Farmácia de serviço nº 14

Viajem aos mares do sul
Joaquim Namorado
"Tratou com o Camorim,
Calecut, imperador,
Suas bravatas, enfim,
eram dum urso de côr."
Grandezas de Portugal
estância CXLIX
Capitão Joaquim António Pereira
"Mas se a criatura é um ogre desse jaez há-de ser mais volumosa que a enciclopédia luso-brasileira com suplementos anuais e tudo" - dirão os escassos leitores que, por penitência me aturam. Erro, queridos paroquianos, erro crasso que a desinfeliz de gorda apenas tem as orelhas e mesmo assim...Em que transformará ela as provisões que enfarda á tripa forra é mistério mais difícil que o da trindade e olhem que este é dos mais arrenegados.
Mas não é da ziguezagueante CG que queremos tratar mas tão só de um pratinho de que ela me pediu a receita que aqui se assentará.
Tomai pois apontamento ó voláteis filhos de Deus que o que se segue dá pelo nome de caril de camarão. Aqui para nós, que ninguém nos ouve, caril é apenas a mistura de ervinhas e condimentos que, em molho, embebe qualquer conduto (camarão, caranguejo, galinha, porco e carneiro) e acompanha com arroz branco. Consta que os indianos o inventaram para, muito picante, matar a fome pelo simples expediente de pôr a língua do indígena a arder de tal modo que a vítima já só pensa em beber água.
Comece-se como recomendava o falecido Dr. Carlos Moreira, mestre de direito constitucional, pelo princípio: a menos que se conheçam as doses exactas dos componentes, o pó de caril há-de obter-se em qualquer comerciante indiano e não comprar-se já amortalhado em frasco: a diferença de aromas e sabores é enorme e paga a pequeníssima diferença de preços.
Outra recomendação que deve ser respeitada: os camarõezinhos hão-de ser grandes. O médio, tipo camarão da costa, deve reservar-se para um mano a mano com muita e boa cerveja de barril. Consoante o parceiro que se tem pela frente pode comer-se a meias ou pedir doses individuais. Este último expediente foi-me imposto depois de um frente a frente com o falecido António Mendes de Abreu, flor dos amigos a quem só não se perdoa a velocidade com que aviava estes crustáceos. Ia eu nos primeiros cem graminhas e já o Toninho averbava, no prato, os cadáveres de meio quilo. A partir dessa tarde fatal as nossas relações passaram a pautar-se pelo princípio "amigos, amigos, camarão à parte".
Portanto camarão bom de ver e melhor de apalpar! (A regra, de Camilo José Cela, tem, originariamente, como objecto as mulheres mas como o camarão goza da fama de afrodisíaco também dá...) Nada de miolo de camarão a menos que se use tal artigo apenas com o fim de engrossar o molho. Em contrapartida pode ser do congelado, selvagem ou cozido. A diferença estará na cozedura final: o primeiro aguenta 8 minutos no máximo enquanto o segundo não há-de ser supliciado por mais de cinco.
Vejamos o rol dos necessários, para quatro pessoas, segundo receita antiga e saborosa: 2 tomates bem maduros, 2 cebolas grandes, 4 dentes de alho, 2 paus de canelas, 4 colheres de azeite, 1 maçã (se possível) reineta (e, querendo, 1 manga), 1 pitada de coentros e 1 frasco de leite de coco.
Passemos ao capítulo das regJelly Roll" Morton ou Teddy Bucknerras gerais de aviamento: tudo isto há-de ser cozinhado com vagares de sátiro velho, uma cervejinha para combater os calores e um entretém para a puxar (o entretém que ocorreu às amáveis mas estouvadas leitoras é para depois nunca para antes!!!) O fundo musical põe alguns problemas a quem não goste de música indiana, aliás inexistente nas discotecas portuguesas. O meu conselho atira para algum jazz "New Orleans", "Jelly Roll" Morton ou Teddy Buckner: música vigorosa, bem disposta um vago cheiro a casa de meninas no French Quarter e a comida "cajun".
Então vai ser assim: ao som do "Tiger rag" pelam-se e desgraínham-se os tomates. Sempre em "New Orleans" picam-se as cebolas e o alho. Vai tudo junto para a panela onde ferverá um quarto de hora ao som malicioso de Morton, a quem as "meninas" ( e elas lá saberiam porquê...) apodavam de "Jelly Rol"...À cautela mete-se o pó abençoado, mas não todo, que nisto há que proceder como o verdadeiro guerrilheiro: apalpa-se o terreno à falta de coisa mais palpável e vai-se, lenta mas inexoravelmente, ganhando posições, quebrando a vontade de resistir do inimigo que isto de culinária é como na guerra: persistência e apetite...
Já o aroma do estrugido se vai insinuando, aleluia, pela casa toda quando, num audacioso golpe de mão, se acrescenta a maçã esmagada à qual os mais malandrecos agregam uma manga bem madura. Sempre fervendo, ainda que num lume compassado e vivace chega a altura de se juntar o leite de coco e os dois pauzinhos de canela. A música é obviamente outra: Teddy Buckner, trompetista poderoso -comece-se com "Martinique" e com mão bailarina dêem-se duas voltas ao rescendente cozinhado e, já agora, zás!, afinfe-se com os coentros.
Ainda que se esteja a sacrificar aos deuses hindus (e eles são tantos) convém não citar Vatsyiayana e o seu dificultoso Kamasutra - já não há pachorra nem ginástica - se bem que seja permitido um pouco de Tagore: duas ou três passagens de "O jardineiro". Imprescindível, porque a cozinha é de pé que se faz, a citação da estrofe XXV: "E os meus pés não podem com o meu coração!" Doravante o cozinhado faz-se por si, a sábia volúpia do lume brando vai agregando cheiros e sabores - assim se foi fazendo (e faz-se!) a grande música seja ela de Bach, Mozart ou Ellington.
Entretanto, tem a palavra o arroz: sem estrugido se fazem o favor! Este arroz quer-se branco e ungido numa calda de água e leite de coco. Para que os grãos se soltem usar-se-á uma gordura: q.b. de manteiga ou margarina. Sal pouco.
Chegam os convidados - se os houver (e que há-de melhor, em volta da mesa do que amigos, risos, memórias e um vinho antiquíssimo e civilizado?)- é tempo de rectificar temperos e fazer entrar na molhanga rescendente o regimento camaroeiro que tanto trabalho deu a descascar. A bicharada terá quatro a cinco minutos de cozedura, tanto basta para trocar sabores e cor com o caril. Exceptuam-se os camarões crus que pedem mais três minutos que os anteriores patrícios. À mesa comensais e que seja pelos vossos e meus pecados. Comam-lhe bem e bebam-lhe melhor como aconselhava o pretendente Ciro aos chefes dos Dez Mil mercenários gregos que deram nome à retirada e a posteridade a Xenofonte de Atenas.
Bom apetite!
A Exma Srª Dr.ª Crazy Grazy, também conhecida por doris Ibarruri, cartomante velocipédica, primeira recipendiária desta modesta receita, decerto dará o seu imprimatur a que com ela se brinde o Ilmº e Exmº Sr. Dr. FBC, curry maker. Em se tratando de gente boa há lugar para todos...