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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Farmácia de serviço nº 14

d'oliveira, 31.10.05
PICANTE Q. B. (e quanto convenha!)


"Nunca lá fui!"

Viajem aos mares do sul

Joaquim Namorado

"Tratou com o Camorim,
Calecut, imperador,
Suas bravatas, enfim,
eram dum urso de côr
."


Grandezas de Portugal
estância CXLIX

Capitão Joaquim António Pereira

Ponhamos que a fosforescente Crazy Grazy engana bastante: a gente tira-lhe a bissectriz e pensa -"esta governa-se com meia dose infantil!". Engano absoluto e de danosas consequências para quem, amável mas ignorante, a convidar para comer uma bucha: a personagem pertence à classe das frieiras, subclasse frieiras com bicha solitária, ramo cabe sempre mais uma empadinha! Deus, todo poderoso mas distraído, concedeu-lhe dose tripla de apetite, dentição completa e um total descaramento na hora de passar o babete à volta do pescoço: gosta de tudo incluindo fígado de porco (nisto batendo o meu venerável amigo Rui Feijó que exceptuava esta porcina miudeza do seu voracíssimo cardápio. Este Rui, ancião guloso de comidas e de sexo feminino em geral, não suportava a passagem fatídica do meio dia -tocavam as doze badaladas e ele caía numa aflição que só lhe passava com a primeira pratada de sopa... Com a CG é o mesmo: entre as seis refeições diárias está prostrada pela fome!).

"Mas se a criatura é um ogre desse jaez há-de ser mais volumosa que a enciclopédia luso-brasileira com suplementos anuais e tudo" - dirão os escassos leitores que, por penitência me aturam. Erro, queridos paroquianos, erro crasso que a desinfeliz de gorda apenas tem as orelhas e mesmo assim...Em que transformará ela as provisões que enfarda á tripa forra é mistério mais difícil que o da trindade e olhem que este é dos mais arrenegados.

Mas não é da ziguezagueante CG que queremos tratar mas tão só de um pratinho de que ela me pediu a receita que aqui se assentará.

Tomai pois apontamento ó voláteis filhos de Deus que o que se segue dá pelo nome de caril de camarão. Aqui para nós, que ninguém nos ouve, caril é apenas a mistura de ervinhas e condimentos que, em molho, embebe qualquer conduto (camarão, caranguejo, galinha, porco e carneiro) e acompanha com arroz branco. Consta que os indianos o inventaram para, muito picante, matar a fome pelo simples expediente de pôr a língua do indígena a arder de tal modo que a vítima já só pensa em beber água.

Comece-se como recomendava o falecido Dr. Carlos Moreira, mestre de direito constitucional, pelo princípio: a menos que se conheçam as doses exactas dos componentes, o pó de caril há-de obter-se em qualquer comerciante indiano e não comprar-se já amortalhado em frasco: a diferença de aromas e sabores é enorme e paga a pequeníssima diferença de preços.

Outra recomendação que deve ser respeitada: os camarõezinhos hão-de ser grandes. O médio, tipo camarão da costa, deve reservar-se para um mano a mano com muita e boa cerveja de barril. Consoante o parceiro que se tem pela frente pode comer-se a meias ou pedir doses individuais. Este último expediente foi-me imposto depois de um frente a frente com o falecido António Mendes de Abreu, flor dos amigos a quem só não se perdoa a velocidade com que aviava estes crustáceos. Ia eu nos primeiros cem graminhas e já o Toninho averbava, no prato, os cadáveres de meio quilo. A partir dessa tarde fatal as nossas relações passaram a pautar-se pelo princípio "amigos, amigos, camarão à parte".

Portanto camarão bom de ver e melhor de apalpar! (A regra, de Camilo José Cela, tem, originariamente, como objecto as mulheres mas como o camarão goza da fama de afrodisíaco também dá...) Nada de miolo de camarão a menos que se use tal artigo apenas com o fim de engrossar o molho. Em contrapartida pode ser do congelado, selvagem ou cozido. A diferença estará na cozedura final: o primeiro aguenta 8 minutos no máximo enquanto o segundo não há-de ser supliciado por mais de cinco.

