ficar na história.