Vejamos o rol dos necessários, para quatro pessoas, segundo receita antiga e saborosa: 2 tomates bem maduros, 2 cebolas grandes, 4 dentes de alho, 2 paus de canelas, 4 colheres de azeite, 1 maçã (se possível) reineta (e, querendo, 1 manga), 1 pitada de coentros e 1 frasco de leite de coco.

Passemos ao capítulo das regJelly Roll" Morton ou Teddy Bucknerras gerais de aviamento: tudo isto há-de ser cozinhado com vagares de sátiro velho, uma cervejinha para combater os calores e um entretém para a puxar (o entretém que ocorreu às amáveis mas estouvadas leitoras é para depois nunca para antes!!!) O fundo musical põe alguns problemas a quem não goste de música indiana, aliás inexistente nas discotecas portuguesas. O meu conselho atira para algum jazz "New Orleans", "Jelly Roll" Morton ou Teddy Buckner: música vigorosa, bem disposta um vago cheiro a casa de meninas no French Quarter e a comida "cajun".

Então vai ser assim: ao som do "Tiger rag" pelam-se e desgraínham-se os tomates. Sempre em "New Orleans" picam-se as cebolas e o alho. Vai tudo junto para a panela onde ferverá um quarto de hora ao som malicioso de Morton, a quem as "meninas" ( e elas lá saberiam porquê...) apodavam de "Jelly Rol"...À cautela mete-se o pó abençoado, mas não todo, que nisto há que proceder como o verdadeiro guerrilheiro: apalpa-se o terreno à falta de coisa mais palpável e vai-se, lenta mas inexoravelmente, ganhando posições, quebrando a vontade de resistir do inimigo que isto de culinária é como na guerra: persistência e apetite...

Já o aroma do estrugido se vai insinuando, aleluia, pela casa toda quando, num audacioso golpe de mão, se acrescenta a maçã esmagada à qual os mais malandrecos agregam uma manga bem madura. Sempre fervendo, ainda que num lume compassado e vivace chega a altura de se juntar o leite de coco e os dois pauzinhos de canela. A música é obviamente outra: Teddy Buckner, trompetista poderoso -comece-se com "Martinique" e com mão bailarina dêem-se duas voltas ao rescendente cozinhado e, já agora, zás!, afinfe-se com os coentros.

Ainda que se esteja a sacrificar aos deuses hindus (e eles são tantos) convém não citar Vatsyiayana e o seu dificultoso Kamasutra - já não há pachorra nem ginástica - se bem que seja permitido um pouco de Tagore: duas ou três passagens de "O jardineiro". Imprescindível, porque a cozinha é de pé que se faz, a citação da estrofe XXV: "E os meus pés não podem com o meu coração!" Doravante o cozinhado faz-se por si, a sábia volúpia do lume brando vai agregando cheiros e sabores - assim se foi fazendo (e faz-se!) a grande música seja ela de Bach, Mozart ou Ellington.

Entretanto, tem a palavra o arroz: sem estrugido se fazem o favor! Este arroz quer-se branco e ungido numa calda de água e leite de coco. Para que os grãos se soltem usar-se-á uma gordura: q.b. de manteiga ou margarina. Sal pouco.

Chegam os convidados - se os houver (e que há-de melhor, em volta da mesa do que amigos, risos, memórias e um vinho antiquíssimo e civilizado?)- é tempo de rectificar temperos e fazer entrar na molhanga rescendente o regimento camaroeiro que tanto trabalho deu a descascar. A bicharada terá quatro a cinco minutos de cozedura, tanto basta para trocar sabores e cor com o caril. Exceptuam-se os camarões crus que pedem mais três minutos que os anteriores patrícios. À mesa comensais e que seja pelos vossos e meus pecados. Comam-lhe bem e bebam-lhe melhor como aconselhava o pretendente Ciro aos chefes dos Dez Mil mercenários gregos que deram nome à retirada e a posteridade a Xenofonte de Atenas.

Bom apetite!

A Exma Srª Dr.ª Crazy Grazy, também conhecida por doris Ibarruri, cartomante velocipédica, primeira recipendiária desta modesta receita, decerto dará o seu imprimatur a que com ela se brinde o Ilmº e Exmº Sr. Dr. FBC, curry maker. Em se tratando de gente boa há lugar para todos...

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